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Maioria, mas onde? O mapa racial da política nos municípios do Ceará
Reportagem Seriada

Maioria, mas onde? O mapa racial da política nos municípios do Ceará

Apesar de representarem 55% da população brasileiras, negros ainda enfrentam dificuldades para conseguir espaço nos legislativos e executivos do País
Episódio 2

Maioria, mas onde? O mapa racial da política nos municípios do Ceará

Apesar de representarem 55% da população brasileiras, negros ainda enfrentam dificuldades para conseguir espaço nos legislativos e executivos do País
Episódio 2
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O ano de 2024 marcará a primeira eleição para as câmaras municipais onde o financiamento proporcional a candidatos negros entra em vigor. Aprovado em 2020 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a regra também vale para a distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão.

A medida visa, de acordo com Luís Roberto Barroso, presidente do TSE na época, a combater o racismo e amenizar a desvantagem de candidaturas negras em eleições. Em 2022, as pessoas negras representaram 48% dos candidatos à Câmara dos Deputados, mas apenas 26% dos eleitos.

No gráfico abaixo é possível conferir a correlação de raças nas três últimas eleições. Basta clicar no menu para ver as informações.

 

Composição racial da Câmara dos Deputados

A eleição de 2022 foi a primeira em que as novas medidas de divisão proporcional começaram a valer. Apesar da disparidade entre candidatos e eleitos, os números representaram um avanço, ainda que tímido.

O TSE passou a coletar dados de autodeclaração étnico-racial apenas em 2014. Naquela eleição, os negros foram 41% dos candidatos à Câmara dos Deputados e 20% dos eleitos. Em 2018, permaneceram sendo 41% entre os candidatos, mas chegaram a 24% dos eleitos.

 

Evolução do número de candidatos à Câmara do Deputados

No Brasil, de acordo com o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022, pretos e pardos correspondem a 55,5% da população brasileira.

 

 

Como funciona a regra de divisão proporcional

Ministro Luís Roberto Barroso(Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF Ministro Luís Roberto Barroso

Aprovada em 2020, a decisão do TSE diz que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), conhecido como Fundo Eleitoral, e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve ser proporcional ao total de candidatos negros (pretos e pardos) que o partido apresentar para a disputa eleitoral.

A decisão do TSE foi tomada após análise de uma consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ). Benedita indagou se a parcela dos incentivos às candidaturas femininas, que estão previstos na legislação, poderia ser reservada especificamente para candidatas da raça negra.

“O racismo no Brasil não é fruto apenas de comportamentos individuais pervertidos, é um fenômeno estrutural, institucional e sistêmico. E há toda uma geração, hoje, disposta a enfrentá-lo”, destacou o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, após aprovação da medida.

Na prática, caso um partido apresente uma chapa de candidatos com 60% dos postulantes que se autodeclarem negros, 60% dos recursos do Fundo Eleitoral e 60% do tempo de propaganda eleitoral gratuita dispostos pela legenda devem ser destinados a essas candidaturas.

 

 

Fortaleza como retrato da desigualdade

Em Fortaleza os vereadores negros são maioria, é verdade. Mas precisam do dobro de candidaturas para alcançar o número de vereadores brancos eleitos. A Câmara Municipal de Fortaleza conta com 25 vereadores autodeclarados pretos ou pardos, enquanto 18 se declararam brancos.

O número, que parece equilibrado e até “justo”, esconde uma desigualdade gritante. Em 2020, 948 candidaturas negras concorreram ao cargo de vereador, com 25 sendo eleitos, o que representa 2,6% do total.

Os declarados brancos, por sua vez, foram 403 entre os lançados, com 18 eleitos, o que representa 4,4% do total. Ou seja, a chance de um candidato branco ser eleito é quase duas vezes maior do que um candidato negro.

 

Composição racial da Câmara Municipal de Fortaleza

Os dados mostram um cenário de estabilidade em relação a 2016, primeira eleição municipal em que os candidatos registraram suas autodeclarações. Naquele ano as candidaturas negras foram 787, com 23 sendo eleitos, o que representou 2,9% do total

Os brancos, no entanto, não conseguiram manter a estabilidade. Em 2016 eram 325 candidaturas, 20 foram eleitos, o que representou 6,15% do total.

 

Evolução do número de candidatos à Câmara Municipal de Fortaleza

O levantamento é ainda mais impactante quando observado junto ao total da população. De acordo com dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, a população negra na cidade de Fortaleza é de 1.627.919, cerca de 67% do total. Os brancos são 793.975, pouco mais de 32% dos habitantes da cidade.

Mariana Lacerda, cientistas social, pesquisa a representação de mulheres negras no parlamento brasileiro(Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Mariana Lacerda, cientistas social, pesquisa a representação de mulheres negras no parlamento brasileiro

Mariana Lacerda, socióloga que estuda a representação de mulheres negras no parlamento brasileiro, aponta que um dos fatores mais limitantes às pessoas negras é a falta de investimento e de tempo de propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão. Justamente os pontos “atacados” na norma estabelecida pelo TSE.

Na visão da socióloga, existe o palanque dos candidatos e o palanque dos eleitos, para onde vai a maior parte dos recursos, seguindo a lógica partidária de investir nos candidatos com maior potencial de serem eleitos.

Como exemplo, é possível citar o Republicanos, pelo qual o vereador Ronaldo Martins, mais votado do partido e da cidade, recebeu R$ 242 mil de fundo eleitoral para a campanha de 2020. Enquanto o candidato Professor Wagner Lobo, quarto mais votado do partido recebeu R$ 28 mil, um oitavo do valor.

O mesmo aconteceu no PSL, em que o vereador eleito Marcelo Lemos recebeu R$ 329 mil de financiamento do partido em 2020. Enquanto Antônio Romário, quarto vereador mais votado da legenda, recebeu R$ 35 mil, um nono do valor.

Em 2024 vai ser possível atestar eficácia da medida em nível municipal. Mariana, no entanto, destaca e defende a necessidade de haver, dentro dos partidos, bancas de heteroidentificação. Assim, fraudes poderão ser evitadas e o financiamento partidário terá destino correto.

 

 

Ceará: a minoria no comando da maioria

No Estado o cenário não é tão diferente. Das 184 prefeituras do Ceará, 92 são comandadas por pessoas brancas, ou seja, metade. Outras 90 são comandadas por pessoas negras, todas se autodeclarando pardas. Ainda há uma prefeitura onde a gestora municipal se declara como amarela e uma onde o gestor não fez autodeclaração.

 

Autodeclaração de raça dos 184 prefeito eleitos em 2020

50% dos prefeitos são brancos, mesmo população cearense sendo em sua maioria negra

As 92 cidades em que os prefeitos são brancos concentram quase 65% da população total do Estado, incluindo três das cinco cidades mais populosas do Ceará: Fortaleza, Maracanaú e Sobral.

O número, quando confrontado com o que indica o Censo do IBGE, revela que a “minoria comanda a maioria” — 72% da população cearense é formada por negros e cerca de 28% por brancos.

Apesar da disparidade, o número representa avanço considerável em relação a 2016, quando, dos 184 prefeitos eleitos, 105 eram brancos e 76 negros.

 

 

Câmaras municipais cearenses na contramão do Brasil

O Portal de Dados Abertos do TSE aponta que 771 casas legislativas municipais no País não elegeram nenhuma pessoa negra em 2020, o que representa cerca de 14% do total. Os números apontam para uma diminuição da ausência de pessoas negras. Em 2016 eram 1.043 câmaras municipais que não haviam eleito pessoas identificadas como negras.

Além disso, em 2020, as pessoas negros representaram 51% dos candidatos a vereador no Brasil. No entanto, continuaram a ser minoria entre os eleitos: 45% contra 54% de brancos eleitos.

As casas legislativas cearenses vão na contramão dos dados nacionais. Todas as 184 câmaras municipais cearenses têm pelo menos um representante autodeclarado negro. Em 13 municípios, eles são 100% das cadeiras legislativas.

 

Composição racial das câmaras municipais do Ceará

13 casas legislativas tem vereadores negros ocupando todas as vagas de vereança

O percentual de candidatos e eleitos não apresenta grande disparidade. Em 2016 as pessoas negras eram 68,7% do total de postulantes e foram 60,57% dos eleitos.

Em 2020 uma leve oscilação no percentual de candidatos, representando 68,44%. No número de eleitos, houve um aumento, correspondendo a 61,54% do total de cadeiras a vereança no Estado.

 

 

Deputados negros aumentam na Assembleia, mas disparidade ainda é grande

Na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), o número de deputados negros com mandato aumentou consideravelmente. Em 2014 eram 10, representando 22% dos 46 assentos na Casa. Em 2022 são 15, quase um terço do total. Em 2018 foram 13 eleitos, entre eles o atual governador do Estado, Elmano de Freitas (PT).

 

Composição racial da Assembleia Legislativa do Ceará

O avanço ocorreu também nas candidaturas. No entanto, escancara ainda mais a disparidade entre lançados e eleitos. Em 2014, as candidaturas negras representavam 49,7% do total. Em 2018, corresponderam a 58,6% e, em 2022, eram 60% do total de postulantes ao mandato de deputado estadual.

Em 2022, as regras aprovadas pelo TSE, que visavam diminuir essa disparidade, foram aplicadas. Apesar do avanço, os resultados práticos a nível do legislativo estadual pareceram tímidos.

 

 

Representatividade na bancada federal cearense regride

Em 2018, o percentual de negros na bancada cearense na Câmara dos Deputados chegou a ser 40% dos 22 eleitos — eram 9 no total. Mas, o salto que havia sido dado em relação a 2014, quando apenas 4 haviam sido eleitos, não se manteve para 2022.

O número de concorrentes que se autodeclararam negros em 2022 foi de 249 e representou 60% do total de candidaturas, um aumento de 99 candidatos negros em relação a 2018. Apesar disso, o percentual de eleitos caiu e ficou em 31% da bancada, com 7 representantes pardos ou pretos.

Em relação ao número de candidatos, houve um aumento considerável entre 2014 e 2022. Em 2014, candidatos negros representavam 52% do total. Em 2018 passaram a ser 56% e, em 2022, chegaram à marca de 60% do total de candidaturas.

 

 

De Marielle às Redes Sociais: hipóteses do aumento de candidaturas negras

Uma das hipóteses levantadas pela socióloga Mariana Lacerda para o aumento de candidaturas negras nas últimas três eleições é o “efeito Marielle”. A morte da vereadora, assassinada em 2018, causou comoção e indignação. Muitas pessoas negras, principalmente mulheres, começaram a olhar a política como um lugar necessário de ocupar.

Além disso, em 2020 dois “fenômenos” potencializaram o interesse e o engajamento das pessoas negras pelos espaços políticos. O primeiro foi o movimento “Black Lives Matter” (BLM), ou “Vidas Negras Importam”.

Marielle Franco(Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Marielle Franco

O assassinato do estadunidense George Floyd despertou uma poderosa inquietação nos Estados Unidos e que se expandiram para o resto do mundo, inclusive para o Brasil. O BLM instigou as pessoas negras a debaterem política e a violência expressa pelo Estado.

O segundo foi a pandemia de Covid-19, que transformou a forma de fazer campanha. Fortes em 2018, as redes sociais ganharam proporções enormes na disputa eleitoral de 2020, possibilitando que candidatos sem maior financiamento para desenvolverem as campanhas pudessem ter voz ecoando para além das próprias bolhas.

Além, claro, da nova regra de financiamento e tempo de propaganda eleitoral gratuita estabelecida pelo TSE. Apesar de os resultados ainda serem tímidos, a expectativa é que a medida traga maiores impactos a médio e longo prazo.

“É um ativo muito grande, você coloca o candidato em evidência. O recurso possibilita que você contrate mais pessoas, imprima mais panfletos para distribuir”, destaca Mariana.

Apesar de as evidências apontarem para a confirmação das hipóteses, Mariana Lacerda destaca que a pesquisa ainda não está concluída e que os estudos continuam a ser feitos.

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