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Fortaleza das feiras: Gentilândia entre o que foi e o que ainda é
Reportagem Seriada

Fortaleza das feiras: Gentilândia entre o que foi e o que ainda é

Como uma das mais tradicionais feiras livres de Fortaleza vem sobrevivendo por meio da história de seus feirantes e dos encontros de seus clientes
Episódio 2

Fortaleza das feiras: Gentilândia entre o que foi e o que ainda é

Como uma das mais tradicionais feiras livres de Fortaleza vem sobrevivendo por meio da história de seus feirantes e dos encontros de seus clientes
Episódio 2
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A tradicional feira da Gentilândia, que há mais de cinco décadas ocupa, nas manhãs de finais de semana, o espaço da praça de mesmo nome, no Benfica, chega a 2024 com mais fala do que feira. Por volta das 8 horas de um domingo nublado, os dois corredores de barraquinhas montadas no local até eram costurados por clientes carregando sacolas e carrinhos de compras, mas mais que os produtos à venda, era a expectativa da boa prosa que os agitava.

É que as dezenas — os mais saudosos falam da "quase centena" — de barraquinhas com itens diversos foram se reduzindo, pouco a pouco, ano a ano, até sobrar o essencial: frutas, verduras, legumes, carnes, queijos e alguns grãos. Antes espalhada por toda a extensão da praça, a feira se refugiou em seu miolo próprio, em um dos cantos, mais exatamente na esquina entre as ruas Santo Antônio e Paulino Nogueira.

A aposentada Heraclides Lima: 40 anos comprando carne na feira(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A aposentada Heraclides Lima: 40 anos comprando carne na feira

Hoje, quem vende e quem compra, quem vai e quem volta, está interessado sobretudo na manutenção de uma tradição que parece encontrar naquele canto de praça seu último porto. É o costume da conversa, da pechincha e da piada. O repórter pergunta a um e a resposta vem de todos. Quando pedi à dona Heraclides Lima, em uma barraca de carnes, que me dissesse há quanto tempo frequentava a feira, foi o feirante que rebateu:

— "Faz quanto tempo mesmo, seu Ribamar, que eu venho por aqui?"

— "Quase 40 anos. Há quase 40 anos que vendo carne pra ela."

A conversa de um vira a conversa de outro, e o assunto com dona Heraclides — "Moro aqui perto, venho a pé e compro tudo aqui: fruta, verdura, queijo, paçoca e carne" — já é assunto de seu Ribamar, que nos quase 50 anos de feira da Gentilândia já tem assunto com quase toda a gente. "Ele é a autoridade aqui, pode entrevistar", grita um rapaz risonho em outra barraca.

 

 

O último cortador de carne

Seu Ribamar Max é o último cortador de carnes da feira da Gentilândia. Como todo bom feirante, parece ter 100 braços e 1.000 bocas: responde às nossas perguntas enquanto negocia com os clientes, corta carne, provoca os colegas, arranca osso, chama o funcionário ("É o Besouro do Cão, ele tava aqui nestante") e faz piada com o preço da picanha.

"Aqui tinha 50 bancas só de carne de gado. Hoje sou eu sozinho. Entrei em 1978, mas meu pai já cortava boi aqui há muitos anos. E meus tios todos cortavam boi nas feiras, nos mercadinhos. Comecei a cortar com 13 anos, e em outubro do ano passado completei 60 anos de corte", vai falando, enquanto com uma faca de açougueiro dá golpes certeiros na carne de dona Heraclides.

Último cortador de carnes da feira da Gentilândia, seu Ribamar Max vende no local desde a década de 1970(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Último cortador de carnes da feira da Gentilândia, seu Ribamar Max vende no local desde a década de 1970

A tradição do corte é o que faz seu Ribamar sair de Caucaia, todos os sábados e domingos, para levantar sua barraca na Gentilândia. "Essa feira aqui era todinha lotada. Diminuiu muito. Mas tenho os mesmos fregueses de sempre, às vezes aparece até mais. Toda a vida a feira pra mim foi boa. Nada me atrapalha", afirma ele, zombando do argumento dos colegas de que a chegada das grandes redes de supermercados prejudicou o negócio.

No esforço otimista pela manutenção de uma tradição familiar que se transformou em costume de bairro, seu Ribamar não encontra espaço para queixas. Nem quanto o assunto são os 25 filhos que diz ter e que passam longe de qualquer atividade na feira. "Eles procuraram o rumo deles", contou enquanto chamava outra vez por Besouro do Cão, o mais próximo que tem de um herdeiro no corte de carnes.

 

 

Praça dos encontros

O programa inadiável dos domingos da fisioterapeuta Marisa Magalhães, moradora da Vila União, é tomar café da manhã com a família em uma simpática casinha em frente à praça da Gentilândia e, depois, passar na feira para fazer as compras da semana. Conversamos enquanto ela inspecionava o coentro de uma barraca de verduras.

"Minha vida inteira frequentei a feira e a praça. E, infelizmente, ela tá ficando mais compacta. Antes era lotada, vendia roupa, peixe, tinha várias bancas de carne, uma diversidade de bancas com verdura. Tinha a parte de alumínio, plásticos. Era bem diversificado. O que você procurasse, tinha, como um pequeno varejo", relembra.

Folhas verdes e frescas são um dos produtos mais procurados pelos clientes da feira(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Folhas verdes e frescas são um dos produtos mais procurados pelos clientes da feira

Marisa também atribui o encolhimento da feira à proliferação das redes de supermercado, mas assume que não está em seus planos abandonar o espaço: "Eu continuo vindo porque acho as coisas mais fresquinhas, eles trazem tudo do dia, as verduras são boas, as frutas são boas. Você compra com qualidade".

Não muito distante da banca das verduras, um grupo de quatro amigos reproduz, com meticulosa exatidão, a imagem que guardamos dos colóquios informais das praças públicas. Quem fala conosco é o contador e advogado Valdir Herbster Filho, ex-prefeito de Amontada, município do norte do Ceará, e frequentador da feira desde a década de 1970, quando morava a uma quadra da praça.

Os amigos Valdir, Ronaldo, Humberto e Getúlio: encontro na feira todos os domingos(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Os amigos Valdir, Ronaldo, Humberto e Getúlio: encontro na feira todos os domingos

"Venho aqui todo sábado e domingo. Lá em casa, sou o responsável pela carne e pelo queijo, e aqui tem uma carne boa, sadia. Faço as compras e ficamos conversando. Falamos de todos os assuntos: política, atualidades e das cidades do Interior. É uma terapia que a gente faz com o maior prazer do mundo..." vai contando, até ser interrompido por um dos amigos, o auditor da Receita Federal Humberto Sales.

"Às vezes ficamos aqui conversando, só às vezes" — diz Humberto. "Só quando é um ambiente de alto nível. Pracolá (aponta para a barraca ao lado) tem uns ambientes que eu, pelo menos, não vou. Só tem fuxico. A gente compra as coisas e, quando dá as costas, eles gritam 'vaaaai, carniça'". Na banca do fuxico, sem negar ou admitir, todos gargalham.

 

 

Sobrevivência e tradição

A duas barracas de onde estavam os amigos, seu Raimundo Nonato alinhava em silêncio seus produtos, com uma tranquilidade que parecia impossível para a feira. Temperos, castanhas, queijos, rapaduras, doces, raízes, lambedores, cajuínas, comida para passarinho… Cada item recebia parcela de atenção em sua arrumação meticulosa.

À nossa apresentação, respondeu com uma simpatia contida e uma dicção perfeita. "Trabalho aqui há 40 anos. Sou de Santana do Acaraú e comecei vendendo como uma aventura. Vim do Interior pra cá, e o primeiro serviço que encontrei foi aqui na feira. Comecei só com remédio caseiro, mas a gente vai se apegando a mais coisas", explica.

Natural de Santana do Acaraú, seu Raimundo Nonato vende uma infinidade de produtos, de lambedouros a queijos e raízes(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Natural de Santana do Acaraú, seu Raimundo Nonato vende uma infinidade de produtos, de lambedouros a queijos e raízes

Seu Raimundo enxerga a diminuição do movimento na praça como consequência natural das novas épocas: "O movimento diminuiu bastante, tanto a frequência dos clientes quanto o número de feirantes. É o tempo. Os jovens gostam de shopping e do Ifood, que entrega tudo pronto. Eles não vêm pra feira atrás de mercadoria. E os senhores de idade, muitos já se foram, principalmente durante a pandemia".

Ele compartilha da opinião geral dos feirantes sobre a concorrência desleal dos supermercados. Mas, como um poeta das praças, encontra sabedoria no que para alguns é apenas crise: "Os mercantis têm facilidades, promoções, entregam a domicílio. Mas existe a tradição e a sobrevivência. Entre os feirantes, a sobrevivência. Entre os clientes, a tradição. E assim a gente vai seguindo", conclui.

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