Uma das camisas mais pesadas do futebol cearense merece o zelo, o cuidado e a paixão que correspondem ao tamanho de seu significado. Foi assim que a história de Francisco Gilmar Bezerra, o Huala, cruzou a do Ferroviário Atlético Clube.
Nascido em 1964, no bairro São Gerardo, em Fortaleza, o mordomo do Tubarão, como se intitula, trilhou sua caminhada até a Barra do Ceará, onde teve que superar obstáculos da vida e criou enorme identificação.
Na sua trajetória, viveu diversas histórias — que adora contar. Foi importante na formação de jovens, criou inúmeros apelidos, descobriu estrelas como o atacante Mota e se tornou uma figura emblemática do time que cita ao falar de seu maior sonho: “Chegar aos 90 anos e, antes de morrer, ver o Ferroviário na Primeira Divisão”. Como registrado no hino do escrete coral, tornaram-se “companheiros inseparáveis na alegria e na tristeza”.
Hoje residente do bairro Henrique Jorge e pai de três filhos, Huala chegou ao Ferroviário em 1994 e ficou até 2001 em sua primeira passagem. Passando por Fortaleza, Uniclinic (hoje Atlético-CE) e União, o emblemático roupeiro coral chegou a “largar” o futebol e passar um tempo desempregado.
Contudo, citou que “se Maomé não for à montanha, a montanha não vai a Maomé”, então teve outros trabalhos, como serígrafo, sapateiro, serviços gerais e estampador (sublimação). A volta para o Ferroviário aconteceu em 2017, onde está até hoje e, segundo ele, onde sempre quer estar.
Apaixonado pelo Tubarão, Huala guarda todos os jornais que representam conquistas corais. Segundo ele, sabe a escalação completa de todos os grandes jogos do time. Gosta sempre de desafiar os jogadores mais jovens a acertarem, coloca até prêmios, pois sabe que somente ele saberia responder.
“Nós somos aquelas pessoas que ficam atrás das cortinas. Tem um grande espetáculo, mas todo mundo precisa saber que por trás do espetáculo que é o futebol, com os atores sendo os jogadores, quem faz acontecer são os funcionários. A escalação começa no porteiro e vai até o ponta-esquerda do time”, iniciou.
Ao cruzar os portões da Vila Olímpica Elzir Cabral, por onde passa todos os dias, aproximadamente às 6h30min, Huala é recebido pelo porteiro da noite, que ainda está lá no horário — o primeiro de sua escalação hipotética —, cujo aceno amistoso marca o início de sua jornada. O ambiente ganha rostos conhecidos e nomes importantes em seu dia a dia. O segundo cumprimento costuma ser para o incansável zelador: “Bora, Augusto!”.
Enquanto se prepara para iniciar suas tarefas, o corredor se enche de vozes, Huala encontra a equipe da cozinha. Kelly, Flavinho e Paulo, cada um com sua energia característica, finalizam as refeições na cozinha do clube.
Com serenidade — nem sempre característica — e destreza, Huala dá início à sua rotina diária. As máquinas de lavar são ligadas enquanto ele organiza as peças de vestuário, cuidadosamente penduradas em seus lugares designados na rouparia. Cada uniforme é preparado com esmero e dobrado com precisão, sempre prontos para receber os atletas com conforto.
O clima no Ferroviário é de camaradagem e colaboração. Huala compartilha histórias e piadas com seus colegas, formando laços que vão além do serviço. Para ele, o clube se tornou mais do que um local de trabalho.
À medida que o dia avança, ele continua sua missão. “Estou trabalhando com o que eu gosto de fazer e exatamente no lugar em que quero estar. É unir o útil ao agradável”, relatou o mordomo.
“Entre os funcionários, todo mundo é irmão. Na época da pandemia, [alguns funcionários] se juntavam e me levavam cestas básicas de 15 em 15 dias. Quando eu estava desempregado [após a primeira passagem], eles fizeram um jogo beneficente para mim. No dia, quem não levou alimento me deu dinheiro para os temperos. Isso foi em 2010”, completou.
Huala não deixou de ressaltar aqueles que entram em campo, que ele diz serem “os atores do espetáculo". “Eu tenho o maior respeito do mundo pelos jogadores, eu fico indignado quando eu estou no estádio e a torcida está xingando o cara que eu cuido. Eu saio até de perto, os caras sabem que às vezes sou esquentado. Meu principal apoio vem dos jogadores, eu corro para eles e eles correm por mim, pelo clube e pela família deles”, finalizou.
"Quando um atleta chega em um clube, ele tem que fazer amizade com três pessoas: o cozinheiro, o massagista e o mordomo". Com orgulho, ele rejeita a noção de que seu papel seja insignificante. "Eu me considero um mordomo. Roupeiro é coisa de time pequeno. Sem menosprezar os outros, mas o Ferroviário é um time grande", enfatiza.
Com carinho pelos atletas que passam pelo clube, Huala destaca sua abordagem centrada nas pessoas. "Eu trabalho há muito tempo com seres humanos". Para ele, cada membro da equipe é único e merece ser compreendido e apoiado em sua jornada esportiva.
Como exemplo, relembrou com nostalgia. "Um grupo que tenho saudades é o de 2017", destacando a formação rápida e impactante da equipe que deixou uma marca indelével em sua memória. "Ali começou tudo", recorda, reverenciando o grupo que se tornaria campeão brasileiro e descrevendo o jogo do título como um momento que ficará para sempre gravado.
“Quando a gente vai para o jogo, que me pedem para arrumar as chuteiras, eu não lavo só as dos jogadores que vão entrar em campo. Eu lavo as de todos eles. Podem ter 50 pares, podem ter certeza que vou lavar cada uma. E são muitos roupeiros que nem lavam a chuteira, ainda bem que eu sou mordomo”, diz, com bom humor.
“Meu irmão trabalha com chuteiras lá no (bairro) Antônio Bezerra, é conhecido como ‘Break’, ele era entregador de camisas, não era nem treinador, do Estação e me convidou para ir assistir o jogo. Eu não queria ir, já que estava há muito tempo sem folga e queria descansar, na época eu estava no amador. Mas ele disse que eu precisava ver um cara que jogava lá”, iniciou.
Huala conta que chegou ao local do jogo e viu um rapaz atuando como zagueiro. Quando o jogo estava com o placar zerado, o jovem abriu o placar com um gol de cabeça. Segundo ele, o adversário empatou, mas o time de Mota voltou à frente do placar. A surpresa viria no final: em uma falta próxima à área, o zagueiro (Mota) subiu para cobrar. Acertou o ângulo. “Um golaço de falta. Ganharam de 3 a 1 e logo convidei ele para vir. Cheguei e disse: 'Leve só a chuteira'”.
“Na época, o treinador era o finado Oliveira Ceará. Eu falei para ele: 'Olha, vou trazer um jogador aí, bota o rapaz pelo menos no time de baixo', e ele logo disse que eu só levava jogador ruim, não botou muita fé”, contou Huala.
“Ele já tinha jogado de zagueiro, lateral, goleiro, meia-esquerda e qualquer outra posição, mas perguntei a posição dele e a resposta foi firme: 'Eu sou atacante!'. O Oliveira me deu a liberdade de dar o material para ele, para jogar no time de baixo. O Mota foi e fez um gol de cabeça no primeiro jogo do time de baixo. No segundo tempo do jogo do time de cima, ele tira o artilheiro da época e coloca o Mota, aí ele faz mais dois no time de cima. Quando eu olhei, eles já estavam pedindo os documentos do homem”, completou.
Huala finalizou dizendo que Mota é um dos únicos três jogadores que chama ele de Gilmar: “Ele, o Leandro, que era volante do Fortaleza, e o goleiro Potiguar, que trabalhou comigo na base”.
Em seu local de trabalho, na rouparia, ao lado de um dos caixotes — usado para guardar chuteiras — que confeccionou com as próprias mãos, Huala relembrou os tempos de juventude com lágrimas que pediam para saltar dos olhos. "Eu queria ser jogador de futebol", confessa. "Todos que gostam de futebol têm esse sonho", completa, revelando um anseio que nunca se dissipou por completo.
Apesar de não ter conseguido realizar seu sonho de infância nos campos, Huala encontrou um lugar no futebol de outra maneira. "Eu sou pior que advogado por confusão, eu sempre estou no meio", brincou. "Aqui não é diferente, estou no meio deles, é uma satisfação", dizia, enquanto transformava o semblante nostálgico em um sorriso.
Recordando os dias de aspirações, Huala compartilhou suas tentativas de se tornar um jogador profissional: "Tentei peneiras. Eu vim até aqui mesmo, no Ferroviário. Tentei no Ceará também. No Fortaleza eu nem fui", relembra. "Não vou dizer que eu era o cara ou que era bom jogador, mas dava para passar", pondera.
A memória daquele dia — em sua última tentativa — ainda reside em sua mente, quando recebeu a notícia de que as inscrições para as peneiras tinham se encerrado em seu último ano de tentativas. "Foi o dia que o finado Chico chegou para a gente e disse que acabou o 'dente-de-leite' e as inscrições", recorda, com um suspiro de tristeza.
“Meu maior sonho é chegar aos 90 anos e, antes de morrer, ver o Ferroviário na Primeira Divisão. Queria muito ainda estar por aqui. Mais do que isso, só muita saúde para mim e minha família, e paz no mundo também”, relatou Huala.
Para ele, a vida só faz sentido se tiver obstáculos. “Fazer o que gosta é bom demais, mas a gente só consegue o que quer com muitos sacrifícios. O gostoso é vencer esses sacrifícios para atingir todos os seus objetivos”.
Seu sonho já não faria sentido se não envolvesse o Ferroviário. “Temos tudo a ver. Digo que sou o pingo no 'i' do nome Ferroviário. Você gostar do que faz e estar onde ama, melhora sua vida em 100%”, disse ele, com um sorriso estampado, sentado no caixote do qual tem muito ciúme.
Entre sorrisos e memórias, o mordomo compartilha as histórias que moldaram seu amor pelo Ferroviário, um vínculo que transcende gerações em sua família. "Meus dois irmãos são doentes pelo Ferroviário", revelou, com orgulho. "Um deles vem sempre aqui consertar chuteiras", acrescentou.
No entanto, nem todos seguiram o mesmo caminho. "Sempre tem que ter um desviado", brincou. "O mais novo é (torcedor do) Ceará", admitiu. "Mas aí fazer o que, né? Ninguém pode tirar o gosto de ninguém".
Remontando às raízes, Huala reflete sobre as primeiras impressões que moldaram sua lealdade ao Ferroviário. "Quando eu era pequeno, com meus 12 ou 13 anos, meu pai jogava bola e me levou para jogar um amistoso no Fortaleza. Eu olhei para as cores do Fortaleza, mas não simpatizei, não gostei".
No entanto, outra oportunidade surgiu, desta vez em um confronto contra o Ceará. "Sem desrespeitar, mas também não bateu aquele 'tchan'", admitiu.
"Meu irmão mais velho, no dia 7 de setembro de 1979, me levou para um amistoso de portões abertos no PV. Na hora que vi o time [o Ferroviário] entrar em campo, eu disse: 'E esse!'. Meu olho brilhou desse exato jeito que está agora, fico até emocionado", confessou.
Enquanto contava sua história e rotina, a porta da rouparia abre e Huala é surpreendido com uma fala: “Vocês vão ver, esse cara não olha para foto”. A voz era de Douglas Dias, goleiro do Tubarão. Antes de falar de sua relação com o experiente arqueiro, Huala contou a história do motivo de não olhar para as fotos.
“Isso faz muito tempo. Um grupo de reportagem foi tirar uma foto minha após um jogo, mas eu estava preocupado com as roupas do outro lado do campo. Fiquei olhando para o outro lado na ponta do pé. Daí, escutei um: 'Eita, menino, esse roupeiro é mascarado, não olha para a foto de jeito nenhum'. Depois, pode ver em qualquer foto minha, não olho para nenhuma”, contou, distribuindo gargalhadas.
Huala conta que conheceu Douglas em 2006, quando trabalhava no Fortaleza, e até hoje eles são grandes amigos. Diz também que gosta muito do experiente atacante Ciel: “É um cara incrível. Ele gosta de me ver com raiva, ele diz que eu só sou eu quando estou com raiva. Eu sou meio marrento mesmo, mas para trabalhar com esses caras, tem que ser assim. Se não for, eles 'montam' em você”, ponderou.
“Esses caras fazem parte da minha vida, assim como eu faço parte da vida deles, mas tratos da mesma forma. Aqui, pelo menos para mim, é todo mundo igual. Aqui não tem titular ou reserva”, completou.
Contudo, há um jogador que recebe um carinho especial de Huala, tanto na parte profissional como no quesito convivência. “Eu tenho um ídolo incondicional. Fora Deus, ele é meu ídolo. Ele se chama Edson Cariús. Para mim, ele é meu filho, ele tem a idade do meu menino. Ele é um exemplo, alguém marcante na minha vida, que nunca vou esquecer”, disse, recordando do histórico artilheiro coral.
Para encerrar, Huala contou que esse assunto era importante para ele e a chegada surpreendente de Douglas Dias merecia um momento para ele quebrar esse paradigma. “Então vai ser agora. Quero uma foto e vou olhar para a câmera”.
Huala ressalta que o esporte é essencial na vida das crianças. Por isso, comentou sobre o impacto das recentes iniciativas do Ferroviário em levar jovens de projetos sociais da Barra do Ceará para o estádio: "É uma forma das crianças entenderem o esporte como um modo de viver", destacou.
Em seu próprio bairro, ele testemunha os desafios enfrentados pela juventude local e reconhece o poder do esporte como um catalisador de mudança. "No meu próprio bairro, tem uma rapaziada que infelizmente não consegue passar nem dos 15 anos", revelou, destacando a realidade difícil que muitos enfrentam. "Vivem no mundo, lá você aprende o que é bom e, principalmente, o que é ruim. O esporte é um caminho bom para fugir disso", afirmou.
Com uma história enriquecida pela dedicação ao clube, Huala compartilha o legado que ajudou a moldar ao longo dos anos. "Dos 300 ou 400 meninos que passaram por aqui, nas minhas mãos, todos são cidadãos", orgulha-se.
"Quando eles passam do portão para cá, quem direciona somos nós". Huala reconhece o papel crucial que desempenha na orientação e no apoio desses jovens. "Aprendi muito, mas também ensinei muitas coisas que os jovens não sabiam", finalizou.
Com uma aura brincalhona que simulava mistério e premonição, o mordomo conta que já foi carinhosamente apelidado de "Bruxo da Barra". "Preciso contar uma história que chega a arrepiar", iniciou, envolvendo a conversa com o suspense de suas previsões incomuns.
Na memória vívida da segunda fase da Copa do Brasil de 2019, contra o Sport, ele recorda como passou a semana confiante de que o jogo terminaria em empate, culminando em uma vitória nos pênaltis. "Falei que nosso goleiro iria pegar dois pênaltis, foi exatamente que aconteceu, nesse ano eu adivinhava tudo".
Demonstrando sua habilidade premonitória em outras ocasiões cruciais, Huala relembra seu papel como profeta de campo contra o Horizonte e até mesmo na final, em que previu um momento decisivo para o volante do time, que viria a marcar um gol no jogo contra o Fortaleza.
Huala brinca que, até hoje, ainda recebe pedidos para adivinhar o placar dos jogos e garante que tem uma excelente média de acerto. Para esta temporada, a previsão do profissional diz que o Ferroviário subirá para a Série B sob o comando de Maurício Copertino, mesmo com todas as dificuldades. Para ele, o comandante é “diferenciado” e fará história no Tubarão.
Especial do O POVO+ traz perfil de personagens que atuam nos bastidores e também constroem a história do futebol cearense