A sentença foi de oito anos e três meses de prisão, multa de 1.170 salários-mínimos e uma indenização de R$ 303,6 mil por danos morais coletivos. Condenado pela Justiça Federal, o humorista Léo Lins voltou ao centro de um debate inflamado que cruza arte, política, direito e sociedade: até onde pode ir uma piada?
A decisão, proferida pela juíza Barbara de Lima Iseppi, da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, considera que Léo Lins pratica “discursos discriminatórios como meio de vida”, convertendo o preconceito em conteúdo e renda por meio de seus shows e da monetização nas redes.
No centro da polêmica está o stand-up “Perturbador”, espetáculo gravado em 2022 e publicado em seu canal no YouTube, com mais de 3 milhões de visualizações.
Em pouco mais de uma hora, Léo Lins fez piadas com pessoas negras, idosas, com HIV, obesas, LGBTQIA+, judeus, indígenas, nordestinos, evangélicos e pessoas com deficiência. Também respondeu, ao longo dos últimos anos, a outros processos por falas que envolvem pedofilia, racismo e zoofilia.
Para parte da opinião pública, trata-se de censura — um ataque direto à liberdade de expressão e ao papel histórico do humor de provocar, transgredir e desafiar tabus. Para outros, é o freio necessário àquilo que deixou de ser piada e passou a ser discurso de ódio disfarçado de comédia.
Mas afinal, o que pode — e o que não pode — o humor? Existe um limite jurídico? E um limite ético?
Na Constituição Federal de 1988, o artigo 5º garante a inviolabilidade da liberdade de expressão, o que inclui a manifestação artística. Contudo, o mesmo artigo protege também a honra, a dignidade e a imagem das pessoas.
Em outras palavras: a liberdade de um humorista termina onde começa o direito do outro de não ser publicamente atacado, humilhado ou estigmatizado.
Quem explica é o advogado e historiador Lorenzo Fonseca Marcello, estudioso da área e defensor da liberdade de expressão. “A liberdade de expressão é um bem jurídico tutelado, mas não absoluto. Ela encontra limites quando colide com outros direitos fundamentais”, afirma.
De acordo com o jurista, a responsabilização legal se impõe quando há dolo — ou seja, a intenção deliberada de ofender, incitar o preconceito ou violar direitos.
“O discurso de ódio é justamente esse ponto de ruptura: quando o conteúdo deixa de ser crítica ou sátira e se transforma em ofensa sistemática, direta ou indireta, a grupos protegidos constitucionalmente”, explica.
A legislação brasileira não criminaliza o mau gosto nem o humor agressivo por si só. Mas prevê penalidades para crimes contra a honra (como calúnia, difamação e injúria) e para atos discriminatórios, previstos na Lei nº 7.716/89, especialmente quando motivados por raça, cor, etnia, religião, deficiência, orientação sexual ou origem.
O caso de Léo Lins, no entanto, é mais controverso do que parece. Para Lorenzo Marcello, a condenação imposta ao humorista traz inseguranças jurídicas importantes, principalmente no que diz respeito à ausência de uma vítima direta no processo.
“Não houve ofendidos determinados. O processo foi movido exclusivamente pelo Ministério Público, defendendo uma espécie de ‘honra coletiva abstrata’, tese controversa”, analisa.
De acordo com o advogado, o Direito brasileiro exige a individualização da conduta e a demonstração de dano concreto: “A condenação buscou proteger uma ideia vaga de ofensa social, mas sem a devida correlação fática entre a fala e a vítima identificável. Isso fere pilares fundamentais do Estado de Direito”.
Ele também questiona a interpretação expansiva do direito penal no caso, algo que considera arriscado. “O ordenamento jurídico não deve ser usado como resposta simbólica às pressões sociais. A legalidade penal é estrita”, diz.
Mesmo com as críticas, Marcello reconhece que há um campo legítimo de debate ético que transcende a jurisprudência. “Existe uma ética no humor, formada por parâmetros sociais dinâmicos. Mesmo sem dolo, o humorista pode ser responsabilizado civilmente por danos morais causados”, atesta.
Embora discorde dos fundamentos da condenação, Lorenzo não descarta o papel do humor como agente social. “O humorista é o termômetro do Estado Democrático de Direito. Quando há ameaça às liberdades, eles estão entre os primeiros a sofrerem perseguições”, compara.
Ainda assim, o advogado destaca que liberdade de expressão não significa imunidade total. “A liberdade não exime o autor das consequências sociais e civis do que diz, principalmente em temas sensíveis como racismo, deficiência ou abuso sexual.”
Sobre a suposta “ditadura do politicamente correto”, expressão usada por muitos humoristas, Lorenzo é cauteloso: “É uma construção retórica. A Constituição não autoriza censura prévia, mas permite responsabilização posterior. O incômodo com novos padrões sociais não configura censura.”
A decisão judicial contra Léo Lins gerou apreensão entre profissionais da comédia, que veem na sentença um possível precedente perigoso. Lorenzo Marcello, no entanto, considera prematuro esse temor.
“A responsabilização penal de humoristas ainda é exceção. A jurisprudência brasileira caminha com cautela nesse campo. A criminalização do humor como regra ainda está longe de se consolidar.”
Mesmo assim, ele reconhece o desafio. “O Judiciário deve encontrar um equilíbrio entre a dignidade humana e a liberdade de expressão. É legítimo proteger minorias, mas é perigoso transformar o Direito Penal em instrumento de moralização simbólica.”
Em tempos de polarização, memes e cancelamentos, o riso deixou de ser apenas alívio — tornou-se campo de disputa. E talvez nunca tenha sido diferente. O humor brasileiro sempre cutucou os nervos da sociedade, expôs suas contradições, jogou luz sobre seus absurdos. Mas agora, mais do que nunca, ele também precisa responder: a quem diverte essa piada? E quem ela está ferindo?
Fazer rir é coisa séria — e, para Aluísio Júnior, exige tanto técnica quanto propósito. “A minha vida agora é dedicada a humor como terapia”, diz o humorista cearense, que também é psicólogo formado com especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC).
“Inclusive o meu TCC foi ‘O uso do humor como terapia no transtorno ansiolítico’. Traduzindo: como usar humor para terapia na ansiedade.”
O humor, observa ele, ganhou ainda mais peso após a pandemia de Covid-19. “Depois da pandemia, o ser humano em si está muito mais sensível. A gente trouxe da pandemia o trauma de perdas de primeiro grau — pais, filhos, amigos. A gente perdeu emprego, muita gente que até hoje não recuperou seus negócios. Aí vem a ansiedade, a depressão. Tudo já existia, mas a pandemia potencializou.”
Com 28 anos de palco, Aluísio viu a sensibilidade do público crescer — e a sua abordagem, mudar.
“A gente começou a se adaptar, a fazer mais o palco com o texto, pelo menos da minha parte, do que aquele improviso que a gente fazia com a plateia. Porque as pessoas se sensibilizam. Às vezes o trauma tá mais à flor da pele.”
Hoje, antes da piada, ele observa. Estuda. Escolhe. “Quando eu digo o que tu quer ouvir, eu te ganho”, afirma.
“Se eu vejo um casal, aí eu vou fazer uma piadinha de casal. Se eu vejo que o marido se soltou com a esposa, eu vou naquela linha. Piada de criança, piada de idoso, piada de turista... Hoje em dia, eu começo conversando com a plateia. ‘Que mulher maravilhosa, olha que mulher linda...’. Você já exalta a pessoa. Não é aquela coisa mais antiga de ‘o homem careca, a mulher boa’. Hoje em dia a gente tá exaltando a pessoa.”
Sua leitura do limite do humor também se transformou com o tempo.
“Se você me perguntar qual é o limite do humor, eu digo: o humor tem limite. Se você me perguntasse sete anos atrás, eu diria que não. Agora eu tenho que dizer — até pela minha segunda profissão, psicólogo — que o limite de qualquer coisa, não só do humor, é a ofensa.”
Ainda que nem sempre concorde com a reação do outro, ele reconhece a legitimidade da dor.
“Posso até não concordar — que seja um ‘não, eu não ofendi, não quis dizer pra ofender’. Não concordar, eu tenho direito. Mas você tem direito também de se sensibilizar, e eu tenho que respeitar o seu direito.”
Esse olhar atravessa também sua atuação como psicólogo — em consultório ou em palestra motivacional, onde une humor, ciência e espiritualidade.
“O humor me deu a oratória. A psicologia me deu a profundidade. E aí eu inventei a ‘humortivação’: humor, motivação e ação. Porque não adianta motivar se a pessoa não agir.”
Se para Aluisio o humor abre portas para cuidar do outro, para o professor Márcio Acselrad, ele é, antes de tudo, uma expressão estética fundamental da humanidade — tão essencial quanto a música, a poesia ou a filosofia.
“Entendo o compromisso primordial do humorista, do comediante, com o riso. Esse é o compromisso. E é isso que deve ser mantido”, afirma.
Psicólogo e pesquisador da Universidade de Fortaleza (Unifor), Márcio coordena há mais de duas décadas o Laboratório do Humor e do Riso, o Labgraça. Ao longo dos anos, o grupo desenvolveu pesquisas diversas, publicou artigos e formou gerações de estudantes interessados no riso como objeto de estudo.
Hoje, o laboratório funciona como um grupo de estudos voltado à filosofia — sem abandonar o tema de fundo. “Passamos os últimos anos estudando Nietzsche, que é um filósofo para quem o humor é muito fundamental.”
Para ele, o riso é uma das respostas mais complexas e refinadas que o ser humano dá ao fato de estar vivo. “Nós rimos porque vivemos em uma cultura, em uma sociedade, porque somos dotados de linguagem, porque de alguma maneira temos consciência da própria mortalidade”, explica.
“A minha hipótese é que a gênese do humor está na consciência da mortalidade. Então, no mesmo momento em que a gente produz filosofia, arte, música, também produz humor.”
O humor, nesse sentido, é uma forma de enfrentamento da existência — e, como toda linguagem artística, carrega em si ambivalências.
“Historicamente, ele tem sido usado como ferramenta de crítica e denúncia, e também como instrumento de dominação. Muito mais como crítica, mas há exceções emblemáticas, como o uso do humor no nazismo para diminuir o povo judeu.”
Essa ambiguidade faz com que o debate sobre os limites do humor seja, para ele, inevitável — mas delicado.
“Eu não entendo que ninguém deva colocar limites prévios ao que o humor pode ou não pode fazer. Seria como censurar uma música, um poema ou uma pintura. Imediatamente surgem questões como: quem decide o que pode ou não pode? A lei? O público? A ética?”
Para Acselrad, nenhum desses critérios é absoluto. “As leis mudam, variam de lugar para lugar, de tempo para tempo. O público menos ainda: de forma nenhuma deve ser o público quem define o que pode ou não pode. Não é o público que decide o que um artista vai fazer. É o compromisso estético dele, a sua proposta.”
Essa liberdade, no entanto, não apaga o risco: “O humor pode reproduzir hierarquias e violências simbólicas. Pode servir para criticar os poderosos — e essa é a sua principal missão —, mas também pode ser usado para fazer pouco das minorias. É uma arma, e como toda arma, depende de quem a usa e com que intenção”.
Mesmo assim, o professor e psicoterapeuta não defende restrições prévias.
“Faz parte do jogo. Não acho que se deva definir de antemão o que pode ou não pode ser alvo de piada. Claro que isso é polêmico, e entendo que haja quem pense diferente. Isso não é uma verdade absoluta — é só a maneira como eu penso. Penso o humor sempre ao lado da liberdade, da liberdade criativa.”
Num mundo hiperconectado, polarizado e sensível, Acselrad reconhece que a arte — e o humor — podem ser tolhidos.
“Entendo perfeitamente que muitos se sintam tolhidos pela ética do politicamente correto, como vários tipos de arte que são cerceados por moralistas de plantão que querem definir quem pode dizer o quê.”
Mas ele reforça: o riso não precisa ser justificado. “O humor não tem como objetivo fazer pensar. Ele pode fazer pensar, e é ótimo quando isso acontece, mas o seu compromisso principal é com o riso. Como toda arte, o humor é plural. E é isso que deve ser mantido.”
Talvez não exista lugar melhor para observar essas transformações do que o Ceará, onde o riso tem sotaque.
Chamado de “terra do humor”, o Estado construiu, ao longo das décadas, uma reputação que transcende o riso fácil. Aqui, o humor foi instrumento de sobrevivência nas periferias, alicerce de carreiras nacionais, produto de exportação e ponto turístico.
De Chico Anysio a Rossicléa, de Falcão a Max Petterson, de praças de alimentação a palcos renomados, o humor cearense virou identidade. Mas ele também mudou — e está mudando.
Hoje, velhos personagens de saia dividem espaço com criadores de conteúdo periféricos, jovens LGBTQIA+ que viralizam com esquetes, roteiristas que falam de saúde mental, influenciadores que fazem rir sem ofender. A molecagem permanece, mas tem ganhado novas camadas: mais afetiva, mais consciente, mais plural.
"Oie, como vai? :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Se preferir, me escreva um e-mail (karyne.lane@opovo.com.br), ficarei feliz de te ler. Até a próxima!"