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Mercado da cannabis evolui, mas ainda vive à sombra da insegurança jurídica no Brasil
Reportagem Seriada

Mercado da cannabis evolui, mas ainda vive à sombra da insegurança jurídica no Brasil

Responsável por movimentar um mercado milionário, a cannabis medicinal tem ganhado destaque no Brasil nos últimos anos e projetado perspectivas de cifras invejáveis. Apesar disso, o segmento ainda está ancorado em bases institucionais instáveis, sem uma lei federal que regulamente seu funcionamento
Episódio 3

Mercado da cannabis evolui, mas ainda vive à sombra da insegurança jurídica no Brasil

Responsável por movimentar um mercado milionário, a cannabis medicinal tem ganhado destaque no Brasil nos últimos anos e projetado perspectivas de cifras invejáveis. Apesar disso, o segmento ainda está ancorado em bases institucionais instáveis, sem uma lei federal que regulamente seu funcionamento
Episódio 3
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Longe das pesquisas durante décadas, a cannabis começou a chamar atenção do universo acadêmico brasileiro a partir da virada dos anos 2000. Ganhando relevância principalmente de pesquisadores do campo da saúde, a planta de poderes medicinais se revelou matéria-prima para produção de inúmeros medicamentos, os quais têm servido no tratamento de pacientes vítimas das mais diversas doenças. Em meio ao aumento de sua relevância, a planta tem hoje apresentado perspectivas econômicas positivas, apesar de ainda contar com raízes fincadas em uma insegurança jurídica nacional.

Ao fazer uma viagem no tempo, é possível perceber a presença da maconha já no chamado “descobrimento do Brasil”. Para se ter ideia, os navios responsáveis por cruzar o Atlântico, com colonizadores brancos e negros escravizados, eram praticamente todos construídos do cânhamo. “De uma certa maneira, a história do Brasil está intimamente ligada à planta Cannabis sativa L., desde a chegada à nova terra das primeiras caravelas portuguesas em 1500. Não só as velas, mas também o cordame daquelas frágeis embarcações, eram feitas de fibra de cânhamo”, escreve o médico Elisaldo Carlini (1930-2020), no artigo “A história da maconha no Brasil”.

Considerado referência mundial e um dos pioneiros nos estudos farmacológicos sobre o potencial terapêutico da cannabis e de outras substâncias psicoativa, Carlini é também um dos responsáveis por alavancar tais estudos no Brasil. Proibida a partir de 1938, a planta teve seu uso fortemente combatido pelo Estado brasileiro nas décadas seguintes, algo que gerou uma visão predominante de “condenação pura e simples da maconha como se fosse uma droga diabólica”, aponta Carlini, que é criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), professor emérito da Unifesp, pesquisador emérito do CNPq e dono de muitos outros títulos.

 

A partir da década de 1960, porém, variados experimentos feitos em animais para quantificar os efeitos dos extratos da planta começaram surgir, mas seria somente dos anos 2000 em diante que a academia lançaria um olhar mais atento sobre a temática. Prova disso está na evolução das publicações científicas que abordam o assunto. Na biblioteca eletrônica SciELO, por exemplo, existem apenas quatro registros de estudos carregando de algum modo o termo “cannabis”, entre as décadas 1980 e 1990. Nos primeiros 20 anos do século XXI, o número saltou para 133.

Os dados foram levantados pelo “Anuário da Cannabis no Brasil 2022”, elaborado pela empresa de análise de mercado Kaya Mind. Disponível ao público de maneira gratuita, o documento também indica que a maior parte da distribuição dos estudos por áreas de pesquisas se concentra na saúde.

Clique nas setas e veja mais detalhes nos gráficos abaixo.

 

 

A visão mais centrada sobre a maconha pela academia também acontece em um momento histórico importante. Com a chegada dos anos 2000, países como Canadá e Estados Unidos começam a pensar a cannabis como elemento com possibilidades econômicas reais. É neste contexto, a propósito, em que o Congresso americano aprovou, em 12 de dezembro de 2018, a Farm Bill (Agricultural Improvement Act, traduzido como “Lei de aperfeiçoamento agrícola”), que é a lei que regula a produção e o transporte de produtos à base da planta no país.

No Brasil, ainda quatro anos antes, um movimento começou a aquecer o debate sobre as possibilidades terapêuticas da erva. Liderada sobretudo por pacientes e familiares de crianças atípicas, essa agitação ajudou a colocar em pauta a necessidade de o Estado de agir e pensar nas necessidades de garantir tratamentos com remédios derivados da cannabis para uma demanda que crescia à medida em que as informações se popularizavam. Foi aí que surgiram alternativas como a importação, a compra em farmácia e o autocultivo da erva pelos pacientes, conforme mostramos no episódio 1 desta série de reportagens.

Diante disso, mesmo sem serem consideradas empresas, as associações medicinais de cannabis surgiram e assumiram um papel fundamental na movimentação e no estabelecimento deste mercado. Uma delas é a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace Esperança), sediada em João Pessoa, na Paraíba, que foi uma das primeiras a obter da Justiça, em 2017, autorização para plantar, colher e manusear a planta para realizar a produção de medicamentos.

Fundada em 20 de abril de 2014 pelo turismólogo Cassiano Gomes e outros familiares de pacientes, a Abrace é hoje composta por 47 mil associados espalhados pelo País, os quais participam com uma contribuição anual de R$ 350, gerando só aí uma receita de cerca de R$ 16,45 milhões por ano. Com a filiação, essas pessoas garantem a aquisição de remédios a preços bem mais acessíveis frente àqueles encontrados em farmácias e em importações.

O turismólogo Cassiano é um dos fundadores da Abrace Esperança(Foto: Arquivo Abrace Esperança)
Foto: Arquivo Abrace Esperança O turismólogo Cassiano é um dos fundadores da Abrace Esperança

“Nós conseguimos nos organizar ao longo dos anos com equipamentos, equipes maiores de profissionais, estrutura e controle de qualidade de primeiro mundo. E tudo isso tem um custo que só é mantido graças às famílias que sustentam a Abrace ao adquirirem os produtos que desenvolvemos. Porque quando a gente fala de produção de medicamento, existe toda uma necessidade de cumprir as exigências que Anvisa determina”, afirma Cassiano, diretor executivo da instituição.

De acordo com o Anuário da Cannabis 2022, o Brasil conta atualmente com quase uma centena de empresas neste segmento. Por meio de pesquisas internas, o estudo traz um levantamento de dados de 80 delas, ressaltando algumas de suas características. “É possível observar que já existem empresas de grande porte que atuam com a cannabis no Brasil, com mais de 5 mil funcionários, mas a maioria ainda é de pequeno e médio porte”, informa a publicação, apontando que a maioria delas está entre as categorias de produtos, de importação e de clínicas.

Agora, ao considerar uma demanda de quase 7 milhões de potenciais pacientes, maior aderência de empresas e maior atenção do Poder Público sobre este mercado no decorrer dos últimos anos, as perspectivas brasileiras de crescimento acabam se tornando para lá de positivas. Com saltos exponenciais de ano para ano desde 2018, a cannabis deve movimentar mais de R$ 655 milhões só em 2023, com expectativa superior a R$ 900 milhões no próximo ano.

 

Evolução do mercado da cannabis no Brasil e projeção do Anuário da Cannabis

 

Embora essas previsões sejam animadoras, as bases sobre as quais o setor canábico está fincado ainda não são sólidas o suficiente para atrair ainda mais investimentos. Conforme indica o editor do Anuário da Cannabis, Thiago Cardoso, as empresas que atuam no País só conseguem funcionar hoje por estarem ancoradas em duas resoluções da Anvisa. Isto é, elas não contam com uma regulamentação federal específica que garanta estabilidade jurídica, nem sequer possuem uma coleta de imposto nacional que ajude, por exemplo, na criação de mecanismos de fiscalização.

“O mercado hoje é muito instável e não vai escalar do jeito que está. Grande parte do dinheiro gerado neste segmento (48% dos pacientes brasileiros adquirem medicamentos por meio de importações) vai para fora, para marcas dos Estados Unidos, do Canadá, da Colômbia. Além do mais, ser sustentado por regulamentações da Anvisa causa muita instabilidade jurídica. Imagine se a Anvisa mudar determinado entendimento e alterar o texto da regulamentação do dia para noite. O mercado inteiro terá que se adaptar àquilo”, cogita.

 


Cannabis medicinal no mercado de pets

Embora as incertezas jurídicas devido à falta de regulamentação federal continuem existindo, o mercado da cannabis tem aberto espaço para a atuação nas mais diversas categorias. Uma delas é o segmento voltado para os pets, setor que cresceu de maneira significativa nos últimos anos no Brasil, e que tem apresentado uma demanda por produtos medicinais à base da maconha para o tratamento de diversas condições dos animais de estimação.

De acordo com balanço do Instituto Pet Brasil (IPB), o mercado dos bichos de estimação chegou a um faturamento de R$ 60,2 bilhões em 2022, representando um salto de 16,4% no comparativo com o ano anterior (R$ 51,7 bilhões). Compondo esse montante, o segmento de venda de medicamentos veterinários (Pet Vet) faturou sozinho R$ 5,9 bilhões, o que representa 9,9% do mercado.


Evolução do mercado de pet no Brasil ano a ano

 

Esses números ajudam a ilustrar a maior preocupação de donos e tutores em busca das melhores condições de vida para seus pets. E é nesse meio onde a cannabis medicinal se encaixa, principalmente porque já existem diversas substâncias da planta descritas na literatura científica internacional e que são consideradas seguras para os animais.

Para a veterinária Beatriz Martins, atualmente existe um olhar mais atento sobre os animais por parte de seus donos. Em seu perfil no Instagram, ela aborda os benefícios que a planta pode proporcionar aos bichinhos a partir de um tratamento adequado. “As pessoas estão olhando mais para os pets e pensando mais nesses tratamentos. Aquelas que optam pelos tratamentos estão gostando bastante e às vezes outras já chegam procurando por eles porque fizeram pesquisas na internet e viram seus resultados”, afirma.

Mesmo com tais avanços nesse debate, Beatriz comenta que ainda assim surgem questionamentos do tipo: “O meu cachorro vai fumar um baseado?”. “Eu sempre tento explicar como funciona o tratamento, dando o embasamento científico, pois eu ainda sinto que na veterinária existe uma resistência. Mas a gente está conseguindo aos poucos vencer essa batalha”, completa ela, que é especialista nos cuidados com animais silvestres e exóticos.

Beatriz Martins é médica-veterinária que realiza atendimentos considerando as possibilidades de tratamento com cannabis(Foto: Aurélio Alves / O POVO)
Foto: Aurélio Alves / O POVO Beatriz Martins é médica-veterinária que realiza atendimentos considerando as possibilidades de tratamento com cannabis

Beatriz comenta também que hoje existem muito mais estudos e testes clínicos com animais do que mesmo com os próprios humanos. E isso acontece por uma questão óbvia. “Geralmente a grande maioria dos estudos começa a ser feita em cobaias animais, como ratos e porquinhos-da-índia. Então a gente tem uma gama enorme de estudos utilizando os animais antes mesmo de chegar aos humanos. Hoje é importante lembrar que cachorros, gatos, passarinhos estão deixando de serem apenas um animal que fica ali na casa e passaram a fazer parte da família”, destaca.

Apesar disso, o uso legal dos produtos da cannabis no Brasil está restrito apenas aos humanos e a prescrição dos medicamentos é exclusiva dos médicos habilitados pelo Conselho Federal de Medicina. Tais proibições estão registradas nas resoluções criadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a qual limita também a importação da medicação somente para uso pessoal.

“Em virtude da ausência de legislação que ampare a prescrição dos produtos à base de cannabis, a recomendação é que, antes de prescrever o tratamento com seus derivados, o médico-veterinário delimite de forma objetiva o diagnóstico do paciente, leve o caso ao Judiciário e obtenha autorização judicial para realizar a prescrição necessária ao tratamento, garantindo a segurança jurídica do exercício profissional da Medicina Veterinária”, orienta o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV).

Buscando contornar essa situação, o CFMV informa que tem formalizado solicitações à Anvisa para incluir os médicos-veterinários na lista de profissionais de saúde habilitados para utilizar o tratamento com cannabis aos seus pacientes. O órgão endossa o pedido em outras autorizações já existentes, como as que liberam a prescrição de substâncias como entorpecentes, psicotrópicos, retinóides de uso sistêmico e imunossupressores.

“Apesar de não caber ao CFMV discutir os efeitos terapêuticos da cannabis, como órgão legalista e de fiscalização profissional, é nosso papel garantir que os médicos-veterinários tenham garantidas suas prerrogativas profissionais com segurança jurídica para se valer das propriedades proporcionadas no tratamento de seus pacientes podendo prescrevê-la de forma segura, do ponto de vista regulamentar, o que, atualmente, está restrito aos médicos”, defende o presidente do CFMV, Francisco Cavalcanti de Almeida.

Atualmente, está parado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 369 de 2021, de autoria do deputado Bacelar (PV-BA), que dispõe sobre a aplicação da cannabis sativa e seus derivados na medicina veterinária.

 

 

Lubrificante à base de cannabis para saúde íntima

Se no Brasil, a insegurança jurídica estabelece certos medos e dificuldades para o mercado canábico, em outros países o desenvolvimento acontece com maior naturalidade e maturidade. Exemplo disso é o Uruguai, que foi o primeiro país a liberar nacionalmente a maconha para uso medicinal e recreativo e, com isso, atraiu olhares e interesses de diversas pessoas que gostariam de investir nesse segmento.

Débora Mello é a fundadora do Xapa-Xana, marca de lubrificante íntimo que atua no Uruguai à base de cannabis medicinal(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Débora Mello é a fundadora do Xapa-Xana, marca de lubrificante íntimo que atua no Uruguai à base de cannabis medicinal

Uma das primeiras brasileiras a empreender nesse mercado em solo uruguaio foi a artista Débora Mello. No vizinho sul-americano, ela ousou, lançou e estabeleceu sua sugestiva marca de lubrificante e estimulante sexual, o Xapa-Xana (XX). Feito a partir das flores da cannabis, o produto promete se preocupar com todo o universo que envolve a vagina e o útero, os quais seriam “responsáveis por protagonizar grandes mistérios da humanidade por serem difíceis de desvendar suas nuances”.

Em conversa com O POVO+, Débora explica que o XX nasceu de maneira muito orgânica e intuitiva logo após ela ter decidido morar em Montevideu, em 2017, para tocar um projeto de artistas latino-americanas. “Em poucos meses eu comecei a fazer várias alquimias com a planta da maconha e vi que dava para fazer coisas muito legais. Foi assim que cheguei ao lubrificante”, recorda, dizendo que no começo dessa trajetória compartilhava o produto com algumas pessoas próximas, em forma de presente.

“O Xapa não é só um lubrificante é também um estimulante, que antes ia acompanhado de um fanzine que falava sobre o produto, seu modo de uso e quais as possíveis sensações que a pessoa iria sentir. Isso porque eu percebia que muitas mulheres tinham problemas em sua vida sexual, não conseguindo atingir o orgasmo ou mesmo tendo dores durante a relação”, continua Débora, que é considerada autoridade e referência no Uruguai por ter sido uma das primeiras mulheres brasileiras a empreender com cannabis.

Xapa-Xana, lubrificante e estimulador sexual produzido à base de cannabis(Foto: @pasajeraentranc3 / Xapa-Xana)
Foto: @pasajeraentranc3 / Xapa-Xana Xapa-Xana, lubrificante e estimulador sexual produzido à base de cannabis

Ela busca rejeitar o título por dizer se considerar mais “anárquica”. O que ela não pode negar, no entanto, são os rumos nos quais o XX se lançou ao longo dos anos, pois nascido como produto recreativo, que aumentava a libido e a sensibilidade das regiões íntimas, ele também se mostrou auxiliar na saúde das mulheres que possuem oscilação hormonal, alterações emocionais, desconforto físico, repressão sexual, que se recuperam de pós-parto ou de cirurgias na região.

Nesse contexto, o XX recebeu da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) uma autorização para ser comercializado no Brasil como medicamento. Por isso, pessoas interessadas em adquiri-lo devem ter prescrição médica e a aprovação da Anvisa para poder realizar sua importação.

Questionada sobre o porquê de ter optado pela cannabis como matéria-prima, Débora afirma que a planta é composta por uma histórica trajetória de poderes ancestrais e que, quando composta em uma fórmula adequada, pode causar efeitos terapêuticos potencializadores. “Sem a cannabis, o lubrificante não causaria o efeito mágico que a cannabis tem e que o mundo está redescobrindo”, assegura.

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