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‘Querem proibir, querem liberar’: afinal, o que querem fazer com a cannabis no Brasil?
Reportagem Seriada

‘Querem proibir, querem liberar’: afinal, o que querem fazer com a cannabis no Brasil?

Julgamento sobre drogas no STF e PEC das Drogas reacendem debate enquanto brasileiros se mostram a favor do uso medicinal, mas contra o uso recreativo da maconha, segundo pesquisa. Entenda discussão e as diferenças entre liberar, regulamentar, descriminalizar e legalizar a substância
Episódio 5

‘Querem proibir, querem liberar’: afinal, o que querem fazer com a cannabis no Brasil?

Julgamento sobre drogas no STF e PEC das Drogas reacendem debate enquanto brasileiros se mostram a favor do uso medicinal, mas contra o uso recreativo da maconha, segundo pesquisa. Entenda discussão e as diferenças entre liberar, regulamentar, descriminalizar e legalizar a substância
Episódio 5
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O ano era 1997. Diante da televisão, o Brasil parava para acompanhar os detalhes da trágica morte de Lady Di, os pronunciamentos do presidente Fernando Henrique Cardoso, as descobertas em torno da ovelha Dolly e outras notícias que estariam nas manchetes das bancas de jornal no outro dia, como a morte do educador e filósofo Paulo Freire. As salas de cinema estavam lotadas para a estreia de Titanic, o filme do ano. No rádio, Gabriel, O Pensador, cantava: ► Querem proibir, querem liberar, e a polêmica chegou até o Congresso.

Parte de reportagem publicada no dia 3 de maio de 1997, em decorrência da morte de Paulo Freire(Foto: Data.doc)
Foto: Data.doc Parte de reportagem publicada no dia 3 de maio de 1997, em decorrência da morte de Paulo Freire

O famoso trecho de “Cachimbo da Paz”, música em parceria com Lulu Santos, refere-se aos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional nos anos 90 com o objetivo de mudar a legislação sobre drogas como a maconha no Brasil.

Entre os favoráveis à descriminalização da cannabis estava a então primeira-dama Ruth Cardoso, que falou publicamente sobre a questão e provocou reações divididas entre aplausos e vaias. FHC, já como ex-presidente, também saiu em defesa da pauta abertamente.

Um dos principais argumentos contra eram os problemas ou efeitos derivados do uso, rebatido pelos defensores com o fato de que o consumo de álcool causava mais vítimas: em 1996, somente em São Paulo, cerca de 41% dos assassinatos tinha relação direta ou indireta com álcool e 30% dos acidentes de trânsito da mesma época também tinham influência alcoólica.

Congresso Nacional(Foto: Roque de Sá/Agência Senado)
Foto: Roque de Sá/Agência Senado Congresso Nacional

Na mesma época, distante dali, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Norte com índice de criminalidade perto do zero também virava notícia em todo o País por uma protagonista em comum: a cannabis.

Um delegado recém-chegado à pacata Cruzeta, na época com 8 mil habitantes, percebeu que havia diversas plantações de maconha, chamada de liamba "Os termos liamba, marijuana ou erva referem-se às folhas secas das plantas cannabis e às flores das plantas femininas."  pelos moradores, em locais como a casa deles, a praça e até o cemitério da cidadezinha.

Considerada por eles um “santo remédio” como erva-cidreira ou camomila, a planta era utilizada para tratar enfermidades como dor de dente, dor de ouvido, febre, dor de cabeça e soluço, principalmente entre os cruzetenses mais idosos. “Se você tiver com soluço e cheirar ela, na mesma hora o soluço desaparece”, “Já tomei dois [chás feitos com as folhas] e vou tomar mais três para renovar”, comentavam os mais antigos, que desconheciam a proibição do cultivo e uso da erva.

 

 

A história dos cruzetenses e o lançamento do músico carioca aconteceram há mais de 20 anos, mas o debate está mais aceso do que nunca em 2023. A polêmica, no entanto, não chegou apenas até o Congresso: está também no Supremo Tribunal Federal (STF).

Após idas e vindas entre as instâncias dos três poderes, um julgamento da suprema corte retomou, em agosto, a análise da descriminalização do porte de drogas para consumo próprio em pequenas quantidades.

O Supremo foi requisitado a julgar o Recurso Extraordinário (RE) 635659, que trata da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/2006). O texto prevê penas por porte que variam entre “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal - STF(Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil)
Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal - STF

Esse recurso tem repercussão geral reconhecida: ou seja, a decisão que for tomada terá de ser aplicada por todos os tribunais do País.

O tema começou a ser analisado pela Corte em 2015, mas foi suspenso, na época, por um pedido de vista do então ministro Teori Zavascki que, meses depois, no início de 2016, se tornou vítima fatal de um acidente aéreo.

Após a tragédia, o ministro Alexandre de Moraes o sucedeu e devolveu o pedido de vista ao plenário em 2018.

Fachada do palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil Fachada do palácio do Supremo Tribunal Federal (STF)

Cinco anos depois, o tema voltou ao centro. Até o momento da suspensão do julgamento por um pedido de vista do ministro André Mendonça, o placar estava de 5 a 1 para considerar o artigo como inconstitucional.

Os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Rosa Weber votaram a favor, e apenas o ministro Cristiano Zanin votou contra.

A interrupção dá um prazo de 90 dias para que o ministro André Mendonça possa examinar o processo antes de devolver o tema à pauta do plenário, o que, em tese, deveria acontecer em novembro. Além dele, ainda faltam votar os ministros Kassio Nunes Marques, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Dias Toffoli.

Presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes(Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil Presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes

Enquanto apresentava seu voto, Moraes afirmou que o artigo 28 deixou de punir com prisão o porte de drogas “para consumo próprio”, mas não define critérios objetivos para diferenciar consumo próprio de tráfico.

Essa definição fica a cargo do sistema de persecução penal (Polícia, Ministério Público e Judiciário), que interpreta a norma de formas diversas.

Assim, o porte de pequena quantidade de entorpecentes passou, em muitos casos, a ser qualificado como tráfico — o que tornou a punição mais dura e aumentou significativamente o número de presos por tráfico.

Além disso, na compreensão do ministro, pessoas presas com a mesma quantidade de droga e em circunstâncias semelhantes podem ser consideradas usuárias ou traficantes, dependendo da etnia, de nível de instrução, renda, idade ou de onde ocorrer o fato.

“O STF tem o dever de exigir que a lei seja aplicada identicamente a todos, independentemente de etnia, classe social, renda ou idade”, frisou.

Já no entendimento da então presidente do Supremo, ministra Rosa Weber, que adiantou o voto antes da aposentadoria, a criminalização da conduta é “desproporcional por atingir de forma veemente a autonomia privada”.

Weber considerou que “a mera tipificação como crime do porte para consumo pessoal potencializa o estigma que recai sobre o usuário e acaba por aniquilar os efeitos pretendidos pela lei em relação ao atendimento, ao tratamento e à reinserção econômica e social de usuários e dependentes”.

“Essa incongruência normativa, alinhada à ausência de objetividade para diferenciar usuário de traficante, fomenta a condenação de usuários como se traficantes fossem”, disse.

A ministra Rosa Weber adiantou voto da matéria antes de se aposentar do STF(Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil A ministra Rosa Weber adiantou voto da matéria antes de se aposentar do STF

“Para compreensão geral, uma breve unificação da terminologia é conveniente. Descriminalizar significa deixar de tratar como crime. Despenalizar significa deixar de punir com pena de prisão, mas punir com outras medidas. Este é o sistema em vigor atualmente. Legalizar significa que o direito considera um fato normal, insuscetível de qualquer sanção, mesmo que administrativa”, diferenciou Barroso.

Durante o voto, o ministro também citou o que chamou de “exército de formiguinhas”: “Este foi o ponto suscitado pelo Procurador-Geral da República, o temor que uma vez fixado um certo quantitativo, os traficantes passariam a distribuir em pequenas porções, formando um ‘exército de formiguinhas’”.

Barroso admitiu a possibilidade, mas complementou que, “de certa forma, já é assim. Os ‘aviões’, que são os jovens que fazem a distribuição, são presos. Em poucas horas são repostos”. De acordo com o ministro, “há, na verdade, um exército de reserva. Com a seguinte consequência: as prisões ficam entupidas e o tráfico não diminui em nada”.

Operação da Policia Civil do Ceará, que apreendeu 100 kilos de maconha (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Operação da Policia Civil do Ceará, que apreendeu 100 kilos de maconha

Alvo de embates com o Senado Federal, cujo presidente, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), classificou a ação do STF como “invasão de competência do Poder Legislativo”, a pauta passou a ser tratada em uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe tornar crime a posse e o porte de todas as drogas — inclusive a maconha.

Chamada de PEC das Drogas, a matéria, que está em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, foi proposta por Pacheco.

“Ao se permitir ou ao se legalizar o porte de drogas para uso pessoal, de quem se irá comprar a droga? De um traficante de drogas, que pratica um crime gravíssimo, equiparado ao hediondo”, evidenciou o presidente do Senado em plenário.

Plenário do Senado Federal (Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)
Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado Plenário do Senado Federal

Seja nos âmbitos do Legislativo ou do Judiciário, o fato é que as discussões em torno do assunto pautam o trabalho policial e critérios de julgamento, mas também a percepção de cidadãos comuns e de especialistas. Uma pesquisa do Instituto Datafolha sobre o tema revelou que 72% dos brasileiros são contrários à legalização da maconha para uso geral, inclusive recreativo — 6% a mais que em 2018, quando um levantamento similar mostrou que 66% eram contra.

Já em relação à descriminalização do porte de pequenas quantidades, 61% são contra e 36% são a favor — desses, o apoio majoritário à descriminalização está entre os brasileiros mais ricos e jovens de 16 a 24 anos, 55% e 50%, respectivamente.

Por outro lado, se há resistência quanto à legalização, os brasileiros demonstram substancial apoio ao uso medicinal da maconha: de acordo com o estudo, 76% são a favor, enquanto 22% são contra — e, ainda que o cultivo da matéria-prima farmacêutica ainda seja ilegal no País, mais da metade (67%) é favorável ao cultivo de cannabis para fins medicinais.

Maioria dos brasileiros é contra uso recreativo mas a favor do uso medicinal da maconha, aponta Datafolha


Na avaliação do educador e artista de rua Cristiano Rodrigues, que atua na comunidade da Mangueira, no Curió, e é militante da Marcha da Maconha em Fortaleza, “o Brasil não tem, no contexto atual, educação de base e uma política sólida e democrática para legalizar uma droga”.

“E soa chocante para muitos, mas o que nós queremos é descriminalizar, regulamentar, retirar o poder da venda e do lucro dessa substância da mão do tráfico e, dentro desse processo, fazer com que o sistema e o Estado entendam que é preciso tomar para si e fiscalizar, estabelecer regras de compra, venda e consumo, abarcar a pauta da maconha medicinal e terapêutica”, declara.

“A gente tem muito caminho para andar, a legalização tem de ser um processo político coletivo feito de diálogos, eu me preocupo muito enquanto educador e redutor de danos. Eu vou legalizar, mas em qual momento eu paro para pensar nas pessoas que estão tendo problemas com essa substância?”, acentua.

Cristiano Rodrigues, educador e artista de rua, atua na comunidade da Mangueira, no Curió,(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Cristiano Rodrigues, educador e artista de rua, atua na comunidade da Mangueira, no Curió,

Enquanto usuário da cannabis terapêutica e recreativa, Cris, como é conhecido, critica o proibicionismo e coloca que a cannabis, principalmente a que chega na periferia, é “altamente química, misturada, que causa esquizofrenia, psicose, ansiedade e vários surtos”.

“Nos anos 50 o álcool foi proibido nos Estados Unidos, a produção, a venda e o consumo. Logo depois da proibição entrar para o Diário Oficial, foram criados pontos, biqueiras, bocadas de álcool. A galera vendia álcool escondido, era um tráfico, virou uma máfia gigantesca. E também aconteceu que, por ser proibido, o processo de produção também era clandestino, o que rebaixava a qualidade do produto em coisa de 70%”, indica.

Além disso, adiciona Cris, “a legalização é importante principalmente porque em todos os países e estados que optaram por ela, eles conseguiram diminuir em mais de 60% o nível de violência, de mortes por arma de fogo, assaltos. A indústria de violência enfraqueceu. Nós vivemos num momento, hoje, em que todas as engrenagens do sistema se movimentam para alimentar a indústria da violência”.

Marcha da maconha: cartazes afixados em monumento, em Fortaleza(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Marcha da maconha: cartazes afixados em monumento, em Fortaleza

A descriminalização, que é o foco do debate, para o educador, “é importante para que a sociedade entenda que existem, sim, maconheiros cidadãos. Pessoas que pagam seus impostos, que estudam, que trabalham, que têm família, e que fumam um. Da mesma forma que existe um Brasil de pessoas que passam a semana inteira trabalhando, rezando para o fim de semana chegar para beber uma cervejada”.

“Quando a gente descriminaliza, a gente tira o poder do conservadorismo, da arbitrariedade, do fascismo, do genocídio, de me baterem na rua porque acharam um baseado na minha bolsa, descredibilizando todo o meu trabalho como militante, ativista, estudante, trabalhador, filho, irmão, sobrinho, tio”, expõe.

A perspectiva da militância que luta pela descriminalização da cannabis, conforme o artista descreve, inclui como palavra de ordem que o sistema pare de violentar a juventude.

O educador e artista de rua Cristiano Rodrigues, conhecido como Poesia Viva, é militante da Marcha da Maconha em Fortaleza(Foto: Cristiano Rodrigues/Acervo pessoal)
Foto: Cristiano Rodrigues/Acervo pessoal O educador e artista de rua Cristiano Rodrigues, conhecido como Poesia Viva, é militante da Marcha da Maconha em Fortaleza

“Vem nesse contexto de diminuir a violência gerada pelo combate ao tráfico de drogas, que é apenas uma desculpa para extermínio. Somos nós, pretos e favelados, que apanhamos na praça por estar fumando um baseado, somos nós humilhados nos bacas”, alerta.

Segundo Cris, “quem fuma um baseado não sustenta o tráfico, o que sustenta é pó [cocaína] e pedra [crack]. O lucro do tráfico é com drogas que, inclusive, são encontradas em aviões de deputados, de senadores”.

Já a legalização, pondera o jovem, vai além de legalizar o uso: “a gente não quer ter só onde comprar, a gente quer plantar. O plantio é a base, proporcionar ferramentas de cultivo, porque quando a gente legaliza e ela fica disponível num stand de venda, ela vai ser legalizada para quem? Quanto vai custar? Quem é que vai ter acesso? Porque quem já acessa a maconha de qualidade, que é muito cara, é o playboy”.

“Hoje nós sabemos a complicação que é para pessoas que precisam desses remédios, desses óleos cannábicos, de utilização da planta, fornecendo isso pelo SUS. Nos daria a oportunidade de ter qualidade de vida, mas isso não acontece por um discurso antigo, raso. Isso é racismo cultural, ambiental, estrutural”, explicita.

Sem a possibilidade de produção nacional para esse fim, associações de pacientes e familiares que precisam importar os tratamentos (cuja importação é autorizada pela Anvisa, porém de alto custo) recorrem aos tribunais e, por meio de decisões judiciais, conseguem autorização para o plantio.

O que essas entidades geralmente buscam em ações desse tipo é o direito de produzir o canabidiol, óleo com propriedades reconhecidamente medicinais da maconha que não contém o princípio ativo entorpecente mas que, mesmo assim, não pode ser produzido legalmente no Brasil.

Através do salvo-conduto, os beneficiários desses habeas corpus produzem o óleo sem o risco de serem processados e condenados por tráfico de drogas, desde que obedeçam a limitações de quantidade de plantas e à obrigação de se submeter a fiscalizações e análises do produto.

Maconha medicinal(Foto: crystalweed cannabis/unsplash)
Foto: crystalweed cannabis/unsplash Maconha medicinal

Responsável pelo primeiro habeas corpus para plantio e cultivo de cannabis medicinal em Mossoró, no Rio Grande do Norte, a advogada Bianca Cardial explica que a legalização trata da permissão para produção, venda e uso de drogas sem restrições legais, “porém com condições”.

“Condições essas que chamamos de regulamentação, como é o caso do álcool, que não pode ser vendido para menores de idade, como é o caso do cigarro, cuja propaganda publicitária foi proibida e cujos efeitos colaterais do uso devem vir explícitos na embalagem, lugares em que não se pode fumar, etc”, discorre.

Cardial constata que a legalização viria acompanhada da regulamentação, “que visa garantir segurança para a sociedade, sejam usuários ou não, e qualidade do produto”. Já a descriminalização, continua a advogada antiproibicionista, “se trata de reduzir as penalidades para uso pessoal de drogas ilícitas, que deixaria de ser criminalizado e, portanto, punido”.

Cannabis Medicinal. Sítio em Fortaleza com autorização para fazer o cultivo da maconha para uso terapêutico(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Cannabis Medicinal. Sítio em Fortaleza com autorização para fazer o cultivo da maconha para uso terapêutico

Com relação à maconha, de acordo com a advogada, ambos os termos (legalização e regulamentação) se encaixam nas reivindicações: “Caso o uso da maconha fosse legalizado, regulamentado, não necessitaria de uma luta pela descriminalização. Entretanto, essa luta pela legalização será mais árdua, tendo em vista que existem vários fatores que influenciam para que o uso seja ilegal. Questões, raciais, morais, políticas, e até mesmo o lobby da indústria farmacêutica, que não se beneficiaria com a legalização”.

A luta mais possível de se vencer no momento, categoriza ela, é a pela descriminalização, que é o objeto em pauta no STF e no Senado.

“Com a descriminalização do uso, temos a perspectiva de uma diminuição do encarceramento dos usuários, que superlotam os presídios brasileiros, sendo tratados como traficantes. Descriminalizar é parar de punir o usuário, e passar a tratar a questão da cannabis como ela realmente é, uma questão de saúde pública”, afirma.

Bianca Cardial, advogada antiproibicionista, responsável pelo primeiro habeas corpus para plantio e cultivo de cannabis medicinal em Mossoró (RN)(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Bianca Cardial, advogada antiproibicionista, responsável pelo primeiro habeas corpus para plantio e cultivo de cannabis medicinal em Mossoró (RN)

Para Bianca, “é justamente por ser uma questão de saúde pública que o uso deve ser descriminalizado. É essa a luta, fazer com que o que não é crime, pare de ser tratado como tal, tanto pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, quanto pela sociedade em geral, que também julga e condena o usuário”.

A advogada marca que “o uso de drogas, mas principalmente da maconha, sempre foi visto com olhares para além da substância. O uso da maconha foi racializado há séculos e, desde então, o uso vem sendo condenado juntamente com a população negra e pobre do País”.

“Levar o debate da descriminalização à frente é trazer também à tona o debate sobre classe e raça, e essa luta que já vem sendo travada há tanto tempo, e vem ganhando cada vez mais força, é a luta essencial para uma mudança social efetiva e eficaz”, sinaliza.

Diferenças entre liberar, regulamentar, descriminalizar e legalizar


A relação entre esse debate e a saúde pública no Brasil também é levada em consideração pelo advogado Tiago Campos, membro da Frente Cearense pelo Uso Medicinal da Maconha (FCMM).

“Saúde pública, antes da soma da saúde dos indivíduos, é o bom funcionamento das instituições, o funcionamento saudável, sem crime organizado, sem perseguição e esse cenário de guerra”, pontua.

O jurista entende que o foco deve sair da punição e repressão e se voltar para políticas baseadas na saúde pública que permitam maior acesso a tratamentos e serviços de prevenção.

Tiago Campos, advogado e membro da Frente Cearense pelo uso Medicinal da Maconha (FCMM)(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Tiago Campos, advogado e membro da Frente Cearense pelo uso Medicinal da Maconha (FCMM)

Esse seria um caminho que poderia contribuir para a diminuição dos riscos à saúde dos usuários e dos problemas relacionados aos usos de substâncias.

“Liberação dá a impressão de ‘liberou geral’: quando algo não é proibido, é liberado, um argumento muito utilizado por quem leva às últimas consequências de que até criança vai poder usar”, comenta.

“E é lógico que não, por isso é preciso que haja regulamentação. O uso recreativo, inclusive, eu costumo chamar de uso adulto, porque a questão da maioridade já traz a ideia de que há algum regramento, de em quais ambientes será permitido usar, por exemplo, e isso tudo é regulamentar”, argumenta.

“Quando a gente torna um mercado ilícito, a forma que ele vai se organizando é no terreno da ilicitude. Esse cenário favorece o superencarceramento, a faccionalização, o tráfico de armas, consequências que poderiam ser superadas com a regulamentação porque haveria um controle para regular as atividades e a concorrência, por exemplo”, defende.

No ponto de vista de Campos, a descriminalização pode trazer benefícios como redução de danos, redução do encarceramento em massa, realocação de recursos e respeito à autonomia individual, mas essa abordagem requer uma interação complexa entre mudanças sociais e agentes econômicos.

“Esse julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659 é a forma mais rápida que a sociedade brasileira vai ter de conquistar esse direito que eu considero um direito fundamental: o de gerir o próprio estado de consciência, o direito à individualidade, à privacidade. É uma formatação da cidadania brasileira”, opina o advogado.

Manifestantes na 9° edição da Marcha da Maconha realizada na Praia de Iracema, em Fortaleza(Foto: Mateus Dantas / 29/5/2016)
Foto: Mateus Dantas / 29/5/2016 Manifestantes na 9° edição da Marcha da Maconha realizada na Praia de Iracema, em Fortaleza

“O Estado tem um discurso de que a questão de drogas é de saúde pública e nós concordamos, tanto é que a Lei de Drogas mostra que o bem jurídico protegido por ela é a saúde pública”, sobreleva o também advogado Italo Coelho, associado da Coelho e Cardial Advocacia Antiproibicionista e membro da Rede Reforma.

“Mas esse mesmo Estado, contraditoriamente, para cuidar da saúde das pessoas, lança mão do sistema penal, do braço armado, da tal da guerra às drogas, proibindo a produção, a circulação e o consumo, e fazendo com que essa indústria fique na clandestinidade”, complementa.

“Porque ela não deixa de existir só porque é proibida, as pessoas continuam produzindo e consumindo drogas, existe um mercado consumidor que só aumenta. Mas essa questão da saúde pública tem sido jogada em segundo plano”, aponta.

Advogado Italo Coelho, associado de Coelho e Cardial Advocacia Antiproibicionista e membro da Rede Reforma(Foto: Acervo pessoal/Coelho e Cardial Advocacia)
Foto: Acervo pessoal/Coelho e Cardial Advocacia Advogado Italo Coelho, associado de Coelho e Cardial Advocacia Antiproibicionista e membro da Rede Reforma

Coelho acrescenta que “as pessoas, primeiro, quando têm medo de serem presas, não vão atrás de se tratar quando fazem uso abusivo. A segunda coisa é que nem todo mundo que usa drogas faz uso abusivo, é uma pequena parte da população, a depender da droga circula em torno de 10%. Essas pessoas precisam ser tratadas, não presas”.

Outro problema vinculado a isso é o da segurança pública, segundo o advogado: “as pessoas também podem ser baleadas, presas, vão para o sistema carcerário repleto de organizações criminosas, entram lá geralmente presas com pequenas quantidades, são consideradas traficantes e entram lá e se tornam de fato, não porque querem mas por uma pressão gigante”.

“Então o Estado só trata essa questão como uma questão de saúde da lei para fora, da boca para fora. Tratar como uma questão de saúde é legalizar as drogas, é fazer uma campanha, uma forma de conscientização para as pessoas saberem usar as substâncias, para que quando elas façam uso abuso elas sejam tratadas dentro do viés da saúde pública”, acentua.

Na América Latina, o Brasil é um dos poucos países que não legalizaram o plantio de cannabis para fins medicinais. Na Argentina, Equador, Uruguai e Colômbia, por exemplo, o cultivo já é legal. Segundo Italo, a experiência de outros países mostra que a legalização traz benefícios nos âmbitos regulatório, econômico, de saúde e segurança pública.


 

Metodologia

Para esta reportagem, foram utilizados dados de pesquisa conduzida pelo Instituto Datafolha em estudo abrangeu 2.016 participantes maiores de 16 anos e recolheu informações nos dias 12 e 13 de setembro de 2023, com abrangência de 139 municípios em todo o território brasileiro.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, OP+ mantém uma página no Github na qual estão reunidos códigos e bases de dados produzidos para as publicações.

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