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Vozes independentes no mercado editorial
Reportagem Seriada

Vozes independentes no mercado editorial

Nesta série especial sobre a crise no mercado editorial, agravada pela pandemia, estratégias como linguagens, versões digitais e diversidade de representação movimentam os autores independentes
Episódio 2

Vozes independentes no mercado editorial

Nesta série especial sobre a crise no mercado editorial, agravada pela pandemia, estratégias como linguagens, versões digitais e diversidade de representação movimentam os autores independentes
Episódio 2
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A impossibilidade do formato físico é uma realidade que se impõe a autores independentes há tempos. Dean Oliver lançou em modo digital, na quarentena, dois volumes da zine "poesia corporal", em parceria com a amiga Mirna Teixeira.

O gênero literário surgiu na vida do artista há três anos e ele acumula, ainda, um livro publicado virtualmente. "Ele deveria ter acontecido de forma física, mas não teve como, então está disponibilizado online", explica.

Dean Oliver é um dos autores da zine "poesia corporal", que teve duas edições lançadas durante a pandemia(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Dean Oliver é um dos autores da zine "poesia corporal", que teve duas edições lançadas durante a pandemia
 

“É preciso pontuar o lugar que poetas negras, principalmente periféricas e LGBT, ocupam no cenário editorial do Ceará e no País. É basicamente um não-lugar, porque - mesmo que muitas de nós temos conseguido publicar nas pequenas editoras e em curtas tiragens - o processo ainda é muito lento, pouco rentável e muito oneroso. O que nós fazemos diante disto? E como fazer algo num cenário catastrófico como o que vivemos atualmente?”, questiona Ma Njanu, poeta e educadora popular que lançou a primeira zine autoral, "Na boca do dragão da américa latina", em maio.

As reflexões e provocações são acolhidas por Goreth Albuquerque, coordenadora de Políticas do Livro, Leitura e Bibliotecas da Secult. “Temos uma riqueza editorial que vem contemplando leitores com diversidade de narrativas jamais vista antes. Vozes de pretos, indígenas, mulheres e de quem milita e pesquisa questões de identidade de gênero e produz escritas também querem suas reflexões publicadas em livro”, aponta a gestora.

Ela diz que “o caminho de desenvolvimento econômico e cultural interrompido e agravado com o desenho político econômico que temos hoje foi e tem sido danoso porque produziu um aniquilamento do poder econômico-financeiro de muitas camadas da sociedade que estavam conseguindo acercar-se de bens e experiências culturais que lhes foram negadas há séculos, tanto como consumidores quanto como produtores de cultura”, avalia.

A publicação das zines de Dean e Ma são exemplos de fazeres atuantes no atual contexto. “Sinto que a grande maioria de nós que trabalhamos com arte somos independentes”, ressalta ele, citando outras iniciativas atuais.

“Vi a Glória Diógenes, professora na UFC, organizando uma publicação com mulheres. Tem o pessoal da editora Ladifúndio, que juntou textos de amores fracassados no projeto Fissura, organizados com ilustrações da Raisa Christina. Tem as iniciativas no Curió do Talles Azigon, que sempre lidou com o independente”, elenca.

Glória Diógenes é socióloga, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC(Foto: Mateus Dantas em 4/4/2016)
Foto: Mateus Dantas em 4/4/2016 Glória Diógenes é socióloga, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC

Até a escolha por publicar a zine de modo gratuito, conta Ma, foi uma forma de passar uma mensagem: “a literatura precisa sair da zona inalcançável do cânone e do mercado excludentes”, resume.

“Esse novo cenário é ainda, apesar de tudo, uma interrogação. Com a exceção de que é a ‘mesma’ realidade de antes, só que agora bem pior: racismo, recessão, aprofundamento das desigualdades raciais e sociais, reascenção do neofascismo”, resume a autora.

O digital como tendência, mas também como barreira

São alguns os pontos que unem as editoras, os autores, os livreiros, as bibliotecas, os livros em si. O principal deles, talvez, seja o leitor.

A partir de tendências apontadas em dados obtidos em pesquisas e também por falas de atores envolvidos no setor editorial, é possível ter alguma ideia de por onde os modos de consumo podem seguir no durante e no pós-pandemia: pelo digital.

No entanto, as dificuldades e desigualdades de acesso são fatores relevantes para o debate.

Pelo levantamento “Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro”, realizado pela Nielsen Book com coordenação do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e da Câmara Brasileira do Livro, nota-se uma tendência de aumento nos números de frentes digitais.

Em 2019, a participação percentual das vendas em livrarias exclusivamente virtuais aumentou de 3,4% para 12,7%. Já em vendas por internet/Market Place, o percentual foi de 0,74% para 5,20%.

Anna K., da editora cearense Aliás, avalia que as próprias editoras independentes vem apostando no formato e-book. “A maioria delas têm transformado os livros em e-books. Muitos até falam que finalmente o e-book ganhou seu lugar, com uma explosão de compras em sites. Quase todas as nossas leitoras e leitores pediram para a gente disponibilizar os livros online”, exemplifica.

Um das experiências citadas por ela é pessoal, mas bem significativo. “Meu pai, já com 70 anos, fica pedindo para mandar livros pra ele, querendo saber como baixar”, avança.

A Aliás faz parte de um grupo que reúne quase 100 pequenas editoras de todo o Brasil para troca de experiências, chamado Coesão Independente. Nas conversas, Anna K. destaca a busca por novos formatos como uma constante.

“Naturalmente, as impressões e envios de livros caíram muito dentro desse núcleo de editoras independentes. Houve um investimento maior em criar acessos ao livro digital, ao podcast, as pessoas têm pensado em audiolivro, em outras releituras”, considera.

A zine "na boca do dragão da américa latina", da poeta e educadora Ma Njanu, foi lançada em formato digital e, também, em áudio(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução A zine "na boca do dragão da américa latina", da poeta e educadora Ma Njanu, foi lançada em formato digital e, também, em áudio

A poeta Ma Njanu mostra que essa é uma preocupação, também, por parte de quem produz. A primeira zine autoral da cearense, “Na boca do dragão da américa latina”, está disponível em versão de áudio. A decisão, a artista explica, se liga à busca da obra por trazer à tona pautas como o neocolonialismo e a descolonização.“Não é à toa que lancei uma versão em audiozine, unir a recitação com o desejo de alcançar leitores que não podiam, não conseguiam ou simplesmente não queriam ler o texto me pareceu fundamental”, aponta.

Ao mesmo tempo em que a busca por outros formatos, por um lado, democratiza a divulgação de obras, ela também ressalta a desigualdade e as barreiras do acesso digital.

Conforme escreve ao O POVO a coordenadora de Políticas de Livro, Leitura e Biblioteca da Secretaria da Cultura do Ceará Goreth Albuquerque (o texto na íntegra está disponível abaixo nesta matéria), o acompanhamento da promoção da leitura em meio digital por parte do Sistema Estadual de Bibliotecas possibilitou ir ao encontro de demandas importantes.

“O acompanhamento nos deu condição de perceber a necessidade concreta de desenvolver ferramentas para uma política de biblioteca com espaço virtual, que ofereça serviços virtuais e não apenas acervos digitalizados. As barreiras digitais que temos atualmente ficaram muito evidentes na pandemia”, aponta.

Goreth Albuquerque, narradora oral, arte terapeuta e coordenadora de Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca da Secretaria da Cultura do Ceará(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Goreth Albuquerque, narradora oral, arte terapeuta e coordenadora de Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca da Secretaria da Cultura do Ceará

> Ponto de vista

"Temos expectativa de poder
ativar a cadeia produtiva do livro"

Por Goreth Albuquerque *

O cenário da pandemia impactou duramente o campo da cultura e foi um golpe duro em um setor que já dava sinais de abatimento, o mercado editorial. O momento crítico vem se arrastando há tempos, tendo em vista o impacto do cenário político e econômico do país desde o desmonte de 2016 e não é exagero dizer que se intensifica na pandemia, agravando a tensão histórica entre os muitos atores e seus interesses.

Entre solicitação de renegociação de dívida por parte de pequenos e médios livreiros e tentativa de alternativas de continuidade de funcionamento das livrarias por meio de entregas domiciliares e plataformas online de vendas, temos tido notícias do fechamento de várias livrarias no país. Fechadas, elas não conseguem concorrer com as ofertas das editoras e das grandes plataformas de venda por meio digital.

O movimento de democratização de acesso e de pluralidade de discurso mobiliza comunidades de bairros afastados, que estão distantes das regiões em que estão centralizados os equipamentos e as políticas de cultura, a criarem próprios espaços de leitura. Há redes de bibliotecas comunitárias muito atuantes na formação de novos leitores ávidos por livros.

São mediadores de leitura, quase sempre voluntários, agenciando essa aproximação com a leitura e quebrando o bloqueio de muitos que pensam que livro não é para pobre.

Precisamos reafirmar políticas de livro e leitura como direito de cidadania, porque precisamos negar a violência como uma possibilidade de ser no mundo. Durante a pandemia muitas dessas bibliotecas seguiram atuando como ponto de apoio às famílias do entorno, com campanhas de doação de alimentos e material de higienização, mas também produzindo conteúdos relativos ao campo do livro, leitura e literatura, de forma gratuita e com alguns conteúdos pagos para geração de renda, em uma demonstração de competência na relação com a cultura escrita e com o conhecimento, além de capacidade de autogestão.

As comunidades sabem o que precisam e o fato de que protagonizem experiências criativas em seus territórios aponta exatamente para os caminhos em que o estado deve atuar, dialogando e fortalecendo o que já existe.

Precisamos reafirmar políticas de livro e leitura como direito de cidadania, porque precisamos negar a violência como uma possibilidade de ser no mundo.

Ainda precisamos avançar nesse sentido, pois ao contrário de as comunidades se conformarem às proposições do estado e seus modelos metodológicos e marcos regulatórios, de acesso aos recursos, devemos ampliar o diálogo e pôr em pauta os modelos instituídos de práticas sociais de fomento à produção de arte e cultura.

Do ponto de vista das bibliotecas públicas municipais, o Sistema Estadual de Bibliotecas assumiu o compromisso de acompanhar iniciativas de promoção da leitura em meio digital e vem mantendo diálogo com as que aderiram ao aplicativo. Há trocas de experiências e informações, incentivo de participação em lives de conteúdos ligados à política de livro e leitura.

Tem sido uma forma de presença institucional importante para pensar e planejar perspectivas de futuro. O acompanhamento nos deu condição de perceber a necessidade concreta de desenvolver ferramentas para uma política de biblioteca com espaço virtual, que ofereça serviços virtuais e não apenas acervos digitalizados. As barreiras digitais que temos atualmente ficaram muito evidentes na pandemia. Como espaço de produção de conhecimento que são, as bibliotecas são importantes na guerra de informações e contrainformações que podem ser decisivas para salvar vidas na pandemia.

As barreiras digitais que temos atualmente ficaram muito evidentes na pandemia. Como espaço de produção de conhecimento que são, as bibliotecas são importantes na guerra de informações e contrainformações que podem ser decisivas para salvar vidas na pandemia.

Em meio creio a esse cenário, creio que há uma ótima brecha para repensar a política cultural a partir da Lei Emergencial Aldir Blanc, que, apesar de ser um suporte emergencial, tem congregado oportunamente ótimos diálogos sobre os caminhos operacionais para executar o recurso que podem influenciar mudanças mais estruturais.

De nossa parte, temos expectativa de poder ativar a cadeia produtiva do livro, uma vez que as compras governamentais historicamente são importantes para o mercado editorial. Há também a possibilidade de recurso para infraestrutura que bibliotecas comunitárias têm possibilidade de acesso, além dos editais ou prêmios que podem beneficiar programação com encontros de escritores e mediadores de leitura.

O que vai definir o recurso para o campo do livro, leitura, literatura e biblioteca será a mobilização e a participação social de trabalhadores e trabalhadoras do setor. Essa participação vai reafirmar o livro, leitura, a Literatura e as bibliotecas como importantes para o processo de fortalecimento da democracia frente às tentativas permanentes de instituição de práticas arbitrárias que desconsideram o mundo das palavras como conhecimento, informação e encantamento.

* Goreth Albuquerque, Especial para O POVO

Narradora oral, arte terapeuta e coordenadora de Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca da Secretaria da Cultura do Ceará

Publicações independentes para conhecer

Confira lista com publicações cearenses que foram produzidas e ganharam o mundo durante o isolamento social a partir de iniciativas independentes, seja autopublicação ou parcerias com editoras pequenas. Há revista, zines, textos íntimos, olhares para a pandemia, uma diversidade de tipos de obras que falam da diversidade que o mercado independente possui.

Revista Coletiva

Publicação produzida a partir do bairro Curió,por iniciativa do poeta e mediador de leituras Talles Azigon, a revista reúne obras textuais e visuais de escritoras e escritores, designers e outros artistas. A Coletiva é comercializada a R$ 10 e toda a renda arrecadada se reverte para os artistas produtores da edição e para a manutenção da biblioteca comunitária Livro Livre Curió.

Adquira em bit.ly/bibliosfortaleza ou aliaseditora.com

Mais informações em @livrolivrecurio

Escritas em pandemia

O projeto consiste em um livro coletivo escrito por mulheres cearenses. São 24 textos que trazem olhares da intimidade das autoras em meio à pandemia do novo coronavírus. A publicação foi disponibilizada gratuitamente no inicio de junho no Instagram @escritasempandemia

Acesse em bityli.com/rLqJE

Eu desvalorizei as paredes

12 escritores cearenses são os autores do ebook, que é organizado por Renato Pessoa e Dércio Braúna. A obra, que reúne poemas e prosa poética, não identifica a autoria dos textos para propor ao leitor uma forja própria de sentidos para os escritos.

Fissura

A editora cearense nadifúndio se uniu à artista visual Raisa Christina para produzir uma publicação digital que reúne textos breves sobre memórias envolvendo desilusões amorosas. A disponibilização da obra, que leva o título de Fissura, se deu no último 12/6, dia dos namorados.

Mais informações em @nadifundio

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