“Foi um colapso de realidades e eu comecei a chorar”, diz Kleber Mendonça Filho para tentar traduzir o que sentiu na Grand Theatre Lumière, maior sala do Festival de Cannes, na estreia do seu novo filme.
“O Agente Secreto” foi exibido pela primeira vez no último domingo, dia 18 de maio, na competição oficial do evento ao lado de nomes como Jafar Panahi, Irmãos Dardenne, Lynne Ramsay e Kelly Reichardt. A premiação será anunciada no sábado, às 13h (horário de Brasília), com transmissão pelo YouTube.
A história de Kleber com o festival, porém, não é recente. Além da carreira pregressa como crítico de cinema, foi lá que ele lançou a maioria dos seus filmes: “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2019) também foram exibidos dentro da competição, o último tendo vencido o histórico Prêmio do Júri. Em 2023, o documentário “Retratos Fantasmas” ganhou sessão especial.
Em entrevista exclusiva ao O POVO, Kleber resgata as emoções que sentiu com a estreia e como espera que o Brasil de hoje receba o filme.
O POVO - Você já viveu muitas emoções em Cannes, mas no último domingo, com a estreia de “O Agente Secreto”, qual foi a emoção nova que você sentiu?
Kleber - Acredito que assistir ao cortejo que Emilie criou e desenvolveu, em segredo de toda a equipe, com o Guerreiros do Passo. A gente sair do hotel com esse cortejo foi um negócio muito estranho e bonito.
A música e o jeito estão no treinamento cultural, no DNA, mas a gente estava em Cannes... Então foi um colapso de realidades, e eu comecei a chorar. O frevo que eles fazem é realmente uma batalha. Claro que é alegre, mas é um confronto físico.
Eu vi ao vivo, mas só vi hoje (terça-feira, 20 de maio) a gravação de imagem que estava passando dentro da Grand Theatre Lumiére. Acho que ficou incrível. Porque o Carnaval é muito ligado à linguagem da televisão, que é uma pessoa com a câmera no ombro tentando acompanhar.
Desde adolescente, eu sempre achei que era muito mais bonito do que isso. E a recepção do filme, em si, foi extraordinária. A sessão foi eletrizante. O que eu passei tanto tempo esperando para acontecer, que era ver o filme projetado pela primeira vez, foi incrível.
OP - Você disse que o roteiro foi escrito ao longo de muitos anos, reunindo referências da sua própria memória, do Brasil e do Recife. Eu imagino que o Brasil de quando você começou a escrever era muito diferente do Brasil em que o filme nasceu agora. Como você acha que o Brasil de hoje vai receber o filme?
Kleber - Eu acho que o Brasil pode receber como um filme que, em primeiro lugar, é eletrizante, mas que tem muitas verdades sobre o país. Há muitos detalhes da vida no Brasil, da história, da forma de se falar, das divisões internas. Então eu quero que ele seja muito visto no Brasil e a gente vai fazer um lançamento só em sala de cinema no segundo semestre.
OP - Além de protagonizado pelo Wagner Moura, o elenco é muito amplo. Como foi decidir a existência desses personagens e a tarefa de encontrar tantos atores e atrizes para eles.
Kleber - O roteiro levou muito tempo para ficar pronto, cerca de dois anos. Achar os atores é um trabalho que vem sendo muito bem-feito desde ‘O Som ao Redor’. É uma troca constante entre eu, Emilie Lesclaux, Leonardo Lacca, Gabriel Domingues, Marcelo Caetano, dentre outros.
Você tem que não só habitar o filme com os personagens principais, mas também com os que são de fundo, chamado de figurantes. Eu nunca trato como figuração, para mim são todos personagens. ‘Bacurau’ foi uma grande escola nesse sentido.
OP - E não tem apenas pessoas de Pernambuco.
Kleber - Não. Eu acho que o filme precisa ter a diversidade do Brasil e do mundo. É por isso que tem todo tipo de gente. Homem, mulher, baixo, alto, tem loiro, ruivo, preto, indígena... Eu fico muito feliz com a diversidade não só física e facial, mas também a diversidade dramática dessas pessoas.
OP - “O Agente Secreto” é um filme de época e isso é, talvez, seu aspecto mais impressionante. Há muitos cenários externos e internos... Tem rua, feira, cinema, e até docas. Fiquei pensando que Hollywood faria isso com muitos milhões a mais. Como foi esse processo de transformar essa Recife dos anos 1970?
Kleber - Tem cerca de 50 locações nesse filme. Eu fotografo Recife desde a adolescência. Eu tive uma mãe que me deu câmeras muito cedo, e continuei nos anos 1990 e nos anos 2000. Era como se eu já soubesse onde colocar a câmera, na maior parte do filme.
Você precisa achar a cidade do passado na cidade moderna, quase como um game. Teve um trabalho muito grande de Isabela Cunha, uma apaixonada pelo Recife, e ela achou locações magníficas.
Então, juntando tudo isso, o trabalho de Thales Junqueira na arte, Evgenia Alexandrova na fotografia, Rita Azevedo no figurino, e todos os atores maravilhosos, acho que tem uma densidade muito boa de época.
Série de reportagens mostra o cinema brasileiro no Festival de Cannes