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O drama e a memória das famílias atingidas pelo fechamento da Panair
Reportagem Seriada

O drama e a memória das famílias atingidas pelo fechamento da Panair

O fechamento da Panair após o golpe de 1964 atingiu não só os empresários donos da companhia, como também as famílias dos 5 mil funcionários lançados repentinamente ao desemprego. Eles lembram o drama e das memórias que guardam
Episódio 2

O drama e a memória das famílias atingidas pelo fechamento da Panair

O fechamento da Panair após o golpe de 1964 atingiu não só os empresários donos da companhia, como também as famílias dos 5 mil funcionários lançados repentinamente ao desemprego. Eles lembram o drama e das memórias que guardam
Episódio 2
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Da noite para o dia, cinco mil funcionários registrados na folha da Panair ficaram desempregados. Ingrid Fricke era uma dessas pessoas e a história dela dá uma noção do drama enfrentado por tantas famílias naquele momento delicado da história nacional. Ingrid trabalhou durante seis anos na Panair como comissária de voo. 

Na foto, Ingrid está nas dependências do avião da Panair.(Foto: Arquivo Pessoal/Ingrid Fricke)
Foto: Arquivo Pessoal/Ingrid Fricke Na foto, Ingrid está nas dependências do avião da Panair.

"Tinha 19 anos e trabalhava como secretária em um escritório  — achava chatérrimo. Certo dia, vi um anúncio no jornal dizendo: 'Procura-se aeromoças para a Panair do Brasil'. Me candidatei. No mês seguinte, já estava voando. Só parei quando fecharam, aos 25 anos. Teria voado muito mais tempo, mas não poderia ser 'aerovelha' (risos)", brinca. "Amava a companhia. Nunca senti nada que desabonasse a Panair. Pelo contrário, eram só elogios", diz Ingrid.

Hoje, aos 83 anos, remonta uma coletânia de memórias:

"Fiz vários voos com Juscelino Kubitschek (JK), Jango. A seleção brasileira de futebol fazia uma festa dentro do avião. O Garrincha detestava voar — tinha pavor —, ele ficava se segurando na poltrona a viagem inteira. O poeta Vinicius de Moraes também, mas gostava de tomar um uísquezinho antes de voo partir. Carregávamos os povos indígenas de Belém (PA) para São Luís (MA). São lances que ficam gravados na cabeça", relembra.

Graças a Panair, Ingrid pôde se deliciar de algumas belezas cearenses. "Ficávamos hospedados em um hotel na Praia de Iracema, saíamos de jangada para pescar, íamos ao Mercado Central, lá comprávamos roupas bordadas, de renda, lindas de morrer".

E pelo continente europeu, onde divulgou a Panair. Na época, a companhia realizava um pool Significa uma parceria entre voos de duas companhias distintas com a Lufthansa — empresa aérea alemã.

No momento em que a Panair foi fechada, uma comissária da Lufthansa estava no Brasil e com jantar marcado em uma churrascaria — que, por questões lógicas, foi adiado.

Aeronave da Panair do Brasil durante voo.(Foto: Divulgação/Panair)
Foto: Divulgação/Panair Aeronave da Panair do Brasil durante voo.

O encerramento arbitrário aconteceu por volta das 17 horas. Imediatamente, todos os funcionários correram para a sede da companhia, que funcionava no Aeroporto Santos Dumont.

"De repente, o marido está sem emprego. As mulheres, as crianças, ficaram a ver navios. Algo lastimável. Gente jovem que ficou tão desesperada que procurou o caminho da morte". Ingrid que, na maior parte da entrevista, lembrava com alegria as memórias com a companhia, abriu exceção neste momento. O tom foi de amargura e tristeza pelo acontecimento. 

Para ajudar o pai, Rodolfo Wolf, que estava muito doente, migrou para a concorrente Varig, onde atuou na parte interna. Ela não queria mais saber de voar. 

Veja algumas matérias do O POVO sobre a Panair do Brasil e a luta para mantê-la viva:

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"Os homens passam, mas o Brasil fica"

Atualmente, a Panair é presidida por Rodolfo da Rocha Miranda. Aos 75 anos, ele gerencia a empresa junto a um grupo de advogados que ainda discute o caso no âmbito judicial. 

Filho único de Celso da Rocha Miranda, tinha apenas 15 anos quando o pai reuniu toda a família para noticiá-los sobre o fechamento da Panair. 

"Na época, não senti muita coisa", assume Rodolfo. Celso (o pai), por outro lado, ficou consternado, porque, de antemão, entendeu a gravidade da situação.

Validado o despacho da Panair, a casa de Celso no Rio de Janeiro foi invadida por militares.

"Eu (Rodolfo) estava indo pegar o jornal, quando abri a porta tinha gente dentro, olhando os armários do escritório dele e vendo os documentos. Só entraram no escritório, mais nenhum outro cômodo da casa, e não levaram nada. Estavam tentando achar os documentos para gerar algum tipo de incriminação", detalhou Rodolfo ao O POVO.

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Foram tempos de apreensão da família Rocha Miranda face a boatos da operação Condor "operação de repressão política e terror de Estado, na década de 1970, levada a cabo pelas ditaduras de direita de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, com o apoio dos Estados Unidos. A operação consistia na coleta de informações sobre os opositores e nas ações violentas contra eles, incluindo sequestros, torturas e assassinatos" .

Celso foi perseguido por 10 anos e respondeu a processos individuais de culpa e de imputação da responsabilidade pela falência da companhia aérea.

Por precaução, Celso e a família ficaram exilados durante sete meses na Inglaterra até que ele tivesse a certeza de que todos estariam seguros no Brasil. 

"Tanto Celso como Mario viram um potencial enorme na Panair. Era a única companhia que fazia a revisão de motores; afinal, todo sistema de comunicação aéreo e terrestre era dela, e tínhamos um 'padrão Panair' de excelência no atendimento. Portanto, era uma companhia cheia de valores intrínsecos", pontuou Rodolfo.

Marylou Simonsen, aos 80 anos, lembra que o pai, Mario Wallace, adquiriu a Panair em 1961. Na época, ela tinha 19 anos, e relatou ainda que recorda que o pai evitava falar de negócios em casa.

Da esquerda para a direita: Mario Simonsen e Maria Luiza (Baby Simonsen), o marido de Marylou, Carlo, Marylou, e o irmão mais novo, John Simonsen. (Foto: Arquivo Pessoal/Marylou Simonsen)
Foto: Arquivo Pessoal/Marylou Simonsen Da esquerda para a direita: Mario Simonsen e Maria Luiza (Baby Simonsen), o marido de Marylou, Carlo, Marylou, e o irmão mais novo, John Simonsen.

"E essas pessoas todas, como estão?", era a inquietude de Mario com o desemprego abundante.

Um dia antes de Mario morrer — sem saber que o pai viria a óbito —, Marylou disparou: "Jamais quero voltar ao Brasil", porque odiava o País.

O pai a abraçou e disse: "O dia que você permitir que o ódio entre no seu coração é o princípio do teu fim. Você tem que amar o Brasil. E nunca se esqueça: 'Os homens passam, mas o Brasil fica'". Frase que ficou enraizada no subconsciente de Marylou. 

"Meu pai era uma pessoa muito amorosa e sempre protegia muito a nossa família. O convívio dentro de casa era maravilhoso. A gente morava meio no Brasil e meio na Inglaterra. Viajávamos bastante. Um homem extremamente apegado à família, dono de um olhar cativante e que sempre queria ajudar as pessoas".

"A intenção era que a Panair fosse o cartão de visitas do Brasil. Então, ela precisava ser impecável para que as pessoas tivessem vontade de vir para esse País maravilhoso, dentro de uma companhia maravilhosa", conta a filha.

A família Simonsen também foi ameaçada pelos militares, principalmente, os irmãos de Marylou: Wallace e o Jhon Simonsen"Que essa história seja contada. E que casos como o da Panair nunca mais aconteçam", almeja Marylou.

Conforme Daniel Leb Sasaki, autor do livro "Pouso forçado", o fechamento foi fruto de uma conjunção de interesses. O primeiro deles, da Varig, em realizar voos para a Europa. "Ela já tentava obter as concessões, sem sucesso, havia dez anos", disse. "Fez lobby forte e isso está documentado. Só conseguiu participando do golpe deflagrado pelos militares em cima da concorrente. Ganhou não apenas as linhas, mas também recebeu, de forma irregular, patrimônio da Panair", completa.

Em segundo lugar, Mario Simonsen estava sob ataque político e midiático alimentado por rivais, brasileiros e estrangeiros, que utilizaram documentos falsificados e fabricados para acusá-lo de crimes contra a Nação. Assim que a ditadura se instalou, tratou de executá-lo.

O terceiro: Celso da Rocha Miranda era amigo íntimo de Juscelino Kubitschek, que estava à frente nas pesquisas de intenção de voto para presidente da República. Haveria eleição em 1965, o que, obviamente, não aconteceu. Juscelino também foi perseguido e partiu para o exílio.

"Destruíram uma empresa privada sólida, importante e estratégica para o País, fonte de subsistência de cinco mil famílias, para atender desejos escusos. Foi um crime de lesa-pátria", encerrou Sasaki.

 

 

"Família Panair"

Um ano após o caos, em 1966, foi consagrada a "Família Panair" — que existe até hoje — para celebrar o nascimento da empresa. O movimento, feito sem qualquer subsídio, é formado por ex-funcionários, descendentes e amigos.

Em uma das estrofes da canção "Saudade dos Aviões da Panair" (título que foi censurado), Milton Nascimento e Fernando Brant transformam em melodia um sentimento delicado que se traduz em verso: "O medo em minha vida nasceu e muito depois descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair". A música também ganhou uma versão na voz da cantora Elis Regina, com nome alterado para "Conversando no bar".

Documento de vínculo dos funcionários da Panair do Brasil S.A. (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Documento de vínculo dos funcionários da Panair do Brasil S.A.

Em 2019, a Comissão Nacional de Anistia (CNA) saiu do Ministério da Justiça e foi entregue ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, fundado na gestão do então presidente Jair Bolsonaro. À frente da Pasta, Damares Alves elaborou um novo regimento interno que eliminou a chance de recurso e todos os processos eram julgados uma única vez. O processo de anistia pós-morte de Celso da Rocha Miranda foi julgado pela Comissão de Anistia à época e foi indeferido.

Quatro anos depois, em 2023, já no mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Eneá de Stutz Almeida é empossada como presidente da Comissão de Anistia e, no dia 27 de setembro, um novo julgamento de declaração de anistia pós-morte do Celso Miranda foi realizado. Além dos conselheiros da Comissão, estava o filho de Celso, Rodolfo da Rocha Miranda, e a esposa, Cecília Faria da Rocha Miranda.

Em meio à agitação, Eneá até se atrapalhou na hora da proclamação do pedido de desculpas. Por regra, o resultado vem antes do pedido de desculpas e ela fez o contrário.

A presidente da Comissão avaliou o momento como "emblemático", pois, pela primeira vez, pleitearam a história de uma empresa perseguida pela Ditadura. "Pedi para que este caso fosse o primeiro a ser julgado na nossa sessão do mês passado", revelou em entrevista ao O POVO em outubro de 2023.

Para a presidente, o ato não revitimizou apenas a família de Celso da Rocha Miranda, mas também os cinco mil funcionários da Família Panair, e, não menos importante: "Serviu de alerta para toda a população — principalmente mais jovem — de que a Ditadura é algo muito nocivo e não deve ser repetida no País".

O conselheiro da Comissão Nacional de Anistia (CNA) e ex-presidente da Comissão Estadual do Ceará de Anistia, Mario Miranda de Albuquerque, participou do julgamento e pontuou que os critérios utilizados para apreciar os processos eram considerados "absurdos".

De acordo com Mario, o caso da Panair não foi exclusivo. Inclusive, a Usina do Ceará — pertencente ao grupo Moisés Pimentel —, ex-deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido de Jango, também foram levadas à destruição por corte de créditos da intervenção militar.

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Diferentemente de outros estados brasileiros, o Ceará nunca teve uma Comissão da Verdade. No entanto, a Comissão Estadual da Secretaria dos Direitos Humanos e Cidadania do Ceará (CDHC) — a única em funcionamento no Brasil a nível estadual atualmente —, reconheceu que Moisés Pimentel foi perseguido pela Ditadura e a mulher e os filhos foram indenizados.

Convidado a ir ao púlpito para discursar, Rodolfo da Rocha Miranda, muito emocionado, contou que, nas confraternizações dos ex-funcionários era feita a mesma pergunta: Por que fecharam a minha Panair?

Ao interromper a fala para tomar um copo d'água, ele disse: "Tô muito feliz, porque agora poderei levar essa resposta para eles. Fechou por conta de perseguição política! A luta foi restabelecida. O tempo está contando os detalhes da história oficial".

Para Rodolfo, este fato deve ser visto por outros empresários do que é ser empresário no Brasil quando se está sob a condição do Lawfare Termologia em inglês que faz a junção dos vocábulos Law (Lei) e Warfare (Guerra). É uma guerra jurídica fundamentada em manipulações, onde as leis são usadas de instrumento para combater um oponente, desrespeitando os procedimentos legais e os direitos do indivíduo que se pretende eliminar.
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Mediante a possibilidade do pedido de Anistia Coletiva adicionada recentemente ao regimento interno da Comissão Nacional de Anistia (CNA), os ex-funcionários da Panair também poderão — se quiserem — ser reconhecidos como perseguidos políticos da Ditadura Militar. (Colaborou Gabriela Monteiro / Especial para O POVO)

Ouça trecho do discurso de Rodolfo da Rocha Miranda na Comissão de Anistia


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Panair no Brasil

Reportagem especial mostra como a Panair foi fechada no Brasil por perseguição política da ditadura militar instalado no País em 1964. Traz também o desenrolar jurídico e a memória das famílias atingidas pelo fechamento da companhia