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Os 60 anos de luta pela memória da Panair no Brasil e no Ceará
Reportagem Seriada

Os 60 anos de luta pela memória da Panair no Brasil e no Ceará

A companhia aérea Panair do Brasil S. A. teve seu voo pausado pelo golpe militar de 1964. Depois de 58 anos, a Comissão Nacional de Anistia reconheceu que a empresa teve seu fechamento arbitrário, motivado por perseguição política
Episódio 1

Os 60 anos de luta pela memória da Panair no Brasil e no Ceará

A companhia aérea Panair do Brasil S. A. teve seu voo pausado pelo golpe militar de 1964. Depois de 58 anos, a Comissão Nacional de Anistia reconheceu que a empresa teve seu fechamento arbitrário, motivado por perseguição política
Episódio 1
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10 de fevereiro de 1965. Data inesquecível para a aviação comercial brasileira. Após 35 anos em atividade, neste dia, de maneira súbita e sem a instauração de um processo administrativo regular, as concessões de linhas aéreas da Panair do Brasil S.A. foram abruptamente cassadas pela Ditadura Militar, instaurada no País no ano anterior.

O sentimento de incredulidade, imediatamente, se alastrou pela Nação. Era o nocaute na Panair...

Para destruir o baluarte da aviação comercial brasileira, o presidente Castello Branco — cearense e primeiro chefe do Executivo da Ditadura Militar — contou com o apoio do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes, e do ex-diretor da antiga Diretoria da Aeronáutica Civil, brigadeiro Clóvis Travassos.

Os militares alegavam que "a crise financeira era tão grave e acelerada que o colapso da Panair não poderia ser evitado mesmo se todo o pesado auxílio econômico destinado à indústria do transporte aéreo, previsto no orçamento do Governo, fosse dado à companhia. Falácias. As contas da empresa estavam em dia", revela Daniel Leb Sasaki, autor do livro Pouso Forçado, sobre o tema.

Aeronave da Panair do Brasil durante voo (Foto: Divulgação/ Panair)
Foto: Divulgação/ Panair Aeronave da Panair do Brasil durante voo

Na raiz do problema estavam dois nomes: Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, proprietários da Panair, que ficaram marcados pelos militares por conta da boa relação com o presidente deposto João Goulart (Jango). Deste modo, todas as empresas brasileiras alinhadas ao governo derrubado pelo golpe passaram a sofrer sanções.

"Em momento algum, antes da intervenção, a empresa fora interpelada sobre possíveis irregularidades em suas operações, passara por perícia ou processo administrativo regular, ou fora cientificada das intenções das autoridades de fechá-la", afirma Sasaki.  

"Já os acionistas e diretores da Panair, além de privados dos direitos, sofreram uma campanha desmoralizadora sem precedentes: a Ditadura os culpou pelo fechamento de sua própria empresa utilizando dados falsos. Forjou processos criminais absurdos, massacrando a imagem deles perante a opinião pública. Suas contribuições ao desenvolvimento do País foram extirpadas da história oficial", apontou o jornalista e escritor.

 

 

Os resquícios da Panair no Ceará

Cearenses prestaram serviços vitais à Panair do Brasil de 1929 a 1965. Quando o rio Ceará era uma pista de pouso. Ou quando o Aeroporto do Pici passou a existir. 

Com a presença de Mr. Frederick Anderson, representante da NYRBA do Brasil S. A "Em 22 de outubro de 1929 foi fundada, com sede no Rio de Janeiro, a Nyrba do Brasil S.A., subsidiária da Nyrba (New York, Rio de Janeiro e Buenos Aires), por Ralph Ambrose O'Neill, um exímio piloto, com participações históricas na Força Aérea Mexicana durante a Primeira Guerra Mundial e um dos pioneiros da aviação comercial no mundo.

No dia 30 de abril de 1930, a Pan American World Airways (Pan Am) absorve a Nyrba. Em 21 de novembro do respectivo ano, o então novo proprietário, o empresário e aviador norte-americano, Juan Terry Trippe, mudou o nome da subsidiária brasileira para Panair do Brasil S. A."
(antiga empresa comprada pela Pan Am e, a posteriori, renomeada Panair do Brasil S.A.) no Ceará, é inaugurado, na Barra do Ceará, às 14 horas do dia 18 de julho de 1930, o Aeroporto da NYRBA, para a amerissagem de hidroaviões.

Hidroporto da antiga linha aérea Panair, no bairro Barra do Ceará, também conhecido por seus estaleiros artesanais de pessoas locais(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Hidroporto da antiga linha aérea Panair, no bairro Barra do Ceará, também conhecido por seus estaleiros artesanais de pessoas locais

John Muniz, de 54 anos, foi aluno da Escola de Primeiro Grau Jader Figueiredo Correia na década de 1980. A unidade ficava ao lado do enorme galpão da Panair, onde estava instalada a oficina dos aviões e os escritórios da empresa. O colégio ainda funciona, mas em outra localidade, atualmente está ao lado do Posto de Saúde Lineu Jucá.

Depois do encerramento das operações da Panair no Brasil, cerca de 20 a 30 moradores de rua começaram a se abrigar os galpões. "Se eu não me engano, três ou quatro famílias moraram lá. Na faixa de sete a oito pessoas por família", completa Muniz. 

O estaleiro artesanal naval também ficava ao lado dos galpões da Panair. Agora, faz companhia aos alicerces — que ali mofam, por 80 anos.

Desenho que busca trazer fidedignidade à reprodução de como eram os galpões da Panair no Ceará(Foto: Arquivo Pessoal/Rui Rodrigues)
Foto: Arquivo Pessoal/Rui Rodrigues Desenho que busca trazer fidedignidade à reprodução de como eram os galpões da Panair no Ceará

Rui Rodrigues, 42, pesquisador sociocultural, defende com unhas e dentes a história da Barra. Ele é o filho de Vicente Rodrigues, conhecido como o "Véi do cachimbo", criador do estaleiro. 

"Tudo funcionava na beira do rio. Os aviões aterrissavam e as pessoas ficavam aqui, nesse espaço nostálgico e romântico, onde também estavam os hangares. O símbolo da Panair ficava do outro lado da casa", destaca Rodrigues.

O casarão da Panair é onde atualmente está situado o alicerce, uma propriedade da Marinha que segue estagnada no local desde 1946, data que o Hidroporto parou de funcionar no rio Ceará.

Pesquisador sociocultural Rui Rodrigues (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Pesquisador sociocultural Rui Rodrigues

Com o esquecimento do espaço, mitos passaram a surgir. Bairristas, amigos de Rui, diziam que o prédio da Panair era mal-assombrado. "Falavam que lá aparecia pessoas e sons estranhos", evidencia o pesquisador. Isto causava medo nos populares.

"Tinha uma abertura bem pequena, tipo uma janela, e, por cima, várias portas grandes e um muro. Os galpões eram bonitos, altos, na altura dessa casa [mostra uma casa com dois pisos]. Ficava em uma canoinha nas costas do Hidroporto, imaginando como eram os aviões e as pessoas desembarcando..."

Rui guardou, como peça histórica, alpendres instalados ao final de cada corredor, na mureta, que serviam como "enfeite" do "Casarão assombrado", onde era a parte operacional da Panair. 

O "Ferreira da Barra", pai de Luiz Ferreira Lima, 88, era quem rebocava os hidroaviões da Panair para a rampa — construída por volta de 1936 — com a lancha. Ele entrou para o time da Panair em 1944 por conta da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, deixou a companhia pelo mesmo motivo.  

Ferreira da Barra era quem cuidava dos hidroaviões da Panair no Ceará. Matéria do O POVO de 20 de março de 1982(Foto: Arquivo Pessoal/Luiz Ferreira Lima)
Foto: Arquivo Pessoal/Luiz Ferreira Lima Ferreira da Barra era quem cuidava dos hidroaviões da Panair no Ceará. Matéria do O POVO de 20 de março de 1982

Antes da Panair, Ferreira era funcionário de Deodato Martins. Ele recebia o sal e levava para as salinas que eram despachadas em trens e levadas para o bairro Mucuripe.

Na volta do trajeto, oferecia carona a dois ex-funcionários da Panair até a sede da Panair, na Barra. "Meu pai parava no ponto de ônibus, quando eles chegavam, botava um no 'sai de cá' e o outro na garupa", conta o filho, Luiz Ferreira Lima.

Um deles era Manoel Marques. Em 1943, Manoel foi convocado para a guerra. Ferreira foi questionado por Manoel qual profissão exercia. "Ferreira da Barra" era motorista marítimo.

Galpões da Panair do Brasil(Foto: Arquivo Pessoal/ Alberto de Souza)
Foto: Arquivo Pessoal/ Alberto de Souza Galpões da Panair do Brasil

E, por coincidência do destino, Manoel era quem dirigia a lancha da Panair para subir os hidroaviões até a rampa. Com isso, Ferreira foi estagiar, por duas semanas, fazendo a manobra com supervisão de Manoel. Depois, assinou contrato com a empresa. 

"Quando o avião pousava no Rio, ele vinha com os próprios motores, e quando chegava perto da rampa, o meu pai [Ferreira da Barra] ia com a lancha, amarrava um cabo na proa da aeronave, puxava e trazia esse cabo. O cabo ficava preso no guincho elétrico, a aeronave subia, já vinha com as próprias rodas naquela rampa, botava umas escadas e os passageiros desciam", descreve Luiz.

"Tinha uma choupana Casa muito simples e rústica coberta de palha, onde os passageiros ficavam ali embaixo, esperando os automóveis vindos de Fortaleza para pegar e levar aos hotéis".

Marisa Maia Raimundo Maia da Silva, 59, conta que o pai, Raimundo Maia da Silva, já falecido, recebeu o convite do tio, Enock Arraes, ex-mecânico, para sair de Natal, no Rio Grande do Norte, e ir trabalhar no Ceará de 1942 a 1944 na Panair, como vigia. Localmente, ele ficou conhecido como o "Raimundo da Panair".

Marisa Maia Raimundo Maia da Silva (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Marisa Maia Raimundo Maia da Silva

Enock era um verdadeiro amante da aviação. Fã de carteirinha do Aeroclube de Fortaleza. No Albertu's Restaurante — tradicional estabelecimento no bairro Barra do Ceará, instalado nas proximidades do antigo hidroporto da Panair no Estado —, conversava, entre amigos e familiares que, para o aviões zarparem, "eles iam até bem adiante de onde pousavam, faziam a baliza no Morro do Santiago para referenciação e 'Ziiii...'", é o que conta Marisa.

"Aqui tinha um movimento muito grande, os aviões pousavam, as autoridades vinham usando terno branco, chique demais, a gente passava o dia só observando a chegada deles", historiava Edith Barbosa da Silva à filha Marisa.

O presidente Getúlio Vargas(Foto: Governo Federal)
Foto: Governo Federal O presidente Getúlio Vargas

Ante a ascensão da Segunda Guerra Mundial, em 1943, o então presidente da República Getúlio Vargas — com o intuito de auxiliar as aeronaves do esforço de guerra americano em África — autorizou que a Panair erguesse aeroportos nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, e a capital cearense estava inclusa.

No dia 28 de julho daquele ano, a capela de Nossa Senhora Aparecida, na Itaoca, foi demolida para a construção da Base do Cocorote, que depois se tornou propriedade do Aeroporto Salgado Filho — atualmente conhecido como Aeroporto Internacional Pinto Martins.

Já o Aeroporto do Pici, que ficava nas cercanias do campus do Pici e se tornou a primeira pista oficial de pouso  do Ceará — hoje avenida Carneiro de Mendonça —, foi construído especificamente pelas tropas aéreas norte-americanas para o período de guerra com contribuição majoritária da Panair. 

Passados 18 anos do conflito, em 1961, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) encampou o terreno e a Universidade Federal do Ceará (UFC) se apropriou. A Panair abriu um processo contra a União para a devolução destas terras.

Assista ao trailler do filme do OP+, Castelo, o ditador

>> Para assistir à íntegra do documentário Castelo, o ditador, clique aqui

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