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A revolução silenciosa da paternidade ativa no Brasil
Reportagem Seriada

A revolução silenciosa da paternidade ativa no Brasil

Em um cenário onde a ausência paterna deixa cicatrizes profundas, um grupo de homens desafia os ciclos de abandono e negligência que marcaram suas infâncias. Sem a imagem do pai para guiá-los, eles foram forçados a montar o quebra-cabeça da paternidade com as peças que tinham: fragmentos de memórias, histórias de dor e a vontade de fazer diferente
Episódio 1

A revolução silenciosa da paternidade ativa no Brasil

Em um cenário onde a ausência paterna deixa cicatrizes profundas, um grupo de homens desafia os ciclos de abandono e negligência que marcaram suas infâncias. Sem a imagem do pai para guiá-los, eles foram forçados a montar o quebra-cabeça da paternidade com as peças que tinham: fragmentos de memórias, histórias de dor e a vontade de fazer diferente
Episódio 1
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Receber a tarefa de montar um quebra-cabeça sem conhecer a imagem final é um desafio considerável. Você pode juntar algumas peças pelas bordas ou por aquelas que parecem se encaixar, mas sem a orientação da imagem completa, a tarefa se torna especialmente difícil. Essa falta de referência é semelhante ao que enfrentam os homens que cresceram sem pai e hoje se tornaram um.

A ausência de uma figura paterna ao longo do crescimento infantojuvenil pode resultar em diversos prejuízos que uma criança carregará por toda a vida. Homens que cresceram sem a presença do pai relatam como o abandono parental influenciou suas trajetórias. Eles também compartilham suas estratégias para reverter esse ciclo, tornando-se a referência que não tiveram quando crianças.

A ciência comprova que os prejuízos são variados e impactam diversos aspectos da vida: emocional, comportamental, acadêmico, social, econômico e de saúde mental. Em suma, os desafios são muitos diante de um problema social que só recentemente começou a ser debatido de maneira mais ampla.

Com o debate aquecido, uma nova geração de pais está se formando para compartilhar não apenas sua presença e “sustento familiar”. Eles também dão o apoio, carinho, orientação e o amor incondicional que não receberam.



 

 

Quando o pai se ausenta, o peso cai sobre as mulheres

Refletir sobre a importância da presença paterna é crucial, principalmente em uma sociedade onde milhares de lares brasileiros testemunham o oposto. Em um contexto social predominantemente heteronormativo, não é surpreendente que muitas famílias vejam um apagamento significativo da figura masculina dentro de casa.

Deste modo, as responsabilidades financeiras, os cuidados e a criação dos filhos, que deveriam ser compartilhadas a dois, acabam recaindo apenas sobre os ombros femininos.

De acordo com uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2022, mais de 11 milhões de mulheres no Brasil estavam criando seus filhos sozinhas. Esse estudo, baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), foi conduzido pela pesquisadora Janaína Feijó, doutora em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Ela destaca o aumento do número de mães que chefiavam suas famílias sozinhas. "Entre os anos de 2012 e 2022, o número de domicílios com mães solo cresceu 17,8%, passando de 9,6 milhões para 11,3 milhões. Isso representa um acréscimo de 1,7 milhão de mães solo em 10 anos", aponta. No gráfico abaixo, é possível visualizar a evolução dessa estatística ao longo do tempo.


Evolução do número de mães solo no Brasil 


“Além disso, a maior parte das mães solo (72,4%) vive em domicílios monoparentais, sendo compostos apenas por elas e seu(s) filho(s). Ou seja, não moram com parentes ou agregados que teriam o potencial de ajudar nas responsabilidades familiares e na promoção do equilíbrio entre vida pessoal, família e trabalho”, continua Janaína Feijó em seu estudo, que pode ser acessado clicando aqui.

A falta da figura paterna é uma constatação que também faz parte da realidade de milhares de crianças no Ceará. De acordo com dados da Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), o estado cearense é o terceiro pior do Nordeste em número de crianças registradas sem o nome do pai. Nos últimos oito anos e meio, mais de 59 mil crianças cearenses foram registradas apenas com o nome da mãe.

Para se ter uma ideia do impacto desse número, ele é quase suficiente para lotar a Arena Castelão, que acomoda até 60 mil pessoas. Basta imaginar uma final de campeonato em que a arquibancada inteira fosse composta por filhos de pais ausentes. Essa comparação ajuda a ilustrar a magnitude do problema.

“O homem, quando descobre que a mulher está grávida, some. Muitos não registram a criança. Quando registram, não acompanham a gravidez nem prestam assistência”, afirma Natali Pontes, supervisora do Núcleo de Atendimento e Petição Inicial (Napi) da Defensoria Pública do Ceará (DPCE). Ela detalha também que não são raros os casos de abandono intencional quando os homens terminam o relacionamento ainda durante a gravidez.

 

 

O impacto da ausência paterna ressalta a importância sem igual da presença feminina nos lares brasileiros. O POVO+ tem abordado extensivamente o esgotamento das mulheres, especialmente em relação ao trabalho de cuidado não remunerado, como evidenciado na série “Mulheres e trabalho de cuidado não remunerado”.

Ainda assim, embora a contribuição masculina não esteja sempre visível em estatísticas e dados amplamente divulgados, um número crescente de homens tem se destacado nos últimos anos. Estes são aqueles que, mesmo tendo crescido sem a figura paterna, agora buscam criar vínculos mais profundos e positivos com seus filhos, promovendo novos ciclos de afeto e respeito.

 

 

Mesmo sem referência, novos pais reinventam ciclos de paternidade ativa

Crescer sem a presença física, ativa e saudável de um pai é uma realidade marcada na biografia de muitos brasileiros. Histórias de crianças criadas apenas por "mães solteiras" – agora conhecidas como "mães solo" – não são raras pelo País.

Mas, em vez de continuar reproduzindo as mesmas práticas que os traumatizaram, muitas dessas crianças que já cresceram estão formando suas próprias famílias em bases completamente diferentes daquelas que moldaram sua juventude.

Apesar de terem enfrentado a ausência e a falta de referência paterna, alguns desses pais compartilham um desejo comum: proporcionar uma vida melhor para seus filhos. Frases como "dar aquilo que não tive" e "evitar os traumas que passei" são frequentes em seus discursos, quase como um mantra. Na prática, estão buscando ser agentes de transformação positiva, oferecendo aos seus filhos o cuidado e o apoio que lhes faltaram.

Quem está nessa caminhada é o produtor cultural Jefferson Ferreira, que carrega consigo uma história de resiliência e superação. Nascido em Natal, no Rio Grande do Norte, ele tem 28 anos e é orgulhosamente pai da pequena Josiane Vitória, de nove meses, a quem se dedica a oferecer “tudo que uma criança precisa para ter uma vida saudável”.

Jefferson Ferreira, produtor cultural e pai de Josiane Vitória, de 9 meses. Paternidade presente(Foto: Fabio lima / O POVO)
Foto: Fabio lima / O POVO Jefferson Ferreira, produtor cultural e pai de Josiane Vitória, de 9 meses. Paternidade presente

Também conhecido como Jeff Lobo de Wakanda, devido à sua atuação de militância e promoção da negritude nos ambientes geeks, ele se esforça para romper um ciclo de abandono e violência que marcou sua própria vida. Em contraste com o presente feliz e amoroso compartilhado com a esposa Geiziane, a história de Jeff é sublinhada por uma infância dolorosa vivida em um lar tumultuado.

Desde cedo, Jeff enfrentou o terror da violência doméstica. Seu pai, um usuário de drogas, e sua mãe, uma diarista, travavam frequentes batalhas que deixaram marcas profundas na vida dos filhos. Em 1999, quando tinha apenas quatro anos, Jefferson presenciou um episódio que se tornou um divisor de águas em sua trajetória. Depois de uma noite de bebedeira, seu pai retornou para casa, onde foi confrontado pela mãe sobre uma traição.

A discussão rapidamente escalou para agressões físicas do pai contra a mãe. Com um martelo de brinquedo do Chapolin Colorado, Jefferson tentou intervir, mas foi agressivamente chutado pelo pai, batendo a cabeça na parede. Em um ato desesperado, a mãe pegou um revólver e atirou três vezes contra o pai, que conseguiu fugir.

Jeff nasceu no Rio Grande do Norte, onde viveu toda a sua infância(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Jeff nasceu no Rio Grande do Norte, onde viveu toda a sua infância

Depois disso, a mãe de Jefferson se mudou para Fortaleza na tentativa de recomeçar, deixando ele e o irmão aos cuidados da avó. Durante os oito anos em que viveu com a avó, Jefferson vivenciou momentos de paz, mas o fantasma da violência logo voltaria a lhe assombrar. Aos 12 anos, voltou a morar com a mãe, apenas para enfrentar novos abusos. Toda vez que ela bebia, as agressões recomeçavam, agravadas pelo fato de Jeff “ser a cara do pai”.

Aos 19 anos, Jefferson e o irmão foram abandonados pela mãe. Enquanto irmão mais velho, Jeff tomou a difícil decisão de enviar o mais novo de volta para Natal, enquanto ele próprio passou a viver nas ruas de Fortaleza.

A extrema vulnerabilidade lhe apresentou desafios inimagináveis, também moldando sua determinação e força de vontade. Hoje Jeff luta diariamente para construir um lar cheio de amor e segurança, sentimentos que ajudam a afastar as sombras do passado.

“Nove anos depois de tudo o que passei, tenho uma família linda em que o respeito, o amor, a lealdade e o afeto são os pilares e a pedra angular da nossa vida. Se meu pai fosse o cara que eu sou hoje, certamente minha família estaria completa e eu não teria a triste sensação de que eu não tenho a quem recorrer em momentos de angústia”, afirma, incentivando que outros homens também abracem a ideia de uma paternidade comprometida: “Sejam os pais que vocês queriam ter.”


 

Outro que assumiu a responsabilidade de se tornar verdadeiramente um pai e não apenas um genitor foi Douglas Santos, de Tianguá, na Serra da Ibiapaba, no Ceará. Aos 14 anos, ele descobriu que seria pai e, aos 16, se tornou pai solo. Hoje aos 20, Douglas é pai de Erick Dylan, de seis anos, além de uma figura influente nas redes sociais, onde compartilha sua jornada de paternidade e arranca sorrisos com sua típica gaiatice cearense.

Douglas e seu filho Dylan moram em Tianguá, na Serra da Ibiapaba, no Ceará(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Douglas e seu filho Dylan moram em Tianguá, na Serra da Ibiapaba, no Ceará

A responsabilidade na vida de Douglas veio logo cedo, e o universo não demorou para testar sua força. Menos de três anos depois do nascimento do filho, o jovem enfrentou uma perda devastadora: sua ex-namorada e mãe de Dylan, Ester Cristina, faleceu vítima de dengue hemorrágica. A notícia abalou completamente as estruturas de Douglas que agora precisava equilibrar as responsabilidade de criar o filho, além de concluir o ensino médio.

“Eu estava no último ano do ensino médio, as coisas estavam andando, a lojinha virtual de roupas que eu tinha estava crescendo e eu já estava trabalhando para mim mesmo. Só que o impacto foi muito forte para mim. Eu larguei tudo e fui morar com meus avós. Foi um período muito difícil, mas eu sabia que precisava focar no meu filho e na minha educação”, relembra, dizendo que uma reserva de dinheiro que tinha guardada também ajudou a manter as contas em dias.

Apesar de seus esforços, a estadia na casa dos avós não deu certo. Três meses depois, mudou-se para a casa de sua mãe, mas lá ficou apenas por dois meses. A falta de espaço para ele e o filho pequeno o fez buscar novamente sua independência. Ele conseguiu concluir o ensino médio e voltou a trabalhar, com uma grande virada de rumos acontecendo em 5 de dezembro de 2021.



Naquele dia, o jovem gravou um vídeo desabafando sobre a saudade de Ester e compartilhando sua rotina de criação de Erick Dylan. Inicialmente, a ideia era usar o vídeo como uma forma de motivação para seguir em frente. De maneira despretensiosa, porém, ele publicou no TikTok, sem imaginar que sua vida mudaria a partir dali.

Em menos de 24 horas, o vídeo viralizou, acumulando milhões de visualizações. "No dia seguinte, o vídeo tinha 5 milhões de visualizações. Oito dias depois, já tinha mais de 15 milhões. Eu não sabia o que estava acontecendo", relembra, mencionando que a exposição trouxe oportunidades inesperadas.

Nos meses seguintes, ele foi abraçado por um público solidário que o ajudou a levantar fundos para reabrir seu negócio virtual, interrompido após a morte da namorada. Ele arrecadou R$ 20 mil, mas nem todo o dinheiro foi investido no negócio original. Em vez de voltar a vender apenas roupas, Douglas decidiu apostar na distribuição de sorrisos no rosto de milhares de seguidores através de vídeos que combinavam humor à sua desafiadora rotina como pai solo.

 

Douglas comprou equipamentos como câmera e luzes, e montou um estúdio em casa, onde começou a produzir conteúdo. Em pouco tempo, chamou a atenção de empresas nacionais e internacionais em busca de parcerias. “Comecei com empresas locais, mas logo marcas maiores, como Bic e Prime Video, também se interessaram pela minha história”, diz ele, com um largo sorriso no rosto.

Ele fechou a loja virtual para focar todas as atenções profissionais em ser influenciador digital – não sem antes enfrentar alguns obstáculos consideráveis. Seu perfil de mais de 500 mil seguidores foi hackeado, porém sua determinação o manteve firme. "Ao todo, perdi seis contas com milhares de seguidores, mas nunca desisti. Sempre levantei e comecei de novo", conta, ressaltando que sua maior motivação está dentro de casa (e agora aprendendo a ler e a escrever).

Ao resgatar memórias da própria infância, o influenciador digital relembra a separação de seus pais quando ele tinha apenas seis anos, a mesma idade que Dylan tem hoje. Essas memórias ainda estão vívidas em sua mente, e ele recorda que, após o rompimento familiar, foi morar com a mãe. Os encontros com seu pai tornaram-se esporádicos e distantes, refletindo o desinteresse do pai em manter uma presença significativa em sua vida.

Abraçado por um público solidário, Douglas deu início a uma carreira de digital influencer mostrando sua rotina de paternidade solo nos cuidados do filho Dylan(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Abraçado por um público solidário, Douglas deu início a uma carreira de digital influencer mostrando sua rotina de paternidade solo nos cuidados do filho Dylan

A referência paterna mais próxima passou a ser do padrasto. No entanto, a relação entre eles não foi das mais fáceis, pois a rebeldia da juventude fazia com que Douglas entrasse em constantes atritos com o padrastro. “Ele falava alguma coisa e eu rebatia dizendo que não era meu pai”, comenta, mencionando que atualmente tem trabalhado essa aceitação de uma maneira mais amigável, especialmente graças à experiência com seu próprio filho.

"Meu filho não tinha a mãe dele. Então no Dia das Mães na escola isso era muito difícil, pois sempre estava só eu lá. Dylan não compreendia. Às vezes, ele dizia: 'Pô, pai, a mãe do meu coleguinha veio e a minha não'”, conta Douglas, destacando que, ao assumir a paternidade solo, começou a perceber aspectos na vida do filho que espelhavam sua própria história. “Percebi que é preciso mudar muitos entendimentos para não criar uma mágoa dentro de nós mesmos.”

Em 2023, o influenciador começou a namorar Raila Sousa, com quem se casou em março deste ano, trazendo uma nova figura materna para Dylan. “No Dia das Mães deste ano, ela foi à escola dele, e ele foi a pessoa mais feliz do mundo. Tanto que hoje ele chama minha esposa de mãe, mesmo sabendo que ela é mãe do coração”, narra.

“Quando eu era criança, não conseguia compreender isso, não conseguia nem sentar para conversar com minha mãe e meu pai sobre essas coisas. Às vezes, a gente só consegue entender quando se torna adulto, né? Então, fiz diferente com meu filho, para que ele entendesse que o que aconteceu com a mãe dele foi triste, mas que havia alguém que o amava e que ele podia decidir como iria tratá-la, seja como madrasta, mãe ou do jeito que quisesse. Ele escolheu tratá-la como mãe”, celebra.

Em março de 2024, Douglas casou-se com Raila, trazendo uma nova figura materna para Dylan que passou a chamá-la de mãe(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Em março de 2024, Douglas casou-se com Raila, trazendo uma nova figura materna para Dylan que passou a chamá-la de mãe

Histórias como as de Jeff e Douglas exemplificam novos modelos de paternidade, mas não se limitam a eles. Abaixo, clique nos cards para conhecer as trajetórias do educador físico Alex Barreto, do publicitário Igor Alencar de Aguiar e do jovem João Victor Santiago. Todos eles têm se destacado como representações modernas e inovadoras da figura paterna.

 

 

Uma história de contrastes e reflexões, com Alex Barreto

Clique na imagem abaixo para conhecer a história de Alex Barreto

 
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A descoberta de uma nova perspectiva de paternidade, com Igor Alencar de Aguiar

Clique na imagem abaixo para conhecer a história de Igor Alencar de Aguiar

 
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Os desafios da paternidade solo, com João Victor Santiago

Clique na imagem abaixo para conhecer a história de João Victor Santiago

 
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O despertar para uma paternidade responsável ajuda a reconfigurar famílias

A presença do pai na vida de uma criança é crucial para seu desenvolvimento emocional e social. Diferentes estudos apontam a importância vital da figura paterna para o bem-estar das crianças em seus primeiros contatos com o mundo fora do útero materno. As pesquisas também sugerem a necessidade de uma mudança no entendimento da sociedade, que muitas vezes atribui e delimita papéis muito bem definidos, exclusivos para mães ou pais, em vez de promover a atuação conjunta.

A professora de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Vania Bustamante, destaca os diferentes prejuízos causados às crianças que crescem sem a presença paterna durante a infância. Em seu estudo “Participação paterna no cuidado durante o primeiro ano de vida”, ela lista uma série de aspectos diretamente relacionados à ausência do pai.

 

Impactos da participação paterna na criação e desenvolvimento das crianças


As reflexões sobre a importância da participação ativa dos pais na criação dos filhos começaram a ganhar força apenas recentemente. A pesquisadora Tuany Abreu de Moura destaca um fenômeno silencioso, mas profundamente transformador, que emergiu nas últimas décadas: a paternidade ativa. Esta nova abordagem reconfigura o papel do pai na sociedade, respondendo aos antigos modelos de masculinidade e se enraizando firmemente na estrutura familiar contemporânea.

Socióloga formada pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), Tuany aponta que desde o final do Século XX, uma efervescência social começou a se intensificar, impulsionada por movimentos feministas, pela luta por igualdade de gênero e pelos movimentos LGBTQIA+ em defesa da diversidade sexual e dos direitos civis.

“Nesse contexto de ebulição e transformação social, os homens não passaram ilesos. A figura masculina também foi forçada a se adaptar”, explica, mencionando que as novas formas de masculinidade têm impactado diretamente os moldes da paternidade.

O papel tradicional do pai, anteriormente visto como a figura dominante no lar e no trabalho, passou por uma modificação significativa. Esta mudança reflete uma nova compreensão sobre o que significa ser pai e como a dinâmica familiar está se redefinindo no contexto moderno. O aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, por exemplo, ajudou a evidenciar e a reformular os papéis dentro de casa.

Tuany Abreu de Moura é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde explorou em seus estudos o conceito de paternidade ativa nas redes sociais(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Tuany Abreu de Moura é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde explorou em seus estudos o conceito de paternidade ativa nas redes sociais

“Antes, a ideia era que o homem ia trabalhar e a mulher ficava em casa cuidando de tudo. Elas diziam às crianças para não incomodarem os pais, pois essas mesmas mulheres também eram subservientes a esses homens. Quando tiramos o pai desse pedestal, onde tudo lhe era servido, ele começa a ser inserido no cotidiano da casa. Costumo dizer que a revolução começa da porta para dentro, na forma como as famílias se organizam em busca de equilíbrio”, descreve Tuany.

Assim, os estudos de gênero e família começaram a identificar uma nova dinâmica que indica o surgimento de uma paternidade mais responsável. Esse modelo propõe que o pai compartilhe em pé de igualdade com a mãe não apenas as responsabilidades materiais, mas também o compromisso com o cuidado e o afeto. Esse conceito ganhou destaque nas redes sociais por volta de 2015, impulsionado por influenciadores que promovem uma visão mais completa e participativa do papel paterno.

Tuany Abreu explorou esse movimento em sua dissertação de mestrado em Sociologia na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela destaca que influenciadores como "Paizinho, Vírgula!" e Marcos Piangers foram fundamentais na popularização da paternidade ativa, introduzindo práticas como a disciplina positiva, onde as punições tradicionais são substituídas por métodos que valorizam o respeito e a comunicação.


 

"Paizinho, Vírgula!" é uma plataforma criada por Thiago Queiroz, focada em paternidade ativa e consciente

"Paizinho, Vírgula!

Por meio de blogs, podcasts e vídeos, experiências como pai são compartilhadas para promove a criação com apego e disciplina positiva, incentivando proximidade entre pais e filhos.

 

Marcos Piangers é jornalista e escritor, conhecido por suas reflexões sobre paternidade e tecnologia

Marcos Piangers

Autor de "O Papai é Pop", ele aborda os desafios e alegrias de ser pai com uma abordagem humorada e humana, inspirando pais a serem mais presentes e conscientes na vida dos filhos.


Apesar dos avanços, essas mudanças ainda estão em estágio inicial e há muito a ser feito. Tuany acredita que estamos no começo de uma transformação social mais profunda, e que as mudanças mais significativas ocorrerão com o tempo, à medida que novas gerações crescerem com perspectivas mais equilibradas sobre o papel do pai. No entanto, desafios estruturais ainda persistem na sociedade.

Também mestre e doutora em Saúde Coletiva pela UFBA, a professora Vania Bustamante aponta em seu artigo que ações em instituições e serviços de saúde muitas vezes desencorajam a presença masculina desde o período pré-natal, impactando o envolvimento dos pais ao longo de todo o processo de desenvolvimento da criança. Entre os pontos que precisam ser revisados, ela menciona:


Para combater a ideia de que os cuidados com os filhos são uma responsabilidade exclusiva das mães, o Ministério da Saúde lançou em 2018 a "Cartilha para Pais". O documento foi criado para atender à crescente demanda de homens que desejam se envolver mais ativamente no processo de planejamento reprodutivo, pré-natal, parto, pós-parto e nos cuidados durante o crescimento da criança. O objetivo principal da cartilha é esclarecer os direitos paternos e incentivar uma paternidade ativa e participativa.

 

Leia a "Cartilha para pais"

 

 

>> Ponto de vista

Não sei como é ter um pai, mas eu sei o que é ser um

Wanderson Trindade*

Assistir, entrevistar e ler os relatos dos personagens desta reportagem é como um exercício de confrontar o passado e esboçar o futuro. Cada história contada é um espelho onde, aos poucos, começo a enxergar não só os traços de dor e frustração dos outros, mas também os meus próprios, esculpidos por aquele que deveria ter sido o alicerce da minha vida. Ou melhor: apenas um pai.

Wanderson Trindade é colunista de games, repórter do O POVO  e, principalmente, pai do Noah(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Wanderson Trindade é colunista de games, repórter do O POVO e, principalmente, pai do Noah

Fui abandonado antes mesmo de completar um ano, quando minha mãe, exausta das noites regadas a álcool e irresponsabilidade, pediu o divórcio. Nunca soube o que era ter um pai. Aquela figura que deveria compartilhar com minha mãe o peso de me educar e me guiar pelos caminhos da vida nunca existiu.

Nem tios, avôs, professores ou candidatos a padrástro tentaram preencher essa lacuna, uma ausência que só agora reconheço em toda a sua profundidade. Eu cresci sem perceber que, em algum lugar do mundo, havia famílias onde a responsabilidade de criar os filhos era dividida. Mas, olhando ao redor, percebo que poucos amigos da minha infância e adolescência tiveram essa experiência para chamar de sua.

Com o entendimento que tenho hoje, é difícil negar que ainda carrego resquícios de mágoa por ter sido abandonado por quem deveria ter sido meu pai. A expressão "meu pai" jamais saiu dos meus lábios nesses vinte e poucos anos. E não era para menos – ele nunca fez questão de sequer lembrar meu nome.

Esse turbilhão de sentimentos moldou em mim um certo desinteresse em formar uma família, pelo menos no sentido tradicional. Filhos? Talvez um pet ou uma planta. Como eu, que nunca conheci o que é ser filho de um pai, poderia algum dia me tornar aquilo que sempre vi de longe, cercado de ressalvas e dúvidas?

Mas a vida tem suas surpresas. E a minha foi transformar esse pensamento. Hoje, vivo a maior alegria que poderia ter: me tornei pai. O momento em que o teste de farmácia deu positivo, após um longo dia de trabalho, foi suficiente para eu saber que estava destinado a isso. Não precisei segurar meu filho nos braços para entender que, a partir dali, uma nova vida estaria eternamente ligada à minha.

Agora, enquanto acompanho cada fase do seu crescimento, vejo cada aprendizado se somar a outro, preparando-o para o futuro. Admiro cada movimento, cada “papa” repetido sem fim, e sinto cada vez mais que nasci para isso.

Não sei o que é ter um pai na minha vida, mas sei exatamente o que é a felicidade de ser um. A minha missão é clara: dar ao meu pequeno que recentemente completou um ano aquilo que me foi negado: um pai que o ame e o apoie incondicionalmente, acompanhando e celebrando seus sorrisos, suas vitórias e suas felicidades.

Te amo, filho!

*Wanderson Trindade, colunista de games, repórter do O POVO+ e, principalmente, pai do Noah

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