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Profissões tradicionais enfrentam desafio para fazer sucessores no interior do Ceará
Reportagem Seriada

Profissões tradicionais enfrentam desafio para fazer sucessores no interior do Ceará

Atividades tradicionais do interior cearense têm como desafio a sucessão. Condições de trabalho e baixa remuneração não atraem os mais jovens
Episódio 1

Profissões tradicionais enfrentam desafio para fazer sucessores no interior do Ceará

Atividades tradicionais do interior cearense têm como desafio a sucessão. Condições de trabalho e baixa remuneração não atraem os mais jovens
Episódio 1
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Foi-se o tempo em que, no interior do Ceará, a “tarefa” das crianças, depois da escola e antes do brincar, era aprender sobre o ofício dos pais. Para um dia obter dele o sustento da família e garantir a continuidade das tradições e do artesanato.

Trançar a palha de carnaúba, criar vacas e caprinos para produção de leite e queijo, empunhar, tecer, e entrelaçar varandas de rede. Nada disso está nos planos dos mais jovens. São as profissões dos “enta”, protagonizadas por pessoas com mais de 40 anos.

A sucessão rural é um desafio, que exige soluções inovadoras para questões que têm como pano de fundo falta de apoio aos produtores, desorganização entre eles, informalidade, machismo, inexistência de capital de giro e de capacitações que considerem — e mudem — a realidade.

Acima de tudo, a desvalorização financeira: em Jaguaruana, terra das redes e que tem até Selo de Identificação Geográfica, uma mulher passa dias entrelaçando um par de varandas pelo qual só receberá R$ 4.

Maria de Lurdes Silva Rodrigues, 58, artesã de mamuçaba, em Jaguaruana (Foto: Júlio Caeser)
Foto: Júlio Caeser Maria de Lurdes Silva Rodrigues, 58, artesã de mamuçaba, em Jaguaruana

Um mapeamento feito pela Agência de Desenvolvimento Econômico (Adece) identificou Arranjos Produtivos Locais (APLs) em algumas cidades do interior cearense. O APL é definido como um conjunto de agentes econômicos, políticos e sociais, localizados em um mesmo território, com foco em um conjunto específico de atividades econômicas.

Em 2021, pelo menos dos APLs identificados pela Adece apontaram como um dos grandes desafios o desinteresse da juventude em continuar as atividades tão antigas e passadas entre gerações.

“Inovação e tecnologia é algo comum entre as demandas. E praticamente todos têm a questão da sucessão de negócios, destacando a governança fraca. O mapeamento pode fazer com que a expertise da atividade não se perca ao longo do tempo. Para trabalhar essa questão produtiva e potencializar o local para inibir a extinção da atividade por falta de interesse dos mais jovens”, afirma Luana Bandeira, assessora técnica da Adece.

O POVO inicia hoje uma série de reportagens sobre profissões tradicionalmente cearenses que podem, ao longo das próximas décadas, não ter mais mão de obra capacitada para fazer os pontos do artesanato na palha de Itaiçaba, produzir o queijo de Jaguaribe e Jaguaretama ou as redes de Jaguaruana, que ganham o mundo com detalhes de uma arte feita à mão e, em sua imensa maioria, por mulheres.

 

 

Em Itaiçaba, a arte na palha da carnaúba enfrenta dependência do sol e falta de apoio


Ainda era fim do "inverno", sol quente e nuvens carregadas, cenário nada perfeito para Conceição Falcão, 63, que precisava vigiar e correr para tirar as folhas de carnaúba que secavam no meio da rua de pedras.

Dona Conceição prepara folha da canaúba para produzir artesanato em palha (Foto: Júlio Caesar )
Foto: Júlio Caesar Dona Conceição prepara folha da canaúba para produzir artesanato em palha

As folhas colhidas no carnaubal precisam ficar por até quatro dias sob o sol para depois ser matéria-prima na mão dos artesãos. “A chuva deixa a palha mole, aí não presta. Pode usar verniz para endurecer, mas não é todo cliente que quer”, conta. O inverno, então, impõe severa sazonalidade à atividade.

Na varanda da casa de Conceição, várias bolsas no meio do processo produtivo, trabalho feito pela filha dela, Edvânia Falcão Rodrigues, 41, que se diz desiludida com o artesanato.

“Só tem lucro para quem compra para revender, mas não para quem trabalha na mão de obra. Tudo aumentou, até a quantidade de palha que a gente leva no lombo. Mas o trabalho que a gente faz está do mesmo jeito, sem valorização”, destaca.

A dinâmica de captação de matéria-prima, produção das peças de palha de carnaúba é extensa, envolve diferentes atores e tem raiz indígena.

Em Itaiçaba estima-se que cerca de 80% das famílias estejam envolvidas nas atividades com a palha, de forma direta ou indireta. A prática secular passou a ser mais organizada na década de 1990, quando surgiu a Associação Comunitária das Mulheres Artesãs de Itaiçaba.

Ocirema Rodrigues, 59; Santina, 75; Maria Neusa de Lima, 70; Rita Araújo Damasceno, 80; Maria do Carmo Araújo, 57, participam da Associação de Mulheres Artesãs de Itaiçaba (Foto: Júlio Caeser)
Foto: Júlio Caeser Ocirema Rodrigues, 59; Santina, 75; Maria Neusa de Lima, 70; Rita Araújo Damasceno, 80; Maria do Carmo Araújo, 57, participam da Associação de Mulheres Artesãs de Itaiçaba

Quem a dirige é Cerzina Ferreira da Silva, 54. É ela também que sabe sobre a importância de mostrar o que as mulheres produzem, de ter capital de giro para possibilitar negociações mais vantajosas e de, com isso, atrair o interesse dos filhos e netos.

“Os jovens poderiam ser mais ativos na tecnologia, na venda online, mostrando os produtos, sabendo fotografar as peças dos pais. É sair do tradicional”, compreende, consciente também de que “tem mulheres que vendem o que fazem por qualquer preço, porque precisam comer”. A atividade, inclusive, tem em seu histórico as negociações em forma de escambo: artesanato em troca de comida.

Arte da palha de carnaúba

 

 

Jaguaretama e Jaguaribe: riscos da crise de representatividade entre produtores de queijo e leite


Filadelfo Pinheiro, 45, presidente da Cooperativa dos Produtores de Caprino e Ovinos do Vale Jaguaribano (Cooprivale), diz que uma das preocupações atuais sobre a continuidade da agropecuária é sobre representatividade e corporativismo.

“A maioria das pessoas que estão em associações é de idosos. Na Cooprivale, 28 integrantes têm mais de 50 anos, três têm até 30 anos e não tem ninguém com 20 anos”, contabiliza. Seus dois filhos em idade adulta — são quatro, ao total — também não estão nessa estatística: um estuda Ciências Contábeis e o outro Engenharia Civil.

“Sempre trabalhei a mente deles, levava para o meio rural, para conviver com as cabras. Queria que eles continuassem, como aconteceu de papai para mim, uma coisa natural o meu interesse por zootecnia e agropecuária. Mas eu respeito a escolha deles”, conta. 

Elisvando de Lima Lemos, 36 - empresário, produtor de queijo em Jaguaribe
Foto: Júlio Caeser
Elisvando de Lima Lemos, 36 - empresário, produtor de queijo em Jaguaribe

Filadelfo reconhece que por muito tempo a questão da sucessão rural não era vista como ameaça, portanto, não há um histórico de investimento em ensino, gestão, e sobre a importância da cooperativa para a cadeia. “Agora que os diretores estão ficando mais velhos essa preocupação surge”, destaca.

No Ceará, a caprinocultura está em quase todos os municípios, com destaque para as cidades de Jaguaretama e Tauá. Ainda não se configura como atividade principal, pois os produtores diversificam seus trabalhos com bovinocultura leiteira e agricultura de sequeiro — técnica para o cultivo em áreas onde chove pouco.

Na família de Elisvando de Lima Lemos, 36, foi ele quem herdou a missão de continuar e transformar a produção bovina de leite, que passou a ser também de queijo.

Caprinocultura de leite de Jaguaretama

 

“É um negócio familiar porque precisa ser. É muita persistência, de domingo a domingo, então só dá certo se for entre a família”, afirma. Ele lembra de quando, por volta dos 16 anos, quis sair de Jaguaribe para estudar, depois de passar os últimos nove anos trabalhando com o pai, na vacaria da propriedade.

“Mas meu pai queria me segurar, ao mesmo tempo em que dizia que era difícil. E eu, ouvindo isso, não queria ficar. Queria algo que não tivesse dificuldade. Na época, eu não tinha descoberto o tanto de potencial que a fazenda tem. Hoje eu digo para os jovens: não precisa sair”, pondera Elisvando.

Ele destaca ainda que sua geração, diferente da dos pais, teve mais acesso ao estudo, o que considera importante para manutenção dos negócios rurais. “O pai precisa ver isso, de trazer o filho, com estudo, para juntar prática e conhecimento”.

Queijo de Jaguaribe

 

A produção de queijo coalho do Vale do Jaguaribe passa pelo período das charqueadas do século XIX. O queijo surge como um dos produtos derivados do leite e que evitava o estrago de excedente.

Por muito tempo, a produção foi associada à subsistência, sendo também objeto de troca por farinha, rapadura e sal. É objeto da cultura relacionada ao “saber fazer” e elemento da identidade e memórias sociais.

 

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Tradição e sucessão profissional no interior cearense

Reportagem seriada investiga as atividades tradicionais no interior cearense e os obstáculos para sucessão