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Em Jaguaruana, herança cultural valiosa tenta resistir no tear no tempo
Reportagem Seriada

Em Jaguaruana, herança cultural valiosa tenta resistir no tear no tempo

Teares ativos, arte feita à mão, selo geográfico e o desafio de fazer com que a cadeia seja mais justa
Episódio 2

Em Jaguaruana, herança cultural valiosa tenta resistir no tear no tempo

Teares ativos, arte feita à mão, selo geográfico e o desafio de fazer com que a cadeia seja mais justa
Episódio 2
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Sucessão do negócio foi um dos quatro desafios apontados pelos produtores de rede de dormir em Jaguaruana. Uma atividade que perpassa o século XVIII, a produção de algodão cearense e a típica fabricação familiar, em que os homens são responsáveis pelo comércio, enquanto mulheres e filhos se dedicam ao acabamento artesanal.

No meio de fios, barulho, teares e muito tecido, Carlos André Faustino da Silva, 39, e o filho, Andrei Faustino da Silva, 19, dividem o fazer das redes de uma das fábricas de Jaguaruana.

Não foi pelo objetivo de passar o ofício entre gerações, nem pela tradição, mas para manter um adolescente perto do pai e não no meio da rua, vulnerável à violência e uso de drogas. “Ensinei ele a trabalhar, consegui o emprego e ele ficou. Tem até carteira assinada”, orgulha-se André.

Carlos Andrei Faustino da Silva, 19, com o pai, Carlos André da Silva, 39: Tecelões de Jaguaruana(Foto: Júlio Caeser)
Foto: Júlio Caeser Carlos Andrei Faustino da Silva, 19, com o pai, Carlos André da Silva, 39: Tecelões de Jaguaruana

 

Lado a lado, cinco dias por semana, pai e filho fazem cerca de 20 redes por dia e destacam as vantagens de não trabalhar aos fins de semana e nem com o corpo exposto ao sol, como muitas das atividades rurais.

“Tem muito jovem que tem preguiça de aprender e eu também tinha. É complicado de aprender no começo, mas depois é mais fácil”, diz Andrei.

A perspectiva futura de pai e filho nada tem a ver com o segmento fabril de redes, o desejo é montar um negócio próprio, “para vender carne, em um comércio de alimentos”.

Fábrica de redes em Jaguruana(Foto: Júlio Caeser)
Foto: Júlio Caeser Fábrica de redes em Jaguruana

A família trabalha na fábrica de uma outra família, a do atual presidente da Associação de Fabricantes e Artesãos de Redes de Jaguaruana, José Pinheiro Júnior, 58.

Depois de morar durante 19 anos em Belém (PA), ele voltou para sua cidade natal em 1985 e, mesmo sem querer, se apaixonou pela tecelagem de redes.

“Quando eu vi o barulho do tear, tecendo, pedi para ficar olhando, fui aprendendo, comecei a ajudar e a fazer tudo, tingir… comecei a conhecer todos os processos”, lembra.

Detaque de uma fábrica de redes artesanais em Jaguaruana(Foto: Júlio Caesar/O POVO)
Foto: Júlio Caesar/O POVO Detaque de uma fábrica de redes artesanais em Jaguaruana

Ele então passou a ser o responsável pela fabricação iniciada com a avó e que, entre os filhos, nenhum quis seguir. “Em Belém, onde cresci, minha mãe vivia falando das redes da minha avó e eu sempre via pessoas lá vendendo a ‘rede de Jaguaruana’”, lembra.

Pinheiro reavivou o negócio da família e criou as duas filhas fazendo as redes e conhecendo os processos. As duas, porém, saíram da Cidade para se formar em Engenharia Civil. Uma delas segue longe, mas a outra voltou. E hoje é responsável pelas redes sociais e comunicação da fábrica.

Redes de dormir de Jaguaruana

 

 

O que dizem os mais jovens


“É uma profissão que aos poucos está diminuindo. Essa é uma profissão dos nossos pais, nossos avós, e na maioria das vezes os filhos não se interessam pela mesma coisa”.

A afirmação é de Luiz Felipe Falcão Lima, 19 anos. Ele é filho e neto de artesãs de Itaiçaba, sabe fazer a arte de palha de carnaúba, tem noção da importância econômica e cultural da atividade, mas deixa claro: “Quero ir embora da Cidade”.

Mais, Felipe diz entender o que a tradição significa e deixa mais uma vez sua opinião: “Vai chegar um momento que a tradição vai parar de ser executada e vai ser mais como uma parte histórica mesmo, de saber que uma cidade teve por muito tempo sua economia baseada no artesanato de palha. E vai chegar um momento que não vai ser mais a principal economia da Cidade”.

Palha de carnaúba secando ao sol, em Itaiçaba
Foto: Júlio Caeser
Palha de carnaúba secando ao sol, em Itaiçaba

 

Trabalhar muito, em condições desfavoráveis — sentado no chão, num tamborete, por horas, no sol quente, em movimentos repetidos, todos os dias da semana.

Com pouco retorno financeiro e sem perspectiva de crescimento. É assim que muitos jovens veem as profissões mais tradicionais do Ceará. E eles não estão errados. Entretanto, a realidade ainda é de casas sendo sustentadas pelos mais velhos, jovens “ nem-nem "Nem trabalha, nem estuda; população jovem que está tanto fora do mercado de trabalho quanto da escola" ”, violência e adolescentes expostos a vulnerabilidades.

Felipe tem outras perspectivas. Trabalha com o tio em uma loja de motos, diz gostar do ramo automotivo e destaca as vantagens empreendedoras do segmento que escolheu.

Maria Juliana, 19, faz varanda de redes artesanais em Jaguaruana(Foto: Júlio Caesar/O POVO)
Foto: Júlio Caesar/O POVO Maria Juliana, 19, faz varanda de redes artesanais em Jaguaruana

“É o que estou interessado em aprender e me aprimorar. É sobre o que mais tem curso e também tem a questão de ser pioneiro. Hoje somos o número 1 e quando você é o número 1, não quer ficar para trás”, vende.

Na mesma rua de Felipe mora Jackson Douglas do Vale Silva, 34. Gerações diferentes criadas com o artesanato de palha de carnaúba.

Servidor público municipal em meio período, Douglas inovou a produção feita pela mãe e diz gostar da máquina de costura, de criar novos pontos do trançado da palha e de construir novas “grades”, que formatam as bolsas produzidas.

Jackson Douglas do Vale Silva, 34, artesão da palha de carnaúba de Itaiçaba
Foto: Júlio Caeser
Jackson Douglas do Vale Silva, 34, artesão da palha de carnaúba de Itaiçaba

“Muitos modelos eu que criei, tinha uma forma e eu adaptei. Vejo muitos modelos de bolsas de couro, pesquiso… eu não tenho vergonha, nem preconceito, gosto de costurar. E vejo as novidades”, conta.

Sem capacitação para gerir ou aumentar o negócio da família — a mãe costura na máquina ao lado da dele e acredita que a profissão não é para homens — Douglas faz do Instagram seu principal canal de vendas e conhecimento.

Em Jaguaruana, Maria Juliana de Oliveira, 19, faz varanda de rede enquanto assiste sua série predileta em um dos streamings mais conhecidos no País.

Ela diz trabalhar justamente para poder pagar a assinatura, além de poder fazer a sobrancelha e comprar o perfume predileto.

“Como eu passo o dia em casa, já ocupa a mente com alguma coisa e quando chega o final do mês tem alguma coisa para receber. É melhor do que passar o dia todinho com o celular na mão”, afirma.

 

 

Mamucaba: negócio de uma cidade sustentada por mulheres


Um município, uma atividade, um segmento econômico. Grande parte — enorme mesmo —do trabalho artesão e regional que imprime representatividade a algumas cidades cearenses é feito na varanda de casa, com pernas e braços cansados, porém, sempre ativos.

Corpos femininos, acima dos 50 anos, que sustentam casas, filhos, netos e todo um comércio que, por mais que lucre, não possibilita ascensão financeira a quem de fato o torna diferente.

Maria de Lurdes Silva Rodrigues, 58,  artesã de mamucaba, em Jaguaruana(Foto: Júlio Caeser)
Foto: Júlio Caeser Maria de Lurdes Silva Rodrigues, 58, artesã de mamucaba, em Jaguaruana

O POVO esteve em quatro municípios cearenses (Itaiçaba, Jaguaribe, Jaguaretama e Jaguaruana) e constatou que, em relação ao artesanato, (quase) tudo se deve às mulheres.

Em Itaiçaba, a fabricação de artigos com fibra natural da palha da carnaúba pode até ser pensada e herdada por e entre homens, mas nas máquinas de costura, só foi possível ver mulheres trabalhando. Nos tamboretes onde a palha é traçada, também.

Da atuação na máquina à agilização para buscar mercados e novas possibilidades de comercializar está Cerzina Ferreira da Silva, 54, presidente da Associação das Mulheres Artesãs de Itaiçaba. É ela quem peleja em busca de apoio e para levar entendimento às artesãs sobre como o que fazem é valioso.

 Cadeia da fabricação de redes artesanais envolve, na sua maioria, mulheres acima de 50 anos(Foto: Júlio Caesar/O POVO)
Foto: Júlio Caesar/O POVO Cadeia da fabricação de redes artesanais envolve, na sua maioria, mulheres acima de 50 anos

É ela também quem pensa com esperança e objetividade: “Queria ser uma lojista aqui, que a cidade tivesse um grande centro de artesanato e a gente administrasse. Vai ter sempre famílias fazendo a arte da palha, porque é uma atividade domiciliar. O turista vem e a gente precisa levar ele até os locais de compra, porque não tem um lugar que concentre”.

Quem compra a rede de dormir de Jaguaruana, no mundo inteiro, é atraído não apenas pelo tecido, mas principalmente pelos detalhes do punho, da mamucaba, das varandas produzidas de forma minuciosa, histórica e cheia de detalhes.

“Não mudou nada. Eu via minha mãe trançar, perfilar, empunhar”, afirma Maria de Lourdes Silva Rodrigues, 58. Todos os dias, entre 7h e meio-dia; depois, das 14 horas e até o fim da tarde, ela vai e volta na varanda de casa como a mãe fazia.

Trabalhadoras artesanais em Jaguaruana: prática que passa de mãe para filha(Foto: Júlio Caesar/O POVO)
Foto: Júlio Caesar/O POVO Trabalhadoras artesanais em Jaguaruana: prática que passa de mãe para filha

Ela faz, desde que se entende por gente, a arte da mamucaba, um dos processos de acabamento da rede. É feito manualmente, onde os fios vão se alternando até formar uma trama lisa, que então une os torcidos da rede.

O principal objetivo e diferencial é aumentar a capacidade de carga da rede, além de deixá-la mais bonita. Em todas as apurações do O POVO em Jaguaruana, o que mais se destacou em relação às redes de dormir: qualidade e beleza.

Ainda mais bonita do que a mamucaba é a varanda da rede, também feita de forma manual por mulheres nos quintais e áreas externas das residências, algumas em distritos encravados no semiárido cearense.

Ana Cláudia da Silva, 65, artesã de mamucaba em Jaguaruana
Foto: Júlio Caeser
Ana Cláudia da Silva, 65, artesã de mamucaba em Jaguaruana

“Isso não é trabalho para homem, é para mulher. Homem tem que caçar alguma coisa no campo”, diz, em uma dessas casas, a varandeira Maria Juliana de Oliveira, 19. A arte que ela faz, que corre países afora, é vista por Juliana apenas como o dinheiro para pagar maquiagens e streamings.

Apesar de ser base da economia de seus municípios, o trabalho dessas mulheres resistentes e artistas não recebe o retorno devido. Horas, dias, tradição, herança, vocação, habilidade, arte.

Tudo que é essencial para que peças e marcas tenham comércio garantido e lucrativo, não é recompensado considerando o esforço e o peso que aquela arte tem para o produto final. Produtos vendidos por centenas de reais. Pagamentos feitos em poucas unidades do mesmo real.

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