Logo O POVO+
Reinventar a lida
Reportagem Seriada

Reinventar a lida

Reinventar a lida

Por

Foi a necessidade, mas, principalmente, a esperteza. Um dia, já sabido de mexer na Internet, seu Luiz viu um rapaz - não lembra de onde - mostrar no vídeo uma geringonça pequena que, acionada por uma alavanca manual, desenterrava do chão a brabeza de uma macaxeira gigante. Seria ali força pra talvez quatro homens, mas que o equipamento feioso tornava fácil para um 'cabra' apenas. Coisa simples. De uma olhada, meteu-se a recriar e, no seu jeito, aperfeiçoou uma colhedeira de mandioca.

A “invenção” nasceu três anos atrás. Seu Luiz usa quando precisa arrancar manivas mais difíceis. Maniva é o caule, debaixo está a mandioca. Com a colhedeira, ganha tempo na lida do roçado, poupa cansaço debaixo do sol. É uma riqueza, sopro no calor de uma seca de quatro anos emendados. Ele mora em Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, mas arrenda terras irrigadas no Assentamento Curupati, em Jaguaribara, no Ceará.

Mandioca, mamão, banana, goiaba, vem pra ganhar a vida ao lado do açude Castanhão. Paga o chão plantado, mas acompanha de perto a época da colheita. “Cheguei a arrancar uma mandioca de 32 quilos sozinho”, exalta, da colhedeira que botou no mundo. Luiz Nogueira do Rêgo, 66 anos, aprendeu a ser desacomodado pela insistência do pai, Raimundo Guedes do Rêgo.

JAGUARIBARA, CE, BRASIL, 26-06-2015: Luís Nogueira do Rêgo, agricultor na plantação de macaxeira, no assentamento Curupati. Projeto Seca Os Quinzes - 100 anos da Seca do 15 (Seca no ano de 1915) - Jaguaribara. (Foto: Fábio Lima/O POVO)
Foto: O POVO
JAGUARIBARA, CE, BRASIL, 26-06-2015: Luís Nogueira do Rêgo, agricultor na plantação de macaxeira, no assentamento Curupati. Projeto Seca Os Quinzes - 100 anos da Seca do 15 (Seca no ano de 1915) - Jaguaribara. (Foto: Fábio Lima/O POVO)

Na infância em São Miguel, também no Rio Grande do Norte, diz que o pai “botava a gente pra trabalhar de graça, trabalhei meses e meses só pra aprender a profissão”. Como o Chico Bento de Rachel de Queiroz, em O Quinze, o pai de seu Luiz queria que as crias de casa tivessem destino melhor. Que não fosse o de só esperar os desígnios de Deus quando alguma nova seca firmasse.

“Isso que fez até hoje a gente não ter medo de enfrentar as dificuldades que existem”. Seu Luiz até foi embora da região seca, tentar a vida em São Paulo. Como o Chico Bento de Rachel que um dia, já na desesperança, também foi “por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há farinha e sempre há inverno...”. Nunca se soube se o vaqueiro de O Quinze quereria voltar à sua Quixadá. Mas seu Luiz preferiu o regresso.

“Morei 18 anos lá, foi 18 anos dizendo que vinha embora. Lá aprendi mais coisa. Cheguei à conclusão que o importante é amar o que se faz e fazer com vontade”. Seu Luiz viveu pelo Interior paulista. Dobra erres, canta a frase de outro jeito, adquiriu sotaque. Sabia de roça, só que desembarcou no Sudeste como peão de construção. Foi o que o pai mais ensinou. Entrou nos canteiros como servente de pedreiro, mas dedicação e a mesma insistência que seu Raimundo pregava o fizeram mestre de obra.

"Quem só se lamenta é uma tristeza. A seca é um dos ensinamento maior que pode existir na nossa região." Luiz Nogueira

JAGUARIBARA, CE, BRASIL, 26-06-2015: Luís Nogueira do Rêgo, agricultor na plantação de macaxeira, no assentamento Curupati. Projeto Seca Os Quinzes - 100 anos da Seca do 15 (Seca no ano de 1915) - Jaguaribara. (Foto: Fábio Lima/O POVO)
Foto: O POVO
JAGUARIBARA, CE, BRASIL, 26-06-2015: Luís Nogueira do Rêgo, agricultor na plantação de macaxeira, no assentamento Curupati. Projeto Seca Os Quinzes - 100 anos da Seca do 15 (Seca no ano de 1915) - Jaguaribara. (Foto: Fábio Lima/O POVO)

No seu tempo de vida, seu Luiz lembra de muitas secas atravessadas. Onde foi criado, nem açude tinha. Água era de cacimbão. O pai também inventava. Fez um guincho que limpava lama de fundo de cacimba, para que a água nova brotada fosse limpa. Faziam reserva num inverno para esperar outro ano estiado. A sabedoria repassada pelo pai encorpou o filho.

Debaixo de sol e chapéu de palha, é seu Luiz quem agora ensina: “Quem só se lamenta é uma tristeza. A seca é um dos ensinamento maior que pode existir na nossa região. Se não fosse uma seca em nossa região a cada dez anos, essas quatro secas agora ia todo mundo morrer de fome, porque não teria o açude Castanhão, nem outros açudes. Porque o pessoal aprende. Aqueles que querem aprender, né. Os que não querem vão ficar se lamentando a vida inteira”. (Com Ana Mary C. Cavalcante)

Chão de oportunidades

“Lá adiante, em plena estrada, o pasto se enramava, e uma pelúcia verde, verde e macia, se estendia no chão até perder de vista”. É a descrição que Rachel de Queiroz faz n’O Quinze depois que, enfim, chega a
chuva em dezembro. E o sertão do romance ressurge. Nos dias de 2015, é essa a mesma paisagem farta,
“vestida de esperança”, do Assentamento Mandacaru, nos arredores de Jaguaribara, ao lado do Castanhão.

Clique na imagem para abrir a galeria

O lugar hoje abriga 130 famílias, remanescentes de áreas inundadas pelo reservatório. Vieram de terras que reaparecem no fundo de um açude que estava cheio em 2009 (6,7 bilhões de m3) e agora tem 17% de água. Ainda é um mar, mas está menor, pela seca de cinco anos seguidos. No Mandacaru, não há a mesma severidade de 1915. Ali é terra de oportunidade.

O assentamento, que totaliza 390 hectares, será produtor de leite. É um dos projetos do perímetro irrigado do Castanhão. Cada família ganhou um quinhão de três hectares para criar de 16 a 24 reses. Expectativa de 450 litros/mês por produtor. O rebanho ainda não desembarcou, é esperado até o fim do ano, mas as instalações são preparadas e aproveitadas. Já há, por exemplo, capim sendo estocado.

Uma máquina pequena chegou no Mandacaru, dois meses atrás, para ensinar os futuros criadores a prepararem rolos de feno. Com a ajuda mecanizada, vão compor fardos modestos de 40 quilos de capim – há equipamentos que prensam até 350 quilos.

O capim tanzânia utilizado tem um ciclo de 28 dias, do plantio à colheita. No Mandacaru, o técnico Eliedson Santana, do Instituto Agropolos, explica que os animais comerão no sistema rotacionado, em piquetes separados que seguem o tempo de crescimento do pasto e manterão sempre a reserva alimentar disponível.

“Garrotes magros, de grandes barrigas, empurravam as vacas de cria, atropelando-se. Até que a derradeira rês, a Flor do Pasto, fechando a marcha, também transpôs a porteira e passou junto de Chico Bento que
lhe afagou com a mão a velha anca rosilha, num gesto de carinho e despedida”. Foi assim em O Quinze, quando Maroca das Aroeiras manda seu vaqueiro soltar ao léu, à sorte, ao sol, o gado faminto. Não será assim no Mandacaru.

O que você achou desse conteúdo?