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O mundo de lá
Reportagem Seriada

O mundo de lá

O mundo de lá

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A vida urbana, com a hora marcada, a pressa cotidiana, o barulho das ruas, a ansiedade de acessar o mundo que não se tem, ficou a quase 70 quilômetros da Capital. Na comunidade Boca da Picada, aonde se chega por uma estradinha de terra despercebida no quilômetro 58 da CE-085, longe seis quilômetros de São Gonçalo do Amarante (Região Metropolitana de Fortaleza), o casal de agricultores Rayssa Oliveira Duarte, 28 anos, e Vitor Esteves Vasconcelos, 29 anos, recriam um portal no tempo.

No antigo sítio-dos-fins-de-semana, que só produzia feijão, milho e macaxeira uma vez no ano, o portão de ferro liga o quintal da infância de Vitor à plantação de melancia, abobrinha e melões (espanhol e japonês), iniciada em 2017. E marca um caminho até a casa própria, desenhada entre cajueiros, e os filhos imaginados, herdeiros da permanência no semiárido de clima tropical quente, com chuvas incertas de janeiro a maio: Sítio Sonho Meu, nomearam o lugar para onde se mudaram há cinco anos, depois de Rayssa se formar em Design de Moda e Vitor deixar o trabalho com celulares. Um horizonte de três hectares cultivados (aproximadamente, três campos oficiais de futebol).

O desejo pelo sertão foi alimentado no Programa Jovem Empreendedor Rural (PJER), da Agência de Desenvolvimento Econômico Local (Adel). O PJER, desde 2009, explica a diretora de Comunicação da Adel, Evilene Abreu, 32 anos, refaz as relações com o campo, das afetivas às econômicas. Lideranças, dos 16 aos 32 anos, destaca, surgem no semiárido de 29 municípios do Ceará, da Bahia e do Rio Grande do Norte, onde a Adel atua há dez anos.

Rayssa e Vitor são dessa geração. Ela não sabia o que fazer depois da faculdade; ele deixou o emprego com carteira assinada porque não era o que queria fazer da vida. Até o intercâmbio com filhos de agricultores, no PJER, Rayssa, filha de uma estilista e de um gerente de loja, era “totalmente urbana”. As possibilidades das pessoas e da natureza sertanejas lhe encantaram e lhe guiam.

Vitor guardava o sítio dos pais na memória: foi menino de subir em árvore, guerrear com seriguela, fazer cerca, cuidar dos bichos. Gostava “daquele buraco” de taipa, iluminado por lamparinas. “E tudo aquilo era interessante. O campo, para mim, é muito atrativo”, volta.


O PJER “deu um direcionamento”, ele diz, na geração de renda pelo semiárido. Sem água ou vivência suficientes, o casal tentou criar galinha e testou plantações. Pintos morreram, uma praga atacou os mamões, o maracujá não vingou, uma chuva intensa levou a safra de jerimum “e teve uns calotes de prefeitura”, soma Rayssa, que ajudou Vitor a não desistir do sítio-sonho. “Eu só via oportunidade. Eu falei: se ficar aqui, a gente vai poder casar, construir uma família”, ela divisa. “O clima do semiárido é desafiador, tem muito sol”, ele lida.

Recomeçaram com um poço profundo, a irrigação e o cultivo de melancia. Diversificam o ganho com novas culturas, sem agrotóxicos. Abastecem a merenda escolar de São Gonçalo e vendem em feiras agroecológicas. “Foram dois anos só de perca, sofrimento. Aprendi com os erros e fui guardando os acertos... O semiárido é uma terra de oportunidades, mas falta incentivo”, retrata Vitor.

"Parece que tudo é mais tranquilo"

Para unir aprendizados, forças e futuros, no conviver com o semiárido e no mercado, Rayssa Oliveira e Vítor Esteves se envolveram na criação da Cooperativa Caroá. Fundada em novembro de 2017, a cooperativa reunia, em fevereiro passado, 28 agricultores (de 21 a 30 anos; entre eles, seis mulheres) de seis municípios da região. É um meio de vencer o atravessador.

O sertão não abranda, cria para a vida. Tem ainda “a guerra com o mato”, quando chove, “é capina atrás de capina”, luta Vitor. Não é fácil, mas é feliz. “Sinto prazer em ver minha plantação bonita”, emenda.
Rayssa segue ao lado, desde as cinco e meia da manhã, ajudando no parto dos dias que querem ter: “Ele abre o berço (na terra), eu vou botando a semente e fechando. Os que nasceram, tem que replantar, pra nascer tudo do mesmo tamanho”. No mais, é o almoço, os cinco cachorros, plantar, cuidar, colher. Faz só dois anos que a internet pega melhor, fora da rede no alpendre. O mundo de lá é outro, é de permanências. “Parece que aqui é tudo mais tranquilo, mais devagar”, escolhe Rayssa.

Sentimento à mão

"Rayssa e Vitor moram no sossego e, com a pressa de cumprir as horas, nós nos perdemos no caminho até lá. O GPS não funcionou na estradinha de terra"

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