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180 anos do Dragão do Mar, o cearense mais importante na história do Brasil
Reportagem Especial

180 anos do Dragão do Mar, o cearense mais importante na história do Brasil

Há 180 anos nascia Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar. Prático da barra virou líder dos jangadeiros fortalezenses e ficou na história como ícone do movimento que impediu o tráfico interprovincial de escravizados

180 anos do Dragão do Mar, o cearense mais importante na história do Brasil

Há 180 anos nascia Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar. Prático da barra virou líder dos jangadeiros fortalezenses e ficou na história como ícone do movimento que impediu o tráfico interprovincial de escravizados
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Canoa Quebrada, 15 de abril de 1839. Nascia Francisco José do Nascimento. Sobreviveu aos primeiros dias por milagre, contam os registros da época. Desenganado, uma espinha de peixe atravessando a garganta do recém-nascido quase o matou.

O pai, Manuel do Nascimento, era pescador e morreu cedo ao buscar riqueza em um seringal do Amazonas. O avô também era jangadeiro e, um dia, do alto mar não retornou. A mãe, Matilde Maria da Conceição, precisou se desdobrar, mas o trabalho de rendeira não lhe rendia muito. Não demorou para que entregasse o filho de oito anos para uma família com melhores condições financeiras.

O pequeno Chico da Matilde, como ficou conhecido, precisou ainda na infância laborar. Virou menino de recado no veleiro Tubarão, que transportava mercadorias para o Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte. A relação com o mar começou aí. E dele não se desprendeu mais. Aos 20, quando aprendeu a ler, recusou trabalho nas obras do porto de Fortaleza para voltar ao mar em um trajeto entre Ceará e Maranhão.

Muito da infância foi descoberto em um diário do próprio Dragão do Mar, estudado pelo jornalista e único biógrafo Edgar Morel. Em um dos trechos, Chico escreveu que a "mãe era alta, forte, muito morena". Explicou também que foi a partir dela que ficou chamado de Chico da Matilde - costume comum no Interior o de relacionar o nome do filho ao de um dos pais.

Chico parecia estar destinado à resistência. Algumas décadas depois se tornaria liderança do movimento que impediu o tráfico de escravizados do Ceará para as regiões Sul e Sudeste do País. A venda era conhecida como comércio de carne humana, na expressão mais fática. Da valentia de impedir a saída pelas águas que cercavam o porto veio a alcunha de Dragão do Mar, atribuído pelo romancista maranhense Aluísio de Azevedo.

Não à toa o aniversário do Dragão do Mar acabou sendo a data escolhida para celebrar também a fundação de Canoa Quebrada. Ironicamente, a rua que ganhou o nome do herói jangadeiro acabou ficando como conhecida como Broadway pela vida noturna tão característica e interferência do turismo.

"Do Ceará não sai mais carne humana"

A noção de escravidão foi mudando ao longo dos anos que seguiram o nascimento de Chico da Matilde. Um dos primeiros passos para a mudança de contexto veio em 1850, quando a Lei Eusébio de Queiroz mudou a legislação escravista no Brasil. A partir daquele ano estava proibido o tráfico negreiro da África para o País. Apesar do que pode ser considerada tendência para o fim da escravidão, o que se formou foi uma mudança de rotas no tráfico. Configurou-se comércio entre províncias em crise. Do Ceará, homens e mulheres eram levados para províncias cafeeiras do Sudeste.

Nesse contexto, começam a surgir jornais e associações libertadoras ao redor do Império. No Ceará, não foi diferente. O jornal Libertador, produzido pela Sociedade Cearense Libertadora teve papel fundamental na difusão das notícias sobre alforria. Muitas delas tratando com muita cerimônia e atribuindo benevolência aos então escravistas.

Jornal registra libertação total dos escravizados no Ceará
Jornal registra libertação total dos escravizados no Ceará

Chefe do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) e ex-vice-governador do Estado do Ceará, Francisco José Pinheiro destaca que é nesse contexto que surge a figura de Chico da Matilde. "O Dragão do Mar era um líder para os jangadeiros, organizava o processo de transporte. Chega um momento em que ele reúne esses homens e diz: "Do Ceará não sai mais carne humana'", destaca o professor. "Era uma liderança importante. Um mulato descendente de escravizados que sentia na pele as problemáticas".

A liderança não era meramente política. Nascimento exercia cargo de prático, tornando-se prático-mor da barra do Porto de Fortaleza anos depois. É ele o profissional que lida diretamente com as tripulações das embarcações nas zonas de praticagem, nas regiões onde é feito embarque e desembarque. Na época, os navios não atracavam na terra. A Ponte dos Ingleses avançava no mar, mas não alcançava as embarcações. Por isso o transporte de pessoas e mercadorias era realizado por jangadas.

É de Chico da Matilde o papel de fortalecer o movimento abolicionista e abrir uma brecha significativa na aliança da classe dominante brasileira pró-escravidão. O professor Pinheiro explica que essa classe dominante "traçou um mecanismo de tentar adiar ao máximo a abolição" a partir da Lei do Ventre Livre, em 1871. O texto tornava livre todos os filhos de mulheres escravizadas daquele ano em diante.

Com a Lei, as crianças poderiam ficar com o "proprietário" até completar a maioridade ou serem adotadas. Na prática, essas crianças continuavam escravizadas. Em 1885, a Lei do Sexagenários liberta escravizados com mais de 60 anos de idade. Centenas de idosos vão para a rua, muitos com alguma deficiência física.

Impedir a saída de escravizados foi o suficiente para tornar Dragão do Mar um ícone do movimento. "É um protagonista, e era uma pessoa do povo. O Dragão, junto com outras lideranças, consegue convencer os jangadeiros a não embarcar naquele dia", continua o historiador. "Naquele momento histórico, foi ele quem soube fazer o movimento porque ele era um articulador. O homem certo no lugar certo. Por isso se tornou uma figura proeminente".

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Para a historiadora Patrícia Xavier, autora do livro "Dragão do Mar: A Construção do Herói Jangadeiro" (2011), a desenvoltura de Chico da Matilde nas rodas intelectuais influenciou no estabelecimento da figura na historiografia. "O movimento abolicionista no Ceará era formado, principalmente, por uma elite intelectual, profissionais autônomos, empresários. Esse movimento organizou diversas ações em prol da abolição no Ceará", conta a historiadora. Dentre as ações, compra de alforrias, transbordo de escravos de Fortaleza para o Interior e uma espécie de serviço de proteção aos fugidos.

Xavier explica que, mesmo que Dragão tenha a liderança da greve atribuída a ele, o episódio do trancamento do porto foi planejado pelo movimento abolicionista. Ela destaca que o primeiro trancamento do porto não contou com a presença de Chico da Matilde, que somente mais tarde se juntou ao movimento.

O prático era proprietário de duas jangadas. Os relatos apontam que eram arrendadas pelos pescadores. O fato, no entanto, é pouco explorado. A pesquisadora não encontrou evidências de que o diário que teria sido escrito por Francisco do Nascimento e servido de referência para a biografia de Morel realmente existiu.

"Com a adesão ao movimento abolicionista, ele passa a frequentar os clubes, salões e diferentes espaços ocupados pela elite, se saindo muito bem em todas as circunstâncias", relata a autora. "Essa penetração no círculo intelectual, sem dúvidas, favoreceu a construção da memória de herói do prático-mor". Dragão, relatado como um homem "sempre bem vestido, com barba e cabelo impecáveis", chegou inclusive a abrigar escravos fugidos na sua casa.

Além do Dragão

Chico da Matilde não era portanto o único grande líder do movimento abolicionista. Um jangadeiro importante no processo foi José Napoleão que, embora já fosse uma liderança conhecida, recusou a responsabilidade de organizar a greve e indicou o próprio Dragão do Mar.

"Ele preferiu indicar o Chico da Matilde para organizar o movimento porque ele tinha instrução. Era um homem que se vestia razoavelmente bem, barba bem feita, sabia noções de francês e alemão. Era um sujeito muito peculiar", descreve o historiador Airton de Farias, que acaba de lançar o livro “Pavilhão Sete: presos políticos da ditadura civil-militar" (Expressão Gráfica, 2019).

Para o pró-reitor de Graduação da Unilab, Edson Holanda, já ter nascido liberto foi fator central nesse processo: "Ele desde cedo trabalhou nas embarcações, o que fez com que ele tivesse acesso básico a outras línguas, e era participante ativo das reuniões. Era um perfil mais aproximado dos abolicionistas".

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em História pela UFC, Airton explica que, para o movimento abolicionista, era interessante ter um negro na campanha já que a crítica dos escravocratas é que o movimento era formado pela elite. "A presença do Dragão desconstrói o argumento da campanha de classe média, de intelectuais e brancos. Era importante a presença do homem negro, mesmo que não ele não seja escravo ou de condição social menor", elabora Airton. "Estava entre os dois mundos: trabalhadores, negros e mestiços; e tinha um pé nas relações dos meios intelectuais e políticos que compactuou".

A comissão da Sociedade Abolicionista Cearense que foi ao Rio de Janeiro, capital do Império, era formada por José Avelino, Moura Brasil e Álvaro de Oliveira, todos recebendo medalhas e honrarias, como conta Luciana Cavalcante no livro "Dragão do Mar" (Edições Demócrito Rocha, 2002). Embora a comissão tenha sido recebida pela imperador, era Chico quem, nas ruas, recebia as homenagens.

O ano era 1884. A revista Ilustrada, o Jornal do Commercio e a Gazeta de Notícias registraram a chegada do herói. A história conta que as celebrações entravam pela madrugada, com direito a fanfarras pelas ruas do Rio. Teria sido atendendo ao clamor de populares que Dragão do Mar recebeu medalha de ouro pela Sociedade Abolicionista. Só depois, como conta Raimundo Girão, foi recebido pelo imperador, com quem teria conversado por cerca de 20 minutos sobre abolição.

Para além de entidades que reuniram nomes como João Cordeiro e Antônio Bezerra, o Ceará também teve um grupo de mulheres abolicionistas. Fundada no dia 25 de dezembro de 1882, a sociedade Cearenses Libertadoras (grupo dirigido por Maria Tomásia Figueira Lima) tinha como um dos principais elementos a esposa de Francisco José do Nascimento, personagem que pouco se sabe. "É uma mulher negra que participa desses eventos todos. Ela não só apoiou o marido, vai para as manifestações, é do movimento. Ainda mais em um época em que mulheres se envolviam pouco politicamente", pontua Airton de Farias.

A rota dos escravizados

Não é possível traçar uma rota para homens e mulheres escravizados porque Fortaleza não tinha lugares próprios para a acomodação. Comerciantes alojavam seus escravizados em sobrados, no térreo - serviam de moradia na parte superior e comércio na parte inferior do imóvel. Muitos escravos faziam percurso do Interior do Estado para Fortaleza. De acordo com Francisco José Pinheiro, havia em Fortaleza agentes compradores ou intermediários, que recebia o escravizado e pagava ao proprietário quando o negócio era garantido.

Francisco José Pinheiro, professor de História da UFC
Francisco José Pinheiro, professor de História da UFC

Não havia, no entanto, um espaço onde a negociação acontecia. "Era uma relação muito privada entre os comerciantes. Na Bahia, havia um local de chegada dos escravos, na Praia Vermelha. Eles chegavam do continente africano, ficavam alguns dias para se recuperar da viagem em um local que existe até hoje. Depois, ficavam expostos como peças para serem comprados pelos escravistas", conta o historiador. "Aqui, grandes comerciantes faziam aquisição desses escravos e depois vendiam. Havia também algumas rotas terrestres, mas não eram tão comuns. Índios que faziam serviço de correios a pé de Pernambuco e da Paraíba".

O papel na história

Dragão do Mar foi provavelmente o cearense com papel mais importante na história do Brasil. Castello Branco teve mais poder. Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, saiu de Quixeramobim para fazer história na Bahia. José de Alencar inventou uma literatura nacional, a partir do Rio de Janeiro. Porém, a relevância da greve dos jangadeiros, a importância simbólica na campanha abolicionista tornam o legado do Chico da Matilde mais duradouro e transformador para a vida do povo, ainda que incompleto.

Dragão do Mar e os 180 anos de resistência dos jangadeiros

Centrais na decisão de parar o tráfico interprovincial, os jangadeiros entraram para o imaginário popular cearense. O reflexo é evidente na iconografia, a exemplo da obra do sobralense Raimundo Cela, que ajuda a estabelecer a imagem do pescador e do jangadeiro em quadros como o popular "Rolando a jangada para o mar", de 1941.

Cela faz aparecer em vários trabalhos essa relação do homem com o mar, sempre com luminosa paleta que referencia a Terra da Luz. A expressão marca como um divisor de águas o Ceará depois da ação dos abolicionistas, deixando para trás o obscuro comércio escravocrata.

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O professor Francisco José Pinheiro, chefe do Departamento de História da UFC, afirma que o jangadeiro e o mar tornaram-se quase um só personagem no campo conceitual formado do Estado. Tão populares quanto o vaqueiro - também comumente retratado nas artes - figura importante por conta da pecuária. Ele diz que embora a valorização do jangadeiro tenha passado por grande ascensão naquele contexto político, não demorou para eles retornarem à rotina normal de trabalho.

Para o historiador Airton de Farias, a relação de Chico da Matilde com os jangadeiros fluiu quase como consequência da proximidade do herói com o contexto do litorâneo. "Ele conhecia o mar, a labuta e tinha contato com aquelas pessoas. Chico da Matilde conhecia as dificuldades do homem do mar e sabia dos dramas nas embarcações para o Sudeste", explica. Airton acredita que o contato de Dragão com os escravizados começou ainda cedo, quando passou a trabalhar nas rotas do Nordeste.

Mas comprar a briga do movimento abolicionista significava entrar em atrito com as autoridades, já que o Brasil atravessava uma monarquia escravocrata. "Houve represálias ao próprio Dragão do Mar, ele perdeu o emprego de prático da barra. Até os jornais da época falavam da demissão", conta. "E os jangadeiros transportavam mercadorias para os navios. A partir do momento que eles se recusam a fazer isso, perdem fretes e enfrentam a indisposição dos donos dos navios. Há impacto econômico".

De acordo com o historiador, a greve é apenas um dos episódios que formam a trajetória de luta e resistência das populações pobres. Dragão do Mar vai, inclusive, participar de outra manifestação com os jangadeiros, já no começo do séc. XX. Na época, o serviço militar não era obrigatório e os recrutas eram todos negros e pobres. "Houve um recrutamento no porto e os recrutados eram jangadeiros e a população da praia. Houve protesto, atrito com a polícia e pessoas morreram", conta.

A greve dos catraieiros (ou portuários) aconteceu em 1904. O movimento eclodiu no dia 3 de janeiro daquele ano, começando com participação dos catraieiros. Aqueles que não aderiram foram forçados a participar. O fuzilamento dos grevistas gerou outro movimento de revolta, resultando na demissão do comandante dos Portos, de quem teria partido a violenta ordem.

A escravidão como consenso social deságua até mesmo em ex-escravos que mantinham escravos. Para se ter uma ideia, não eram apenas homens brancos que escravizavam negros. A imagem de Santo Antônio, por exemplo, antes de ser associada ao "santo casamenteiro" era usada nas promessas para capturar escravos fugidos. "O fato dos jangadeiros terem abraçado a greve mostra que a defesa da abolição também abrange segmentos populares. Supõe-se que essas ideias chegavam à massa. Essa adesão ratifica o pensamento de que havia uma indisposição da sociedade a aceitar a abolição", explica Airton de Farias.

"Eu sou uma bandeira solitária"

Quem entende bem a trajetória de resistência dos pescadores é o presidente da Colônia Z-8 de Pescadores de Fortaleza, Posidônio Soares Filho. Nascido na praia do Iguape, em Aquiraz, ele chegou em Fortaleza aos 4 anos, quando o pai, pescador, saiu da Região Metropolitana para a Capital em busca de melhores dias.

Posidônio Soares Filho, presidente da colonia de pescadores Z-8 na Praia do Futuro
Posidônio Soares Filho, presidente da colonia de pescadores Z-8 na Praia do Futuro

"Cada um tem sua própria resistência e meu pai foi um autodidata que fez a primeira jangada de tábua no Ceará. Isso em 1944, na época da Segunda Guerra. Acompanhando, aprendi a profissão de carpinteiro", rememora. "Para mim, meu pai foi referência". Hoje aos 70 anos, Posidônio está no quinto mandato à frente da Colônia Z-8. Eleito democraticamente, gosta de enfatizar, agarrou a bandeira social. "Quando olho para o pescador, vejo mulher, filhos, netos. Ele agrega", diz.

Quem reconhece esse cenário é o pescador Davi da Mata, de 34 anos. Morador do bairro Vicente Pinzon, pesca desde os 12 e foi pai já aos 18. Hoje, sustenta seis filhos. "Tomei gosto pelo mar e não saio mais. A gente passa de dois a quatro dias em alto mar, menos quando o vento não tá legal", relata. "É um trabalho que já foi muito sofrido, e a gente tira o sustento do mar. Eu sou apaixonado pela pescaria. Tá no sangue".

Posidônio Soares diz que o grande problema da categoria é a falta de renovação. A Colônia Z-8 tem hoje cerca de 2.500 filiados. Há duas décadas, esse número passava de 9 mil. "A cada novo afiliado, são três se aposentando", diz.

"O município vê o pescador como uma figura histórica. Nós temos um passado que tem que ser preservado, mas o presente precisa ser valorizado", continua o presidente da Colônia. "Eu sou uma bandeira solitária. Onde eu vou, não tenho como fugir disso porque é um realidade. Sou um otimista, dias melhores virão".

Ele entende a amplitude da figura do Dragão do Mar. "Valoriza o pescador historicamente porque ele rompeu com a violência naturalizada. Foi um divisor de águas, e era um homem do mar", continua. "Valeu a intenção dele de querer o povo livre. O Brasil tem 500 anos, mas não é de educação e nem de cultura. É mais colônia mesmo. Precisamos saber de nós. Das nossas origens, pouco sabemos".

180 anos depois, que legado resiste?

O Dragão do Mar no coração da cidade, cantado por Calé Alencar, pode ser visto em Fortaleza de diferentes formas. De um lado, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), uma área de 14,5 mil m² em uma estrutura arquitetônica concebida pelos arquitetos cearenses Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo dedicada unicamente à Cultura. Mais à frente, o antigo porto da Capital, hoje Ponte Metálica, ponto de saída de homens e mulheres escravizados para as províncias do Centro-Sul.

Oficialmente, o legado de Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, é lembrado em homenagens distintas. Neste ano, o samba-enredo da Mangueira, "História pra Ninar Gente Grande", tratou do protagonismo popular nas lutas sociais a partir de personagens que costuram a história brasileira. "A liberdade é um dragão no mar de Aracati", canta o enredo vencedor.

Mesmo com o reconhecimento em vida e de proporção nacional e internacional, Chico da Matilde morreu no ostracismo. Demorou até que seu nome voltasse a repercutir. De acordo o historiador Airton de Farias, o herói jangadeiro morreu em momento de "profundo isolamento".

"A imagem dele passa a ser lembrada na era Vargas (nos idos dos anos 40 e 50). O getulismo é o primeiro momento em que ele vira memória. E há uma ressignificação do Dragão do Mar, associam ele a um jangadeiro muito humilde, muitos chegando a pensar que ele era escravo", explica. "O uso da memória dele é posterior, pelo menos 20 anos após o óbito".

A antropóloga gaúcha Vera Rodrigues, professora do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), percebe contradição no discurso simbólico que envolve o personagem histórico. "Houve um legado histórico de liberdade com esses personagens, mas não há um legado de cidadania, de responsabilidade social. Como um Estado pode homenagear o personagem histórico e não valorizar a população que vem da origem disso?", questiona.

"Mesmo com o pioneirismo, decretar abolição no papel não é decretar abolição na completude. Não houve política de reparação. Ainda se trabalha num imaginário pela mídia, pela via da história, parece que ocorreu uma liberdade concedida, o que é muito mais estranho. Liberdade não é concessão, é conquista", pontua a antropóloga.

Para a estudante de Humanidades da Unilab e membro do Movimento Negro Unificado (MNU), Geyse Anne da Silva, há uma necessidade de continuidade do trabalho de reafirmar o lugar do negro na sociedade. "O que a gente precisa pensar, para além do simbolismo, é que o Dragão do Mar lutou contra a exploração do corpo negro. O que ele nos deixa é essa resistência. Quando a gente luta contra o racismo na escola, no trabalho, a gente coloca esse legado em prática", opina. "Nós precisamos saber reafirmar nosso lugar na sociedade também por quem há muito tempo já lutava".

História para não se repetir

Traçar narrativas é ponto central para levantar discussões que podem ou não terem sido invisibilizadas nesse processo. No livro "Vende-se uma Família" (Editora Dummar, 2013), a escritora cearense Socorro Acioli narra a amizade entre dois garotos que cresceram juntos e sofreram na pele a crueldade da escravidão no Brasil. A ideia veio da provocação de escrever sobre o herói de Canoa Quebrada. O romance, o primeiro infantojuvenil da autora, evidencia o quão atual é a angústia da senzala.

Já no espetáculo Ceará Show, inovador ao apostar no caráter da permanência, Chico da Matilde, interpretado pelo ator Ilton Rodrigues, fala sobre como a escravidão desumanizou homens e mulheres negras e como até hoje essa tragédia reverbera. "Fazer o personagem é de uma necessidade imensa por levar a história a outras pessoas que gozam de diversos privilégios. A necessidade de conhecer a história do Dragão do Mar é lembrar a todos do que nunca deveria ter acontecido", afirma o ator. "O que Chico da Matilde fez em 1884 foi gritar por liberdade. É preciso gritar até hoje".

Bate-pronto

Zelma Madeira, coordenadora de Igualdade Racial do Governo do Estado

Zelma Madeira
Zelma Madeira

Mais de um século depois, como a senhora avalia a repercussão do processo abolicionista no Ceará considerando a atuação Dragão do Mar?

É de grande valia a atuação do Francisco José do Nascimento no sentido de mostrar para nós a luta e a resistência negra de um homem que já se importava com as situações precárias e violentas que aconteciam nos porões dos navios. Também é objetivo da luta negra romper com esse modo de operar da escravidão. A gente sabe da perversidade, da violência. Mas a gente ainda sente a necessidade da visibilidade de quem foi Dragão do Mar. Não há muito dialogado numa perspectiva crítica de aprofundamento de quem foi essa personalidade.

E o que ainda preciso ser compreendido?

A gente precisa entender o ato de resistência, da vontade de ruptura, para que a gente não tenha a naturalização. É preciso desnaturalizar esses lugares. Fica o desafio da visibilidade num estado que tem segurado uma carga ideológica pesada de que aqui não tem negros e negras. Nós precisamos dizer que aqui tem negros e negras.

Há um legado além das homenagens oficiais e do simbolismo no discurso?

A gente sabe que a escravidão não é só herança. Ela se recria, se refaz, porque nós temos que conviver com a discriminação, com o preconceito, com as desigualdades. Mas a gente precisa, ao tempo que a gente fala de vulnerabilidade, de representações para dizer que a população negra não é só vulnerabilidade. A população negra no Ceará tem potencialidade porque sempre teve. Nós sempre resistimos, desde o navio negreiro. Essa resistência tem que ser visibilizada. Nós temos que falar dessa resistência negra como forma de empoderar essa população que sabe resistir. Hoje, no Ceará, que outros Dragões do Mar existem fazendo história e tentando superar o racismo? Nós precisamos construir o Ceará da igualdade racial, que leva em consideração a diversidade étnico racial e que combata o racismo.

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