Atualizada às 18h desta quinta-feira, 16
O anúncio da nova resolução que prevê mudanças nas regras para cirurgia de transição de gênero, apresentadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) na última quinta-feira, 9, surge como um desafio para a saúde pública do Ceará. O Estado já dispõe de atendimento para a população transsexual, mas ainda apresenta déficit estrutural na oferta de serviços.
O Serviço de Referência Transdisciplinar para Transgêneros (Sertrans), sediado no Hospital Mental Professor Frota Pinto, em Messejana, recebe usuários do SUS de todo o Estado. O equipamento conta com uma equipe de 10 profissionais, sendo um assistente social, três psicólogos, um endocrinologista, quatro psiquiatras e um enfermeiro.
De acordo com a assistente social do Sertrans, Maria Delfino da Silva, o atendimento no local estava em pleno funcionamento, mas apenas com pacientes que migraram de outro ambulatório. Hoje, a porta de entrada do SUS para a população trans é regulada pelas Unidades de Atenção Primária à Saúde (Uaps), o que demandou ainda mais do Serviço.
“Não estávamos atendendo novas demandas, pois precisávamos estruturar melhor o serviço e receber o parecer da Secretaria da Saúde (Sesa) para a abertura de novas vagas. Os usuários devem e são orientados a procurar um posto de saúde e fazer a solicitação de encaminhamento e vaga para o ambulatório”, esclarece Maria Delfino.
Ainda segundo a assistente social do Sertrans, como os atendimentos ainda estão em processo de implementação, não há profissionais de ginecologia e urologia. “Acredito que essa realidade vai mudar. Estamos em processo de aprimoramento e, certamente, irá ampliar futuramente”, completa.
Acompanhamento psicossocial e jurídico
Além da parte médica, a população trans necessita de acompanhamento psicossocial e jurídico durante o processo de redesignação de gênero. A Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, é a entidade responsável por articular as políticas LGBTs no município de Fortaleza.
A coordenadora da pasta, Dediane Souza, explica que a maioria das demandas chega através do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, que trata de casos de violação de direitos ou de violência contra a população LGBT. “Essas demandas são encaminhadas para a rede de proteção e promoção à cidadania LGBT e essa rede vai integrar os equipamentos de assistência como Cras, Creas, Uaps, Defensoria Pública do Estado e [também] da União, além dos CAPs; e outros serviços que são do Governo do Estado”, explica Dediane.
Para além dessas ações, conforme a titular da pasta, a coordenadoria tem o papel de divulgar o direito do nome social nas unidades básicas de saúde, investir em campanhas de prevenção para mulheres lésbicas e bissexuais e em ações de promoção da população LGBT.
Demandas
“O primeiro atendimento é com o serviço social, que vai conversar com esse usuário para tentar perceber quais as necessidades dele. Tendo percebido que é apenas orientação para retificação de prenome e gênero, a gente tem um guia de passo a passo sobre a retificação”, explica Dediane. O setor jurídico então organiza a documentação necessária e a encaminha para a Defensoria Pública, para que seja pedido o processo de gratuidade.
Dependendo das necessidades de cada usuário, o atendimento muda. “Se a demanda desse sujeito é por hormonoterapia, a gente vai buscar dentro da rede primária de atendimento da saúde quais são as unidades básicas que tem um profissional que faça esse atendimento”, garante a titular Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social. O encaminhamento pode ser feito para o SUS ou para os planos de saúde, caso o paciente faça parte de algum. “Se o usuário quiser um processo continuado, maior nesse processo transsexualizador, aí a gente encaminha para o Sertrans”, completa Dediane Souza.
Desafios
Apesar de reconhecer os avanços nos atendimentos, o antropólogo e presidente da Associação Transmasculina do Ceará (Atransce), Kaio Lemos, 40, acredita que ainda há muito o que melhorar. Homem trans, Kaio conta que fez parte da luta que fez nascer o Sertrans ainda em 2017, após uma denúncia de descaso no Ambulatório de Transtornos da Sexualidade Humana (Atash). “O Sertrans nasceu por toda essa problemática e denúncias. E mesmo assim ainda vem nesse processo que é retrógrado”, diz Kaio, fazendo crítica ao atual modelo do equipamento.
A localização do novo equipamento é um problema antigo para os transsexuais. “O que é ser atendido no hospital mental? É estigma. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já descaracterizou a transexualidade como patologia. O governo prometeu que nós íamos ser atendimentos no Hospital Mental de Messejana só até as policlínicas serem inauguradas e depois que fossem, nós íamos migrar. E o que acontece? Passa o ano de 2017, 2018 e nenhuma dessas ações foram tomadas”, completa Kaio. Conforme ele, nos outros estados, os ambulatórios que atendem pessoas trans funcionam dentro dos hospitais gerais.
Kaio, porém, reconhece as conquistas já concretizadas no Ceará. "Eu tive que esperar dois anos, apresentando relatório psicológico, laudo de endocrinologia e outros para fazer a mastectomia e a construção do peitoral masculino. É muito doloroso você ouvir "não" de muitos médicos. Não sei de onde eu tirei forças para continuar", relembra. Kaio ingressou na Justiça há cerca de dois anos e conseguiu garantir atendimentos de endocrinologia e ginecologia pagos pelo Estado.
Sobre a transferência do Sertrans para as policlínicas, a assessoria de imprensa da Sesa comunicou que o governo do Estado não fez esse anúncio e que a gestão da época era outra. Mesmo reconhecendo a importância da localização, a pasta reforça que hoje a preocupação deles vai muito disso. Ainda de acordo com a secretaria, não há nada acertado nesse sentido [de transferência], mas a garantia é de que os serviços estão sendo discutidos para que o melhor seja ofertado a população.
Segundo a assistente social do Sertrans, Maria Delfino, a escolha da localização se deu apenas por questões estruturais. "É meramente logística e de que a equipe já está aqui. Porque todos nós éramos de um outro ambulatório de sexualidade humana. Então eu acredito que futuramente essa questão também seja resolvida". Ainda de acordo com Maria, a atual localização não impede que o Sertrans possa, em algum momento, funcionar em outro ambiente.