Tentando sobreviver à expansão caótica e desenfreada de uma cidade que se desenhou às margens de seu fluxo de água, o Riacho Pajeú passará, novamente, por outra obra em sua rede de drenagem. Dessa vez, um novo sistema será implementado, conforme projeto da Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinf). A obra está estimada em R$ 41,7 milhões e deverá ser iniciada no segundo semestre de 2020, segundo Manuela Nogueira, titular da pasta.
A região também tem sido palco de outros acontecimentos: o acúmulo intenso de lixo e água poluída ao longo dos anos, morte de inúmeros peixes em trecho do riacho no último dia 11, e constantes alagamentos em vias próximas durante período chuvoso, como na avenida Heráclito Graça.
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O Pajeú passa pela região central da cidade e por parte do bairro Aldeota, “zonas eminentemente comercial e residencial, (o riacho) teve grande parte de seu curso reconfigurado, canalizado ou soterrado durante a expansão urbana da cidade”, aponta a pesquisa “O Rio Secreto de Fortaleza: análise das consequências da ação antrópica sobre o Riacho Pajeú e suas implicações na paisagem urbana”, de Marcelo Gonçalves, cientista ambiental, realizada em 2017.
Segundo o documento, o riacho teve um papel extremamente importante para Fortaleza, desde sua colonização com a chegada de Martim Soares Moreno em 1612, até os dias atuais. O processo de urbanização da cidade, no entanto, desencadeou um irreversível processo de degradação ambiental com nocivas consequências ao seu corpo hídrico.
“Até o início do século XX a Cidade crescia, de ambos os lados, limitada pelos limites naturais do riacho. A partir de 1918, porém, com intervenções urbanísticas promovidas pela Diretoria de Obras Públicas da Capital, ocorreu a canalização do riacho para possibilitar a ocupação de suas margens”, diz a pesquisa.
Uma nova requalificação do riacho aconteceu nos primeiros anos da década de 1980, onde foram canalizados cerca de 3.360 metros. Em 1995, a prefeitura anunciou a construção do Mercado Central, colocado às margens do riacho Pajeú, em seu trecho final.
Ao O POVO, o pesquisador J. Terto de Amorim contou que impasses políticos e sociais circundam a história do Pajeú. Terto estuda a temática há mais de 10 anos e detém de um material histórico, como mapas e fotografias do riacho, que datam de 1600. O pesquisador cedeu alguns registros da década de 1920 para a matéria.
Em entrevista ao O POVO, a secretária da pasta de Infraestrutura de Fortaleza, Manuela Nogueira, contou sobre a nova rede que será construída no local. A obra deve ser iniciada no segundo semestre deste ano. Segundo Manuela, a rede atual é muito antiga e não consegue mais captar toda a água da chuva, por isso a construção de uma drenagem paralela.
“Mesmo que ela estivesse 100% operando, sem estar obstruída, sem ter nenhuma ligação clandestina nela, ela naturalmente não conseguiria captar toda água de chuva que corre nas vias naquele trecho”, afirma a secretária. Ainda conforme Manuela, antigamente, as redes de drenagens eram construídas para operar durante 20 anos - prazo este esgotado. A nova rede, garante ela, tem capacidade dimensional de 50 a 100 anos.
Para a secretária, refazer a drenagem antiga custaria mais dinheiro para os cofres públicos, daria mais trabalho e traria mais transtorno para a Cidade. Nesse ponto, o professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), discorda de Manuela.
Para ele, a obra mostra como a gestão pública vem sendo controlada pela especulação imobiliária. “O Riacho Pajeú desde muitos anos vem sendo completamente consumido pelo crescimento da cidade, tornou-se um canal mais do que riacho. Um canal de drenagem de esgotos”, aponta.
O POVO solicitou acesso ao novo projeto de drenagem, mas assessoria da Seinf informou que não tem nenhum material explicativo, “apenas coisa técnica utilizada na obra que não adianta mandar, pois são arquivos em programas específicos”.
Segundo Manuela, durante a construção da nova drenagem, a prefeitura pretende eliminar todas as obstruções existentes na rede atual e minimizar uma “possível poluição” que pode ocorrer nas redes de drenagem. “Algumas outras coisas fogem do controle do poder público, como as pessoas jogando lixo na própria rede”, alerta. A prefeitura deve garantir que as vias próximas às obras do riacho sejam totalmente contempladas com redes de saneamento sanitário.
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Em relação ao trecho que compreende a Heráclito Graça, o projeto está finalizado, garante a Seinf. O Banco Mundial está fazendo análise do financiamento e até o meio do ano a prefeitura deve licitar a obra. Na região, Manuela disse que as equipes já vêm fazendo trabalhos de limpeza de galeria, das redes de esgoto, a fim de diminuir o impacto dos alagamentos.
Os trabalhos vão abranger cerca de 3,5 quilômetros de extensão nas seguintes vias: Heráclito Graça; Nogueira Acioly, Fiuza de Pontes, J. da Penha, Joaquim Deodato, Dona Leopoldina, Franklin Távora, Dom Manuel, Almirante Barroso e Tabajaras. O deságue das águas da chuva ocorrerá no Poço da Draga, em galerias de concreto armado pré-moldadas e tubulação Pead (polietileno de alta densidade). As obras devem durar entre 18 e 24 meses. Todas as informações são da Seinf.
O edital de licitação especifica que no Centro, devido à obstrução da drenagem do riacho Pajeú, os cruzamentos da avenida Heráclito Graça com a rua Solon Pinheiro e avenida Heráclito Graça com a rua Barão de Aracati são considerados pontos mais propícios a alagamentos na Cidade.
O geógrafo Jeovah Meireles, em entrevistas ao O POVO, apresentou críticas ao projeto da prefeitura. Para ele, as gestões municipais, assim como o rio, vêm sendo “controladas pela especulação imobiliária”. “Mostra completamente a desconexão da gestão pública com os sistemas de controle da qualidade de vida da população. Canalizando os riachos, suprime as áreas de arborização, de controle de microclimas e potencializa alagamento”, afirma.
Para ele, uma solução seria a cidade reconstruir as drenagens de modo a torná-las arborizadas, com áreas de lazer, controle das enchentes etc. “A médio e longo prazo, se você analisar, mesmo com legislações que protegem os riachos, elas são secundarizadas pela especulação imobiliária. A especulação imobiliária acaba exercendo a gestão municipal”, pontua.
Para Jeovah, o riacho Pajeú, que leva no nome o significado de origens tupis de "rio curandeiro", perdeu suas características naturais. O professor assinala que a política de canalização dos rios e riachos, aplicada em outros pontos de Fortaleza, tem se mostrado ineficaz no que diz respeito ao enfrentamento de inundações. Exemplo disso seriam os alagamentos comuns na avenida Heráclito Graça, por onde o riacho Pajeú passa.
A pouca cobertura florestal e o alto acúmulo de lixo nos canais são apontados pelo professor como principais motivos para o problema. Segundo ele, o ideal seria pensar em medidas que reintegrassem os elementos pluviais à paisagem natural da Cidade. “Só bastaria preparar polícias públicas onde a centralidade seja o clima urbano. Enquanto sociedade, importante estar sempre alerta para que essas áreas sejam protegidas e de fato revitalizadas”, conclui.