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Alexandre Fleming Vale e a etnografia das práticas sociossexuais no cinema
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Alexandre Fleming Vale e a etnografia das práticas sociossexuais no cinema

Com três filmes abordando a temática trans, Alexandre Fleming conversa sobre como é tratar de gênero e sexualidade no cinema
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Alexandre Fleming Vale, antropólogo e cineasta (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Alexandre Fleming Vale, antropólogo e cineasta

Antropólogo e documentarista, Alexandre Vale investiga questões ligadas à corporeidade, gênero, sexualidade, cinema e antropologia visual. Entre os filmes que dirigiu, três estão diretamente relacionados à temática da transexualidade: o longa Voo da beleza (2012), documentário etnográfico sobre a vida de mulheres travestis e transgêneros brasileiras que vivem na Europa; e os curtas A Perfect Anything - Tombando o Gênero (2013), que narra a experiência de drag queens em uma boate no Centro de Manchester, na Inglaterra; e Itinerâncias de Gênero (2019), que apresenta ex-travestis que fizeram nova transição, readequando metaforicamente sexo biológico e identidade de gênero. Duas transições, uma laica e outra religiosa, são abordadas neste filme, que oferece um caleidoscópio de interpelações sobre a cultura sexual contemporânea.

Nesta entrevista exclusiva ao O POVO, Vale fala sobre como surgiu seu interesse sobre o tema, comenta a representação do universo trans no cinema brasileiro e explica porque decidiu abordar a destransição em seu mais recente filme.

O POVO – Três dos seus filmes abordam a temática da transexualidade. Como surgiu seu interesse pelo tema?
Alexandre Vale –
Meu interesse pela sexualidade e pelo gênero é anterior ao interesse pelas experiências trans. Eu posso dizer que entrei para o cinema pelo bas fonds, estudando as (homo)socialidades dos cinemas para filmes pornográficos em Fortaleza. Isso foi há quase 25 anos, quando o Cine Jangada ainda existia no cenário do centro de nossa cidade. Nessa época, pouca gente fazia pesquisa sobre homossexualidade e gênero na universidade. Muitas vezes, a gente era motivo de riso, porque ia virar “mestre e doutor em baitolagem”, como escutei algumas vezes, vindo de colegas que deveriam ter um outro tipo de postura. Mas, felizmente e simultaneamente, as discussões sobre direitos humanos, sexualidade e gênero ganhavam corpo no Brasil inteiro e novas portas se abriam. Mas foi efetivamente no Cinema que o interesse pelas experiências trans surgiu. E isso por um motivo muito simples: eu decidi fazer uma etnografia das práticas sociossexuais no cinema, um lugar onde tudo o que era pedido era ver e tocar, dado que se tratava de um “cinema de pegação”. Para a maior parte dos frequentadores, os “encubados”, os “homens casados”, o cinema tinha essa demanda de anonimato, de um espaço onde se poderia transgredir. Então era complicado fazer pesquisa ali. Nesse contexto, muitas travestis, que também frequentavam cotidianamente o cinema, eram as únicas que não tinham pruridos em falar sobre a sala, os filmes, os espectadores... O cinema para aquelas travestis, especialmente naquela época, significava muito: era um lugar de sociabilidade, um espaço onde elas podiam se “montar” de dia, “dar close”, passear pelas fileiras de cadeiras e muitas outras coisas. A passagem da etnografia à imagem se deu com meu primeiro filme, assinado com a Simone Lima, que foi “Cinema Caradura”. Depois daí nunca mais parei de fazer filmes.
Realmente, três de meus filmes abordam as experiências trans: Voo da Beleza, Tombando o Gênero e Itinerâncias de Gênero. O primeiro é um longa-metragem realizado em Fortaleza e Paris. Ele trata da saga migratória de travestis e transexuais para a Europa.... viver em Paris, migrar, morar, o trabalho sexual que algumas realizavam, enfim, vários aspectos de suas vidas. Eu posso dizer que ao longo desses anos todos eu acompanhei a construção, entre as trans, de uma retórica do empoderamento e de muitas ressignificações de suas experiências. Especialmente na década passada, o que a gente vê é o surgimento de lideranças trans, acadêmicas, professoras em escolas, universidades. Algo muito bacana e que demonstra, de maneira muito clara, que a prostituição não é um destino. Mas é claro que a gente não pode idealizar. Ainda são muito poucas que realizam esses feitos. A violência, especialmente nesse contexto de recrudescimento da intolerância (a palavra não é boa) contra LGBTQI+, tem aumentado cada vez mais. E, a tirar pelo fundamentalismo religioso que tem se estabelecido por aqui, todos nós, lésbicas, transexuais, gays, travestis, bissexuais, não-binários etc seremos cada vez mais tomados como “vítimas sacrificiais” desse nomos horrendo e reacionário que quer se instituir por aqui. E isso não tem nada a ver com o tal “vitimismo”. Se você ocupa um lugar de poder e espelhamento para a sociedade e você incita e autoriza, simbolicamente ou não, a violência, as armas, o fuzilamento, isso será real nas suas consequências. Não há nada de “vitimismo” nisso. Mas voltando para as imagens e as experiências trans. Tombando o Gênero foi um filme que fiz em Manchester, no Centro Granada de Antropologia. Ele é sobre espetáculos de drag queens que acontecem em uma boate local. Quem comanda o espetáculo é um antropólogo que também é drag performer. Foi muito legal fazer esse filme. O derradeiro filme é o Itinerâncias, mas você me disse que me perguntaria mais sobre ele adiante...

OP – Como cineasta e acadêmico, você considera que há uma sub-representação desta temática no cinema brasileiro?
Alexandre – Sinceramente, não saberia responder assim na lata, mas intuitivamente e como cinéfilo, acho que não. Acho que a sexualidade tem um peso e abordagens muito interessantes no cinema brasileiro. Agora, se você me pergunta sobre a área dos filmes etnográficos no Brasil, eu diria que existem poucos filmes sobre sexualidade, transexualidade e gênero. Se você pega, por exemplo, o grande concurso da Antropologia, promovido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que é o Prêmio Pierre Verger, que já existe há mais de 20 anos, você vai ver poucos filmes sobre experiências trans, sobre homossexualidade etc. Mas não dá para dizer que há uma sub-representação no cinema. Acho que essa visibilidade foi uma conquista difícil, mas que tem dado bons resultados. Basta lembrar do Festival Internacional For Rainbow, que acontece anualmente em Fortaleza e que traz muita coisa boa para nós. E localmente também, acho que é interessante destacar a inciativa do Edital LGBT da Secult, que promove produções ligadas às temáticas LGBT. O Itinerâncias de Gênero, meu último filme, foi agraciado com esse edital. Foi graças a ele que consegui realizar esse último filme sobre algumas experiências trans.

OP – Então vamos entrar no Itinerâncias.... Nele você aborda a destransição. Porque tratar dessa questão?
Alexandre – Primeiramente porque ela existe, diz respeito à plasticidade das experiências humanas, suscita questionamentos em relação a muitas de nossas naturalizações e enquanto tal, para parafrasear o Lévi-Strauss, é boa para pensar. O filme fala da fluidez dos gêneros, das reivindicações de existência, dos muitos trânsitos humanos, infinitamente humanos... Itinerâncias de gênero trata da trajetória de uma pessoa que deixou de viver como travesti, que um dia se batizou Nádia e que, depois de quase 20 anos, voltou a ser o Antônio Teixeira Neto. E já como Neto, ele escreveu uma biografia muito interessante que se chama Mel e Fel e para a qual eu tive o prazer de escrever a orelha do livro. Acho importante nesse trabalho a gente levar em conta a radicalidade de nossos conceitos sobre a sexualidade pensada como construção social. No filme, além de uma espécie de reflexividade da subjetividade do diretor-antropólogo, ou seja, a minha, há também o contraponto de um outro leitor de Neto, que destransicionou durante a realização do filme. Entretanto, nessa outra transição, ao contrário do que aconteceu com o Neto, o Alzamir destransicionou a partir de uma experiência religiosa. O Neto foi uma experiência laica. Resolveu que não seria mais Nádia e, sem muitos apelos psi ou religiosos, transicionou para Neto.

OP – Como tem sido a recepção ao Itinerâncias...?
Alexandre – O filme tem sido bem recebido. Ele tem quase 30 minutos e as pessoas dizem que não sentem o tempo passar, tamanho o interesse pelo filme. O filme aborda dois tipos de destransição: uma laica e outra religiosa. Nessa última, há certamente a referencia àquela ortopedia discursiva que passa pela demonização das sexualidades ditas “dissidentes”, como há também a pressuposição da tal da “cura gay” etc... Mas esse, que talvez tenha sido o motivo de algum desconforto, não é a ênfase que é dada ao filme. A ênfase maior é na experiência de um escritor que destransicionou e que fez isso sem nenhuma prótese discursiva da religião. Acho que se a gente quer levar adiante a radicalidade do pensamento da desconstrução ou, como eu falei, da sexualidade vista como dispositivo histórico e como algo construído para além da biologia como destino, é preciso reconhecer essas possibilidades desejantes. Sob o risco de renaturalizar a sexualidade, como fizeram algumas feministas fundamentalistas brancas. É melhor manter um horizonte aberto para as muitas possibilidades afetivas na experiência contemporânea.

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