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Amara Moira: inventando Histórias
Opinião

Amara Moira: inventando Histórias

Amara Moira, travesti, doutora em crítica literária e autora de "E se eu fosse puta?", destaca o aumento da produção literária trans: "Agora cada vez mais somos nós quem vamos dando as cartas"
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Tipo Notícia
Amara Moira é travesti, escritora, doutora em crítica literária e autora do livro
Foto: Arquivo pessoal Amara Moira é travesti, escritora, doutora em crítica literária e autora do livro "E se eu fosse puta?", que conta suas experiências na prostituição

As histórias que querem nos ouvir contar, que querem nos ver contando, com seus comos, porquês e quandos muito bem definidos, histórias sobre nós, pessoas trans, vidas sofridas, passo a passo, o corpo errado, o estalo da percepção, luta para ser quem somos, só essas histórias contam, e só contam escritas, de preferência por alguém não-nós: vida sujeita à devassa de olhares curiosos, olhos que choram e riem ao sabor das páginas, olhos que fecham o livro à hora certa de dormir ou de descer do ônibus, e vida que segue.

Como será ser trans? Querem muito nos perguntar, sempre, mas, de pertinho, nossa existência meio que inspira medo. Daí nos preferirem escritas, descritas, nos quererem só no papel, mas também daí darem nossos papeis (cinema, TV, teatro) para gente não-nós que cisma saber o que somos. E talvez até saibam, estudaram tanto!

Ruddy Pinho, uma das primeiras pessoas trans a publicar no Brasil, tendo publicado sozinha sete das já quase 100 publicações trans brasileiras que pude encontrar até hoje. Estreou poeta, com três livros só nos anos 1980, mas enveredou também pela crônica, outros dois, e ainda decidiu escrever memórias, duas, Liberdade ainda que profana e Nem tão bela, nem tão louca. Qual o espanto ao ouvir de pesquisador não-trans que o que ela produziu de valor foram só as autobiografias?

O mesmo com Anderson Herzer, que conseguiu publicar seus poemas apenas ao anexá-los a um relato pessoal sobre as violências sofridas por menores nos presídios ditos femininos, A queda para o alto. Ele nem se sabia trans (provável que desconhecesse a terminologia), o que não o impediu de dar-se o nome de Anderson e de referir-se a si próprio sempre no masculino, mesmo ao tratar dos momentos mais recuados de sua história.

Autobiografia então, e quanto menos trabalhada melhor, senão é capaz até de colocarem em questão nossa autoria. Este é o caso de Fernanda Farias de Albuquerque, mulher trans paraibana que, durante a Ditadura, viveu a prostituição em grandes cidades brasileiras, migrando para a Europa no fim dos anos 1980 atrás de melhores condições financeiras e paz: "Lá a polícia não bate na calçada, um paraíso". Acabou presa na Itália, onde descobriu-se soropositiva, e para não se despedaçar pôs-se a escrever sua história com o italiano que aprendera nas ruas. Esse texto foi reescrito num italiano mais normativo por Maurizio Jannelli, intelectual com quem Fernanda esteve presa em Roma, e publicado com o título de Princesa.

A edição italiana não traz dúvida em relação à autoria compartilhada, mas a brasileira sim, primeiro no subtítulo que acrescentou à obra ("Depoimentos de um travesti brasileiro a um líder das Brigadas Vermelhas", reduzindo a participação de Fernanda a um mero depoimento) e, depois, na página de informações bibliográficas, onde percebemos que o subtítulo originalmente imaginado ia ainda mais fundo na deslegitimação: "A história do travesti brasileiro na Europa escrita por um dos líderes da Brigada Vermelha".

Tudo isso para dizer que, se, por décadas, as obras de autoria trans foram reféns do que a sociedade nos imaginava capazes e do que nos desejava contando, agora cada vez mais somos nós quem vamos dando as cartas, nessa profusão de escritas que, só nos últimos três anos, mais que duplicou o número das nossas publicações trans. Que essa nova leva de publicações então venha e sirva não só para desafiar as imaginações e desejos que esse povo cis tem em relação a nós, como também para brincar de reinventar a maneira de nos fazermos arte e literatura!

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