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Bemfica de Oliva: Graças a quem veio antes, para quem virá depois
Reportagem Especial

Bemfica de Oliva: Graças a quem veio antes, para quem virá depois

Bemfica de Oliva: Graças a quem veio antes, para quem virá depois

Tipo Opinião Por

Não é fácil ser a primeira pessoa a fazer alguma coisa. Embora tenhamos referências a seguir, elas nunca são diretas, e temos que ir desbravando o caminho ao mesmo tempo em que desenhamos o mapa. Não houve, antes de mim, uma pessoa assumidamente trans trabalhando em uma redação jornalística no Ceará, até onde sei. Isso significa que mesmo colegas com muita boa vontade às vezes não sabem como proceder em certas situações, que tenho que corrigir meu pronome para fontes que entrevisto, que precisei criar coragem para usar os banheiros corretos no trabalho... E isso apenas para começar a listar as problemáticas.

Que se leve em conta, é importante dizer, que a empresa me deu todo o apoio que precisei desde o princípio, e que miraculosamente a minha identidade de gênero nunca foi empecilho para realizar meu trabalho. Só que isso – e a própria possibilidade de atuar na minha área de interesse – é um dos inúmeros privilégios que tenho em relação à maioria do meu grupo. De acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das mulheres trans e travestis precisam recorrer à prostituição como fonte de renda pelo menos em algum momento da vida e, segundo o projeto Além do Arco-Íris, apenas 0,02% de nós está na universidade.

Parte do privilégio vem de nascença: nascida e criada na classe média, tive oportunidade de estudos de qualidade, renda suficiente em casa e estrutura familiar estável. Mas grande parte veio, também, do fato de que me escondi a vida inteira: a primeira vez que coloquei um vestido foi aos 5 anos – o resultado, mais efetivo que qualquer violência física que eu poderia ter sofrido, foi a chacota da família – e só voltei a pensar na minha questão de gênero durante a adolescência.

Me assumi, por fim, apenas na vida adulta: levei 23 anos para descobrir que existiam pessoas que não são homens nem mulheres, e mais dois para aceitar que este era o meu caso. E só pude fazê-lo com segurança por já morar sozinha há muito tempo, por ter renda própria e viver longe da família, não precisando temer nenhum tipo de retaliação que pudesse acontecer. Esta não é a situação da maior parte da população trans: também segundo a Antra, a idade média em que estas pessoas são expulsas de casa é de 13 anos.

O que me traz à questão mais importante: eu devo ter consciência dos meus privilégios e usá-los para ajudar quem não os tem. Assim como só pude ter minha identidade respeitada graças à luta de quem veio antes de mim, eu também tenho a obrigação de garantir que as próximas gerações tenham seus direitos garantidos e ampliados. No País que mais mata travestis e transexuais no mundo inteiro, em que nossa expectativa de vida é de 35 anos, estar viva é um privilégio. Numa população que majoritariamente precisa se prostituir para sobreviver, trabalhar com o que amo é um privilégio. No contexto de invisibilização e negação de direitos que vivemos cotidianamente, poder me colocar como comunicadora, levando ao mundo a mensagem de que nós existimos e merecemos existir, é um privilégio sem tamanho.

E não é, certamente, um caminho sem percalços no próprio jornalismo. A quantidade de matérias que tratam pessoas trans com pronomes errados, ou usando termos como “homem vestido de mulher”, ainda é desrespeitosamente grande. A visibilidade que se dá a nós em notícias é quase sempre em duas vertentes: no meio artístico, onde nos tratar como pessoas “exóticas” é socialmente aceitável, ou nas páginas policiais, como vítimas ou perpetradoras de crimes, sempre acompanhadas da lista de antecedentes. E mesmo quando há a intenção de dar alguma visibilidade para além disso, precisamos encarar expressões como “se identifica como mulher”, “nasceu homem e fez a transição”, “mudança de sexo”, e questões invasivas como a exposição do nome de registro ou perguntas sobre hormonização, cirurgias, entre outras.

Eu não estou aqui para “dar voz” a ninguém. Estas pessoas já têm a própria voz, elas só precisam que se garanta o direito de serem ouvidas. É preciso reconhecer que a minha voz, inclusive, só é ouvida graças a quem se sacrificou por isso nos anos passados. E é preciso continuar trabalhando para que cada vez menos sacrifícios precisem ser feitos nos anos futuros. E, como nunca antes se pôde falar, eu tenho o privilégio de dizer, desta vez: nada sobre nós sem nós!

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