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O que preocupa sobre o novo coronavírus – e por que não devemos esquecer da "velha" dengue
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O que preocupa sobre o novo coronavírus – e por que não devemos esquecer da "velha" dengue

Gerente da Vigilância Epidemiológica de Fortaleza, Antônio Silva Lima Neto reconhece que o coronavírus deverá ter confirmações no País diante da disseminação de casos pelo mundo. Mesmo admitindo preocupação com o risco importado da China, ele alerta que o Ceará hoje está suscetível ao sorotipo 2 da dengue
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Antonio Silva Lima Neto é médico, com pós-doutorado pela Universidade de Harvard, em Boston, Estados Unidos, professor do curso de Medicina da Unifor e gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde de Fortaleza desde 2009 (Foto: TATIANA FORTES - 07/02/2020)
Foto: TATIANA FORTES - 07/02/2020 Antonio Silva Lima Neto é médico, com pós-doutorado pela Universidade de Harvard, em Boston, Estados Unidos, professor do curso de Medicina da Unifor e gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde de Fortaleza desde 2009

Tudo ainda é muito novo, é inimigo que ainda não se deixa mostrar totalmente. Por isso mesmo o epidemiologista Antônio Silva Lima Neto, 50, é cauteloso nas palavras sobre o coronavírus. Ele confirma o grande risco, as vulnerabilidades pela transmissão pessoa a pessoa, o impacto na rede de saúde, os receios com as festas carnavalescas. Foi somente no dia 31 de dezembro de 2019 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recebeu o alerta vindo da China. O governo chinês apontou sobre a existência de uma pneumonia grave de origem desconhecida. A preocupação se espalhou com a confirmação de casos (mais de 32 mil até esta data) e muitas mortes (mais de 630 até agora). A região de Wuhan é o epicentro do problema, mas os casos da epidemia pularam a fronteira e seguem se disseminando. Uma das mortes foi nas Filipinas, há casos em 25 países. No Brasil, onde foram definidas regras de contenção pelo Ministério da Saúde, até este texto ser redigido ainda são suspeitas que continuam sendo descartadas - uma delas inclusive no Ceará.

Antônio Lima, é professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), com pós-doutorado em arboviroses pela Universidade de Harvard, e gerente da Vigilância Epidemiológica de Fortaleza. Ele até admite, sem alarde, que “é muito provável” que os casos se confirmem também no Brasil. Porém, sem esquecer a novidade do coronavírus, ele pondera que há outra preocupação mais conhecida dos cearenses a ser considerada para este ano: a dengue. Em 2019, segundo Lima, foi registrada a maior epidemia da doença no Brasil, instalada principalmente através do sorotipo 2 (um dos quatro possíveis), que já não circula há 12 anos no Ceará. A projeção se agrava porque o Nordeste ficou de fora das estatísticas mais graves do ano passado. Então o vírus da dengue tenderia a migrar para os nordestinos brevemente. “2020 é um ano que a gente considera com risco de moderado a alto para termos um aumento de casos de dengue”, antecipa. O alerta local, pelo que ele descreve, se divide entre a novidade de um vírus importado e a indicação de uma possível epidemia conhecida e igualmente perigosa.

O POVO - Diante da grande incidência de casos sendo confirmados pelo mundo, o Brasil inevitavelmente terá confirmações do coronavírus?
Antônio Silva Lima Neto - É muito provável. Normalmente a gente trabalha com graus de probabilidade. Muito provável a confirmação de casos importados. Não colocaria como provável se estabelecer uma autoctonia, ou seja, a transmissão de casos dentro do Brasil (casos não importados). Transmissão autóctone ainda há dúvidas, mas casos importados devem, sim, ser confirmados.

OP - Essa importação de casos poderá ser tanto da China como dos outros 23 países onde já existem confirmações da doença?
Antônio - Se de fato um caso originar outro em algum desses países, como já há informações sobre isso em alguns lugares sem ligação com a China, então poderia, sim. Por exemplo, se houve um caso na Tailândia inicialmente importado e outra pessoa contraiu lá, passando para mais outra, uma pessoa vinda da Tailândia poderia chegar aqui como caso importado.

OP - Com os casos de coronavírus confirmados em pelo menos nove países da Europa e de transmissões internas da doença dentro dos Estados Unidos, além de mais regiões do globo com casos, a recomendação de não viajar para outros países poderá ser ampliada?
Antônio - Não, acho muito difícil que cheguemos a isso. Em nenhum outro tipo de transmissão de vírus respiratório a gente teve bloqueio de viagens para diferentes pontos. Normalmente, o epicentro da epidemia, como foi o caso da China, você tem a recomendação de não viajar. Eventualmente há cancelamento de voos por algumas empresas, como fizeram a British Airways e a American Airlines. São decisões comerciais, mas a obrigatoriedade de não viajar para outros lugares que não o epicentro, a cidade de Wuhan, não acredito que haverá recomendação. A não ser que se estabeleça um surto bem definido em alguns desses países.

OP - Qual o perigo hoje para as festas carnavalescas para a disseminação do vírus aqui no Brasil?
Antônio - Os vírus respiratórios têm normalmente os surtos no hemisfério norte combinados com o inverno, como está acontecendo na China agora. Eles normalmente preferem a transmissão em temperaturas baixas. Não é o caso de Fortaleza e do Nordeste. No nosso caso, a transmissão é mais associada com aglomeração e períodos de chuva. A pergunta sobre o Carnaval é por conta da aglomeração. Evidentemente, se você tem um fluxo maior, recebendo estrangeiros de vários lugares e eventualmente estejam com uma doença de transmissão respiratória, ela poderia se potencializar em grandes aglomerações. Não só no Carnaval. Mas no Carnaval principalmente porque teria esse afluxo de estrangeiros. Eventualmente poderia potencializar, mas como não temos ainda nenhum caso confirmado, acho imprudente dizer que o Carnaval em si vai potencializar a transmissão de coronavírus. Não me parece que seja uma sentença adequada. Não temos confirmação nem surto estabelecido. Se tivéssemos um surto de influenza, como foi do H1N1… em 2009, se não me engano, houve uma recomendação da Secretaria Municipal da Saúde que se você estivesse gripado, com sintomas de gripe, não fosse para o Carnaval. Mas isso vale pra qualquer doença respiratória, de não frequentar aglomerações carnavalescas, não só para o coronavírus.

OP - Há uma faixa etária mais suscetível ao risco de contaminação ou de morte pelo coronavírus?
Antônio - De contaminação, não necessariamente, mas o maior risco de gravidade da doença está com pessoas mais velhas e com comorbidade, que são doenças pré-existentes. Por exemplo, se tem hipertensão, diabetes, doença respiratória, doença imunossupressora. Isso acontece com outras doenças também, mas todas essas pessoas têm maior risco de gravidade e eventualmente de morte. As informações ainda não estão muito bem descritas, mas uma parte significativa das pessoas que morreram eram idosas com doenças pré-existentes.

OP - O que ainda não se sabe sobre esse novo coronavírus que deixa até os especialistas ainda inseguros a falar sobre a doença?
Antônio - Por exemplo, a gente não sabe perfeitamente sobre a letalidade. A gente tem esses 2%, mas tem um informe de casos na China e não sabe exatamente qual o grau de subnotificação. Isso deixa a gente um pouco ainda inseguro para falar tanto do grau de transmissibilidade quanto da letalidade e da proporção de casos graves que esse vírus ocasiona. Por enquanto, parece que o vírus é muito transmissível, muito contagioso, mas que não teria uma letalidade tão alta quanto visto para outros vírus respiratórios em outros momentos. Como para Sars (Síndrome respiratória aguda grave), H1N1. O jornal New York Times inclusive publicou um infográfico em que ele sumariza que até agora a transmissibilidade é alta, mas a letalidade do vírus não parece ser tão alta quanto outros.

OP - Uma pessoa que é contaminada pode voltar a ter o novo coronavírus ou não?
Antônio - Em princípio, esses vírus mutantes têm um tipo apenas. Tanto é que você faz a vacina antiviral. A vacina contra gripe que se faz todo ano, ali tem vários tipos de vírus. Quando se faz a vacina, a expectativa é que aquele indivíduo desenvolva uma imunidade transitória. Ele produz anticorpos contra aquele vírus daquela cepa específica. E para aquele ano supostamente ele não teria (novamente). Às vezes tem que revacinar porque essa imunidade não necessariamente seria duradoura. Para aquela cepa específica, nesse ano, se o indivíduo teve coronavírus é improvável que ele tenha uma infecção subsequente pela mesma cepa, já que ele produziu anticorpos.

OP - O infectologista David Uip considera ineficaz a medida de quarentena a ser adotada para brasileiros que serão trazidos da China. Ele justifica que há pouca informação sobre o período de incubação da doença. Como avalia as medidas adotadas pelo governo brasileiro e o que acha da análise do doutor Uip?
Antônio - Eu acho que estimar período de incubação é o que qualquer serviço de saúde pública, qualquer vigilância epidemiológica, qualquer serviço de vigilância em saúde tem que tentar estimar. Por exemplo, China tomou medidas extremas de fechar uma cidade. Foi a primeira vez que se viu isso, você circunscrever 40 milhões de pessoas.

OP - Parece um filme.
Antônio - É um filme, uma distopia. Não conheço os meandros da operação de quarentena daqui. Mas a estimativa que foi feita de 18 dias (período de isolamento) me parece razoável. Porque é uma quarentena estabelecida com alguns dias a mais do que seria o limite superior padrão. Digamos que a média fosse de 15 dias, mas que variasse entre 5 e 18 dias. Usou o limite máximo. Parece razoável. E a quarentena, nesse caso, funcionaria porque são pessoas - não são pacientes - que estão chegando do epicentro de uma epidemia e que serão observadas por alguns dias. Em relação a esses pacientes, estimar um período de incubação me parece ok. Não vejo problema nisso. Sobre a questão de ir e vir, direitos fundamentais, é outro ponto. Não vou entrar porque não conheço.

OP - As unidades de saúde, tanto as da rede pública como particulares, estão em condições de suportar um risco de epidemia do coronavírus?
Antônio - Eu acho que a gente vem aprendendo desde a Sars, H1N1, a lidar com a questão das doenças virais respiratórias. O suprimento de máscaras nas unidades me parece estar ok. O sistema parece estar sensível para capturar rapidamente, obedecendo a definição de caso. Isso é importante, porque não se pode só por ter ouvido falar em China, porque o indivíduo viajou para a China um ano atrás. Tem que seguir criteriosamente a definição de caso. Um caso suspeito será aquele que tem a sintomatologia compatível, que tenha retornado da China nos últimos 15 dias. Definido o caso, existem as medidas de isolamento. Acho que o comitê de operações do Ministério da Saúde tem experiência. É um pessoal que veio da gestão anterior. O pessoal da Secretaria de Vigilância em Saúde, responsável pelo comitê de operações de emergência de contenção do coronavírus é comandado por um dos profissionais mais importantes do comitê de combate à zika (Wanderson Oliveira). A parte de informação, de direcionamento dos atendidos, de produção de conhecimento, está sendo bem razoável.

OP - Uma possível antecipação de campanha de vacinação contra a gripe no Brasil ajudará a prevenir e combater a disseminação de casos?
Antônio - Acho que pode, principalmente para o Nordeste. Não que vá proteger contra o coronavírus. Não me parece que ainda haja uma vacina que proteja contra o corona, porque é uma cepa nova. E cepa nova tem que correr. Na verdade, não uma cepa, mas uma mutação do coronavírus que já existia. Então não tem vacina. Mas a vacinação contra a gripe ajuda. Ela ajuda por várias razões. Você vai diminuir o número de infecções respiratórias, diminui a possibilidade do diagnóstico diferencial, facilita a identificação de casos novos com padrões diferentes, além de as pessoas estarem protegidas. Na verdade, a gripe parece ser uma doença mais letal do que o coronavírus.

OP - Qual a principal fragilidade que você vê no Brasil para o controle dessa doença?
Antônio - A gente precisa ter uma robustez do Sistema Único de Saúde (SUS). Precisa manter os orçamentos, tem que ter um sistema público favorecido, prestigiado. Tem que ter o número de leitos adequado, ter um orçamento compatível com as necessidades da população que é exclusivamente usuária do SUS. Em Fortaleza, aproximadamente 70% só usam o SUS. No estado do Ceará se aproxima dos 80%. É um dado importante. O plano de saúde tem 30%. Então a maioria vai depender do SUS. E no caso de vacina é 100%. É muito provável que o desenvolvimento da vacina seja seguido de uma compra pelo ministério, também para o SUS. As questões de diminuição recente e paulatina, com medidas de austeridade que vem desde o governo Michel Temer, isso impacta em indicadores de saúde. Tem artigos publicados já mostrando isso. Acho que um momento como esse é importante para repensar o quão importante é você favorecer e prestigiar o SUS.

OP - Quando esse cenário mais agravado da doença, com mais de 500 mortes registradas na China e os casos se espalhando em mais países, deve desacelerar?
Antônio - Desacelera normalmente, sazonal, ou por vacina ou quando começa a esquentar. Normalmente você tem uma diminuição de casos, além das medidas de contenção do surto. São três aspectos. O aspecto natural, da sazonalidade do vírus, que é mais associado ao inverno por causa da China. Tem o aspecto da resposta, das medidas que a China tomou. Todo mundo usando máscara, se protegendo, quarentena. E o terceiro aspecto é de se desenvolver a vacina rapidamente. Mas a tendência é de quando comece a esquentar, entre maio e junho lá na China, tende a diminuir.

OP - Você se preocupa hoje mais com o coronavírus ou com a dengue?
Antônio - É difícil. A gente tem uma preocupação evidentemente com o vírus novo, a introdução do coronavírus, que tem a transmissão pessoa a pessoa, que pode ser uma transmissão explosiva e rápida. A gente tem a preocupação porque não conhece exatamente o nível de letalidade e transmissibilidade da doença, mas também há muita preocupação este ano com uma eventual epidemia de dengue causado principalmente pelo sorotipo 2. É um sorotipo que não circula aqui já há 12 anos. Nós, da Secretaria Municipal, e a Secretaria do Estado, temos já iniciada a capacitação das arboviroses, porque é uma preocupação do Estado e do município hoje. Não sei se você sabe, a maior epidemia de dengue da história do Brasil foi em 2019, mas não acometeu o Nordeste. A epidemia ficou circunscrita às regiões Centro-Oeste e Sudeste. Depois que acontece uma epidemia como essa, causada pelo sorotipo 2, que já não circula há 12 anos, normalmente se tem um deslocamento para o Nordeste. Ou simultâneo ou com o diferencial de um ou dois anos. 2020 é um ano que a gente considera com risco de moderado a alto para termos um aumento de casos de dengue. É uma preocupação central hoje.

PERFIL DO ENTREVISTADO

Antonio Silva Lima Neto formou-se em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC). No Rio de Janeiro, na Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, fez a especialização em Medicina Preventiva e Social, onde optou pela epidemiologia. Fez mestrado em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela London School of Hygieneand Tropical Medicine, da Universidade de Londres. É doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Em 2019, concluiu o pós-doutorado na Universidade de Harvard, em Cambridge. Estudou as arboviroses, com ênfase na chikungunya. É professor do curso de Medicina da Unifor. É gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde de Fortaleza desde 2009. Tem 50 anos, é casado com uma jornalista e pai de dois filhos.

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