Quando dia clareou em Canudos, em 5 de outubro de 1897, o arraial fundado por Antônio Conselheiro, para onde emergiram – às levas – sertanejos de vários lugares do Nordeste, era apenas destroços. Ao cair da tarde restavam apenas quatro combatentes: um homem velho, dois homens adultos e uma criança. Em frente deles, cerca de 5 mil soldados do Exército da República recém-criada. O quarteto foi morto. Canudos tombou.
Apesar da tragédia, o jornalista e militar Euclides da Cunha, ao enviar seus relatos da Campanha contra Canudos e seu líder Antônio Conselheiro ao jornal Estado de S. Paulo, atestou: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores”.
Conselheiro foi encontrado morto em 22 de setembro, no auge da guerra quando praticamente todo o povoado havia sido destruído e a maioria da população do arraial estava presa ou morta. Entre fevereiro e outubro de 1897, quatro campanhas militares marcharam sobre Canudos.
Do lado do Exército, a cada investida, a quantidade de homens e armas ia crescendo. De 100 para mais de 5 mil soldados armados. Dois canhões Krupp e metralhadoras Nordenfeldt, chamadas de “Matadeiras” passaram a fazer parte do arsenal para destruir Canudos, a partir da terceira campanha militar.
A artilharia foi aumentando de tamanho e força à medida que Canudos fincava pé em defender-se até o fim, mesmo quando já estava sendo consumido pelas balas, canhões, fogo: casas, capelas, santos, mantimentos. Pessoas.
Os quatros últimos resistentes deixaram para trás uma história de incompreensão, violência, destruição e morte. Mas também legou memória de força e resiliência. No caldeirão cultural, social e político do Brasil quase na virada do século XIX para o XX, Antônio Conselheiro era apenas um “fanático bronco”, que usava prédicas religiosas como estratégia para atrair jagunços em torno de si.
A acusação de reunir forças para restaurar a monarquia no País foi o mote para que Estado, elite econômica, Igreja Católica e imprensa da época saíssem em seu encalço. A visão de um “fanático perigoso”, vestido numa túnica de algodão azul e de cajado na mão se transformou na antítese de um Brasil que buscava, a ferro e fogo, uma modernidade política, econômica e social.
Durante quase 100 anos, de um lado, o discurso de ajuntador de jagunços colou em Antônio Conselheiro, o cearense nascido Antônio Vicente Mendes Maciel, em Quixeramobim, em 1830. Do outro, a vida pessoal providenciou o arremate: após ser traído pela esposa, saiu errante pelo mundo.
Por muito tempo, Conselheiro foi visto como uma espécie de Dom Quixote que havia trocado os moinhos de vento pela cruz e a enxada. Coube a inúmeros pesquisadores acadêmicos, dramaturgos, cineastas e escritores de ficção reescreverem a história de Antônio Conselheiro, de Canudos e do povo que o seguia.
Porém, uma página se destaca nessa nova história de Conselheiro. Em meados dos anos de 1990, uma dupla de rapazes – Danilo Patrício e Osvaldo Martins – sai de Quixeramobim para estudar em Fortaleza. Desde a infância, Conselheiro, silencioso, acompanhava os meninos pelos vestígios da sua presença pelas ruas da cidade: a casa onde Antônio Vicente nasceu e morou até jovem, as histórias cujo fio lhes escapava, o personagem com contornos incertos.
“Após termos contato com o Conselheiro-Mundo, passamos a perceber a importância dele para além dos muros da cidade, que tem toda uma simbologia por ser o lugar de nascimento do Conselheiro, e (importante) reler isso”, relembra Danilo Patrício, doutor em História (UFMG).
“Desde muito cedo na minha história pessoal, na minha vida..., mas também é a história da minha geração, a gente se deparava com a casa do Antônio Conselheiro lá. Havia também expressões e ditos e silêncios que apontavam pra isso. Aqui nasceu um homem importante. E isso, no correr da vida e do tempo vai se transformando em perguntas básicas. Quem é esse homem dito importante ou por que ele é tão falado, às vezes bem falado, às vezes mal falado? E isso vai formando um caldeirão de enigmas”, reflete.
De longe, Osvaldo Costa Martins e Danilo Patrício passam a enxergar melhor o conterrâneo. O que antes era apenas um espectro ganha forma. Criam o Movimento Antônio Conselheiro no ano do centenário de sua morte, 1997, em Quixeramobim. Em Fortaleza, a iniciativa incorporava-se aos interesses do ambiente universitário, da pesquisa, do campo artístico.
Em Quixeramobim, o movimento, embora embrionário, se estendia pela cidade em torno do personagem, a um só tempo, desconhecido e ilustre. O historiador Danilo Patrício revê as rodas de conversas sobre o Conselheiro, a exibição do filme “Paixão e Guerra no sertão de Canudos” na periferia da cidade, como estratégia de encontro entre Conselheiro e a população: “Naquele tempo éramos todos muito jovens, fazíamos ações de conhecimento mútuo, de formação, incluindo outras pessoas da cidade como Luciano Monteiro, Antônio José Simão”.
O psicanalista Osvaldo Martins rememora como o movimento passou a ter como base as pesquisas dos membros do Movimento Antônio Conselheiro, mesmo depois da diáspora acadêmica que modificou a organização de 1997.
“O movimento que a gente queria fazer foi sendo alicerçado com bases mais sólidas a partir das nossas pesquisas”, afirma Osvaldo, acrescentando: “Por meio de várias linguagens vamos tentando responder a isso e eu encaminhei em parte pra psicanálise que é a minha formação e outros colegas (encaminharam de outra forma); o Danilo foi pra história; outros, para a literatura. E a gente vai tendo a cada época e a cada estudo a dimensão da enormidade que é a figura do Antônio Conselheiro.”
O Movimento Antônio Conselheiro cedeu lugar para a ONG Instituto do Patrimônio Histórico e Natural de Quixeramobim (IPHNAQ) que mantém viva e em constante reinvenção a história de Conselheiro. Danilo Patrício e Osvaldo Martins, da mesma forma, seguem a investigação sobre o personagem que alterou o rumo de suas vidas 25 anos atrás.
Embora tenham seguido áreas acadêmicas e de atuação profissional distintas, Conselheiro paira sobre o dois. Atualmente, assinam a curadoria da exposição “Tramas de Belo Monte”, em cartaz na Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, reinaugurada em junho deste ano, como equipamento da Secretaria da Cultura do Ceará.
Quem entra na casa com fachada na cor amarelo-mostarda por uma das suas cinco portas pintadas de marrom embarca em múltiplas histórias. A primeira delas é a história da própria casa; a segunda, a de Antônio garoto e jovem que viveu ali quase um terço de sua vida; a terceira, a da exposição que hibernou por dois anos enquanto a peste da Covid-19 cumpria seu ritual de ondas e mortes, descaso por parte do Governo Federal e, por fim, vacinas.
Em 1830, quando Antônio Vicente nasceu, a casa pertencia a seu pai, o comerciante Vicente Mendes Maciel. Antônio viveu por um bom tempo na casa, estudou latim, português e francês com o professor particular Manoel Antônio Ferreira Nobre. Quando o pai morreu, em 1855, Antônio assumiu os negócios da família, mas precisou vender a casa para cobrir dívidas deixadas pelo pai.
Anos mais tarde, a família do arquiteto e compositor Fausto Nilo foi a proprietária da casa, até que, em 2006, o imóvel foi tombado pelo Patrimônio Histórico Estadual e adquirido pelo Governo do Estado. Em 2019, a casa passou por um processo de reforma readquirindo aspectos originais, como o piso de tijolo nos primeiros cômodos da casa e a fachada do imóvel, que, também foi realçada com detalhes da época.
Para a atual ocupação, os curadores se debruçaram sobre quais releituras de Antônio Conselheiro caberiam no imóvel, 125 anos depois da sua morte e da queda de uma Canudos que segue inteira na memória.
“Nós não queríamos olhar para o passado pelo passado e, sim, revelar um Conselheiro atual, que está mais presente do que nunca na atualidade política e social brasileira”, afirma Danilo Patrício enquanto passeia pelos cômodos conversando sobre as instalações das artistas Luci Sacoleira, Simone Barreto, Renata Santiago e do cineasta Tibico Brasil, que compõem a “Tramas de Belo Monte”.
Osvaldo Martins afirma que a “exposição quer mostrar o legado de Conselheiro”, aquele que, por muito tempo, a história oficial tentou esconder. “A loucura e a bandidagem era o que eles queriam transmitir, mas a partir dessas ruínas – de Canudos – é que foi possível reconstruir o legado dele, de possibilidades de um sertão mais justo, menos subjugado. Era isso que tanto tentaram esconder e que a exposição quer mostrar”.
O que o visitante vê na Casa de Antônio Conselheiro são obras que exigem um olhar aguçado para enxergar uma Canudos e um Conselheiro para além da memória da tragédia sejam as pessoais de Antônio, seja a coletiva de Belo Monte.
A arquiteta e artista Luci Sacoleira conta que quando convidada pela curadoria para participar da exposição, chegou à conclusão que sua abordagem não seria pela figura, em si, do Conselheiro, mas pela multidão que o acompanhou. O grupo de pessoas amontoadas e perplexas que surge na câmera do fotógrafo Flávio de Arruda, destacado pelas forças oficiais do Governo da época para registrar o massacre de Canudos, foi a imagem-semente da obra “Mutirão” que ocupa uma das salas da casa-exposição.
Ali surgem centenas de rostos coloridos compondo um grande painel que cobre quase metade da imensa parede. No conjunto de cerca de 300 retratos compostos por Luci, o expectador mergulha numa imensidão de cor e olhos que fixam o visitante como se quisessem contar suas histórias particulares e as histórias coletivas que viveram. “Fiz os desenhos durante a pandemia e foi esse trabalho que me equilibrou emocionalmente, pois os mortos de canudos se juntaram aos mortos da Covid-19. Foi um trabalho meditativo”, relembra Luci.
Ao longo de dois anos, os rostos ficcionais vão surgindo e sendo montados num suporte de papelão os quais foram sustentados, mais tarde, por arame na parede da Casa de Antônio. “Quis usar papelão e arame para reforçar a rusticidade e a simplicidade de Conselheiro”, afirma Luci, ao falar sobre a escolha dos materiais usados para a instalação que, de acordo com ela, estão ligados diretamente à vivência em Canudos. Curiosamente, a maioria dos rostos não carrega a tristeza e o espanto captados pelo fotógrafo Flávio de Arruda.
Aos olhos de Luci, homens, mulheres, jovens, adultos, velhos de todas as cores traduzem a “beleza” da experiência de Canudos. “O desfecho de Canudos foi triste, mas a história de Canudos, não. Foi uma experiência bonita, cheia de fortaleza”, diz a artista que já havia lidado com o Conselheiro, ilustrando o livro “Antonino Peregrino”, de Osvaldo Martins, indicado ao prêmio Jabuti de 2019.
Luci conta que a nova experiência artística para conceber “Mutirão”, no entanto, foi uma porta que a conduziu às memórias da infância passada, em parte, na fazenda da família, no sertão cearense. O novo encontro com Antônio Conselheiro trouxe de volta “sentimentos guardados”, do pai, por exemplo, com sua religiosidade, sua luta com a terra e a água.
A água, por sinal, é o que move a artista-educadora Simone Barreto, na construção da sua obra para a Casa de Antônio Conselheiro, que no início da sua peregrinação foi chamado de Antônio dos Mares, de acordo com o historiador José Calasans, um dos maiores pesquisadores de Canudos e do seu líder.
“O Rio”, instalação de Simone Barreto, faz seu curso com textos da obra "Os Sertões", bordados sobre uma organza branca que flutua na entrada da casa, detalhes em aquarela da vegetação de Canudos, registrada por Euclides da Cunha, complementam a experiência visual que opõem suavidade e força. Os textos que começam no papel e seguem pelo tecido numa nova trama narrativa.
De acordo com Simone Barreto, a vida de Conselheiro sempre foi permeada por um curso d´água. Atrás da Casa de Antônio, no Ceará, corre manso o rio Quixeramobim. Em Canudos, na Bahia, o rio Vaza Barris testemunhou a edificação e a queda de Belo Monte. A artista explora toda a simbologia da água na escolha da materialidade do tecido bordado. “É a água que transborda, que escorre, ultrapassa e vaza”.
As cores de tons vermelhos e marrons do texto sobre a alvura da organza também podem ser a metáfora do rio de sangue. O contraste entre o forte e o delicado se irmana na leveza e força do tecido que figura os rios de Conselheiro. Leitura similar pode ser feita na vegetação de Canudos, que subsistiu a guerra.
A resistência vivida pelas mulheres que acorreram ao arraial de Belo Monte permeia toda a obra. “Busquei muitos relatos de filhas e avós das mulheres de Canudos. Ouvir essas mulheres é construir histórias que estão fora dos relatos oficiais. E o que eu busco são essas outras histórias”, reflete Simone Barreto, que tem construído sua trajetória artística a partir do bordado como estética contemporânea, utilizado como suporte para as narrativas que extrapolam a história oficial.
O próprio ato de bordar “é resistência” para Simone: “O bordado é o lugar do sutil, do delicado, mas a incisão no tecido é um gesto de força”, traduz a artista. “Para mim, o feminino em Antônio Conselheiro é que o resiste nesta força. Por isso, pensar no Conselheiro hoje é pensar suas ideias e suas ações no momento presente, é pensar no coletivo e como isso se perpetua”, arremata Simone Barreto. “O tempo é cíclico, está em constante movimento”, conclui.
É pelo movimento que a câmera de Tibico Brasil dirige os olhos de quem assiste ao vídeo “A Casa do Conselheiro” pelo rio, água, ruas, estradas, ponte e vegetação que mapeam o entorno da casa onde nasceu Antônio Conselheiro, em Quixeramobim. Até que uma das portas se abre e convida sol e espectadores para acompanhar as percepções que a casa evoca.
A partir daí curadores, historiadores, artistas, gestores, ex-proprietário trilham o percurso afetivo que, de alguma forma, os ligam a Conselheiro e à casa transfigurada num elo vivo entre o passado e o presente, muito mais presente do que passado.
“É uma casa do passado e do futuro”, observa o cineasta, que começa a conversa narrando como se surpreendeu com a história para ele tão desconhecida de Antônio conselheiro. “Sou um típico brasileiro que não sabia nada de Antônio Conselheiro, mesmo gostando muito de História”, conta o cineasta, que fez um “mergulho no universo de Antônio”, e descobriu um “brasileiro fascinante”.
A obra foi maturada entre a concepção das ideias iniciais, dois anos de pandemia e inúmeros dias vividos durante a restauração da casa. O resultado é uma obra audiovisual que pode ser vista em camadas: do lado de fora e do lado de dentro; a casa nua, a casa vestida; a casa vazia, a casa ocupada. É possível ver membros, pele, rosto, vozes e pensamentos que vagam pela habitação. “A casa do Conselheiro é um lugar especial, que cumpre o papel de formação política”, conclui o cineasta.
A ideia metafórica da casa de Antônio Conselheiro como corpo vivo é bem presente para os curadores Danilo Patrício e Osvaldo Martins. Para além das instalações que firmam a concepção da exposição Tramas de Belo Monte, como um marco de reabertura da Casa de Conselheiro, os curadores criaram intervenções na tentativa de fazê-la falar e ser ouvida. “Por isso, a casa ganhou pele, boca e ouvidos”, reafirma o historiador Danilo Patrício.
Trechos de obras sobre Antônio Conselheiro e a guerra contra Canudos podem ser ouvidos pelos visitantes, trechos dos manuscritos de Conselheiro pendem das paredes como prova da capacidade intelectual do personagem tido como louco. Nomes de pessoas responsáveis pelos novos Antônios foram tatuados na pele da casa.
Na sua lateral, a história, passado e presente se enfrentam num duelo que mostra que o Brasil de ontem nunca esteve tão atual. “A política armamentista, a violência contra movimentos sociais, o racismo contra negros e pobres no País, o culto ao patriotismo vazio que vemos hoje, tudo isso revela o quanto o discurso e a prática de Conselheiro são condizentes com a nossa realidade”, define o historiador.
Para o psicanalista Osvaldo Martins, a realidade brasileira de hoje ainda se espelha em Canudos. “Temos a questão do racismo, do tratamento que se dá aos povos indígenas originários, à questão da terra, do trabalho. Está tudo para se resolver ainda. Houve avanços? Claro que houve, mas não problemas resolvidos, não demos uma virada de páginas nessas questões. Está tudo aí colocado”, resume o curador.
O tom político da exposição "Tramas de Belo Monte" tem sido recebido com algum incômodo. O estranhamento em torno da expectativa de encontrar na Casa um Conselheiro preso no seu passado trágico, por parte de alguns, encontra eco na proposta dos curadores.
“Para nós, Conselheiro não está parado no tempo”, afirma Danilo Patrício. “Antônio Conselheiro é uma figura história e política, no melhor sentido que a palavra possa ter. De como se pensa eticamente os laços sociais e as relações entre as pessoas. A política do bem comum”, finaliza.
Em 7 setembro último, o juiz eleitoral Rogaciano Bezerra Leite Neto determinou a retirada de painéis da exposição com fotos do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro, alegando "irregularidade em propaganda eleitoral", causando prejuízo ao então candidato. A decisão foi cumprida, mas horas depois, o juiz suspendeu a decisão afirmando que "havia sido induzido ao erro".