
Eleita uma das dez melhores executivas do Brasil, Anette de Castro é vice-presidente da Mallory. Líder e cofundadora do Grupo Mulheres do Brasil
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Lembro-me perfeitamente da primeira vez que tentei explicar a um amigo inglês o conceito de "saudade". Faltaram palavras - ou melhor, as palavras certas. Agora, a Apple anuncia que seus Air Pods 3 farão traduções instantâneas. Confesso: tenho meus receios. Será que um chip vai conseguir traduzir o que sequer consigo explicar em português após 43 anos de vivência neste país? Será que um tradutor substituirá aquela necessidade que sempre acreditei quando passei a conviver com meu marido atual; só conhecemos profundamente uma pessoa quando a gente domina a sua língua materna
Como linguista - mergulhada no francês, espanhol, no russo e no servo-croata, sempre entendi que línguas não são códigos, mas mundos. Aprendi isso no cheiro do pão francês carregado embaixo do braço, nas conversas de cozinha em Belgrado, na melancolia que só Dostoiévski descreve com aquele jeito eslavo de sofrer e amar ao mesmo tempo. São vivências, não palavras. Cada idioma carrega em si uma visão única, uma maneira particular de organizar a realidade e expressar os nossos sentimentos.
Há um perigo silencioso nessa promessa de comunicação perfeita. Quando aprendi russo, descobri que a palavra "toska" não é só tristeza. É um vago anseio da alma, sem objeto definido, uma nostalgia por algo que talvez nunca tenhamos vivido. Como um fone traduziria isso? Como explicaria que os sérvios têm duas palavras para "amor" - "ljubov" e "voljeti" - com nuances tão específicas? Essas distinções sutis são a própria essência da experiência humana compartilhada através das línguas.
E é aí que mora meu temor: será que essa tecnologia, ao "facilitar" tudo, vai nos transformar em turistas do diálogo? Pessoas que passeiam por culturas sem nunca realmente se sentar à mesa, sem errar verbos, sem rir dos próprios equívocos, sem aprender que na Sérvia "molim" carrega um peso de educação e respeito que um simples "por favor" não alcança. O perigo maior é a ilusão de que estamos nos compreendendo, quando na verdade estamos apenas trocando significantes vazios de significado cultural.
Sim, os Air Pods podem quebrar barreiras imediatas. Podem salvar um turista perdido ou fechar um negócio internacional. Mas será que vão construir pontes? Ou nos deixarão flutuando num oceano de traduções literais, sem profundidade, sem sotaque, sem a beleza do mal-entendido que precede o verdadeiro entendimento? A tecnologia não deve nos afastar do esforço genuíno de compreensão, pois é nesse esforço que reside a verdadeira descoberta do outro.
Prefiro acreditar que não. Prefiro continuar com a esperança. Que continuaremos a buscar o contato real, o esforço que, no fundo, é um ato de amor. Porque no dia em que trocarmos o desejo de aprender pela comodidade de traduzir, seremos muitos, falaremos muito, mas talvez não digamos mais nada que vem de dentro. A verdadeira conexão humana sempre exigirá mais que tecnologia - exigirá a coragem de tentar, falhar, e tentar de novo no idioma do outro, com todas as imperfeições que tornam esse processo tão profundamente humano.
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