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Bolsonaro e os crimes em Tianguá no momento mais grave da pandemia
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Bolsonaro e os crimes em Tianguá no momento mais grave da pandemia

Tipo Opinião
CAPA - Bolsonaro durante evento em Tianguá, no Ceará: aglomeração e sem uso de máscara (Foto: Júlio Caesar)
Foto: Júlio Caesar CAPA - Bolsonaro durante evento em Tianguá, no Ceará: aglomeração e sem uso de máscara

Não tenho dúvida de que, mesmo em futuro distante, o presidente da República e capitão reformado Jair Bolsonaro e o general da ativa e ministro da Saúde Eduardo Pazuello serão julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia por crimes contra a humanidade cometidos durante a pandemia.

As filmagens do macabro evento de Tianguá (26/2/2021) serão um dos robustos elementos de prova a serem apresentados ao TPI, quando forem listados os atos de Bolsonaro que indicam persistente e planejado estímulo à circulação disseminada do vírus SARS-CoV-2, induzindo aumento sistemático da transmissão e, por conseguinte, das hospitalizações e mortes por Covid-19.

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Foi um dos dias mais deprimentes que passei desde o início da epidemia. Imagino que muitos profissionais, que atuam no enfrentamento da pandemia, tenham sentido algo parecido. O presidente discursou sem máscara (no dia anterior falou contra seu uso) para uma multidão, também desprotegida em sua maioria, estimulando a não adesão ao isolamento social regulamentado por Decreto do Governo do Estado do Ceará. Avisou ainda que só teria auxílio emergencial para Estados que não impusessem medidas restritivas.

As autoridades do Governo Federal, Congresso Nacional e do Legislativo Estadual presentes, além dos seguidores mais próximos, riam e se congratulavam durante a fala de Bolsonaro. Concordavam, por suposto, com cada sentença proferida, cúmplices de crimes contra a saúde pública em profusão. Nada temiam. Não lhes amedrontaram as recomendações do Ministério Público Federal (MPF) para evitar as aglomerações.

 

"As filmagens do macabro evento de Tianguá (26/2/2021) serão um dos robustos elementos de prova a serem apresentados ao TPI, quando forem listados os atos de Bolsonaro que indicam persistente e planejado estímulo à circulação disseminada do vírus SARS-CoV-2, induzindo aumento sistemático da transmissão e, por conseguinte, das hospitalizações e mortes por Covid-19"

 

A cerimônia aconteceu quando estamos no pior momento da pandemia no Brasil, com mais de mil mortes por dia e circulação de novas variantes mais contagiosas. Não há leitos disponíveis de UTI em praticamente todo o Estado do Ceará, que sofre com epidemias simultâneas na Capital e Interior e, naquela semana, quatro em cada dez tianguaenses que realizaram testes estavam infectados pelo vírus, levando o nível de alerta para Covid-19 na cidade a alcançar grau máximo.

Não acho que os responsáveis ignorassem (não estou entre os que acreditam que apenas a estupidez explique os atos criminosos) a possibilidade de que centenas de casos, internações e até fatalidades podem ser futuramente atribuídas àquela aglomeração. Talvez imaginem que os ganhos políticos compensem o adoecimento de desconhecidos. Curiosamente, nada havia para ser inaugurado. O comício, potencial evento “superdisseminador” da doença, destinava-se, salvo engano, à assinatura da retomada das obras de uma estrada.

Estudo recente do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, que analisou 3.000 normativas editadas no âmbito da União chegou a uma conclusão previsível para quem acompanha as ações do Governo Federal, mas nem por isso menos estarrecedora.

 

"Em duas semanas o Brasil deverá ser líder mundial em número de mortes, previsão que se baseia na taxa de ocupação de leitos de UTI, que atinge mais de 85% em vários Estados. Alguns governadores tentam o difícil equilíbrio entre medidas de isolamento mais rígidas e preservação de algumas atividades"

 

Mesmo que não pareça, existe um plano de resposta à pandemia coordenado por Bolsonaro e seus ministros. Enquanto se busca a quimérica imunidade de rebanho ao custo impagável de milhares de vidas, estimula-se o investimento maciço em drogas ineficazes e se insiste na falsa dicotomia trabalho versus saúde. Depois do advento das vacinas nenhum país manteve essa aposta suicida. Avaliados diversos indicadores, a resposta brasileira à pandemia foi considerada a pior, dentre noventa e oito países avaliados pelo Instituto Lowy de Sydney, Austrália.

Definitivamente a inação frente à propagação do vírus não tem como objetivo salvar vidas. Ao longo da pandemia, e até hoje, não houve um só ato do governo cujo foco fosse a prevenção da doença em escala coletiva. Há sistemático boicote às medidas de distanciamento social, ao uso de máscaras e à aquisição e disponibilização de vacinas. Governadores e autoridades sanitárias, que tentam impor regimes de isolamento mais rígidos, quando a situação epidemiológica exige, são frontalmente atacados.

Como foi impossível para os dois titulares anteriores do MS, ambos médicos, sustentar ações que deixavam a doença seguir seu curso sem intervir, chamou-se um general, sem qualquer formação ou aptidão para o cargo, mas disposto a seguir ordens.

 

"O temor de dramáticas consequências sociais, que podem advir do aumento súbito do desemprego, sem que exista algum tipo de auxílio emergencial, e a falta de vacinas, faz com que haja relutância em adotar a única estratégia que tem produzido atualmente efeito em cenários de alta transmissão e exaustão assistencial: Lockdown e vacinação rápida dos grupos de risco"

 

A militarização do Ministério da Saúde foi crucial para a execução do nefasto plano que prevê a propagação natural do vírus. Como os militares de diversas patentes que lá estão são todos neófitos no tema saúde pública, desconhecem o SUS e, mais ainda, os aspectos que envolvem a contingência de uma emergência sanitária, disfarça-se em incompetência, sem dolo evidente, qualquer ação calamitosa como o “apagão” das vacinas (se não fosse o acordo do Butantan com a Sinovac não existiria sequer campanha de vacinação) ou a tragédia de Manaus. No máximo, apostam, poderão ser acusados de negligência, acidentes de percurso já precificados. Afinal, punir militares nunca foi uma especialidade brasileira. E, sempre, se encontrarão culpados alternativos, se for o caso.

Em duas semanas o Brasil deverá ser líder mundial em número de mortes, previsão que se baseia na taxa de ocupação de leitos de UTI, que atinge mais de 85% em vários Estados. Alguns governadores tentam o difícil equilíbrio entre medidas de isolamento mais rígidas e preservação de algumas atividades, mesmo entendendo que, do ponto de vista epidemiológico estrito, a interrupção completa da circulação de pessoas é a medida indicada.

O temor de dramáticas consequências sociais, que podem advir do aumento súbito do desemprego, sem que exista algum tipo de auxílio emergencial, e a falta de vacinas, faz com que haja relutância em adotar a única estratégia que tem produzido atualmente efeito em cenários de alta transmissão e exaustão assistencial: Lockdown e vacinação rápida dos grupos de risco.

 

"Ou há uma reação em cadeia, forjando um pacto nacional que viabilize, inclusive economicamente, a aquisição rápida de vacinas, a expansão da rede assistencial e o cumprimento de medidas de isolamento mais rígidas, ou nosso fracasso como sociedade, refletido em milhares de mortes evitáveis, estará sedimentado para sempre"

 

Depois da circulação das terríveis imagens de Tianguá, não houve manifestação oficial de entidades médicas, jurídicas, empresariais e de comunicação locais, que expressassem indignação perante ato tão vil, que foi a exposição dolosa de pessoas à contaminação em massa. Louvem-se as exceções, como a manifestação do coletivo Rebento de médicos em defesa da vida, da ciência e do SUS, e de políticos cearenses que passaram a exigir uma CPI da pandemia que investigasse a atuação do executivo.

O silêncio da Ordem dos Advogados do Brasil seção Ceará, por exemplo, que historicamente tantas vezes esteve ao lado do povo cearense, é decepcionante. Houve descumprimento flagrante da lei. Se o presidente não pode ser responsabilizado, por prerrogativa de foro, certamente muitos outros que lá estavam podem ser. Que se provoquem as instâncias judiciais. O MPF não teve suas recomendações atendidas. Que o próprio órgão determine a investigação rigorosa das responsabilidades.

Estamos no momento mais crítico da epidemia. Gestores públicos e autoridades sanitárias precisam do apoio expresso de todos os setores que se importam com o bem estar social para superar o discurso negacionista. Ou há uma reação em cadeia, forjando um pacto nacional que viabilize, inclusive economicamente, a aquisição rápida de vacinas, a expansão da rede assistencial e o cumprimento de medidas de isolamento mais rígidas, ou nosso fracasso como sociedade, refletido em milhares de mortes evitáveis, estará sedimentado para sempre.

Foto do Antonio Lima Neto

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