Já pensou em tudo o que cabe em um ‘muito obrigado’?
Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Já pensou em tudo o que cabe em um ‘muito obrigado’?
A gente anda por aí correndo, no nosso cotidiano atribulado, distribuindo automáticos "obrigado por isso" e "obrigado por aquilo". Nem realiza quanta coisa cabe nesta simples palavrinha de agradecimento, que oleia as juntas da nossa convivência com os outros
Obrigado, dito assim no seco. Muito obrigado, para os mais formais ou realmente gratos. Obrigadíssimo para os realmente satisfeitos. Obrigadinho para os mais carinhosos. É a palavrinha mágica que a gente aprende ainda criança, no processo civilizatório que empreendem nossos pais e mestres. A gente diz o quê? E o menino, já correndo com o doce na boca, volta a cabeça para trás e diz, sem saber o que disse: “obrigado”. Pronto, o adulto está contente. O mundo volta à ordem. O miúdo há de ser alguém na vida.
Até os estrangeiros acham uma graça enrolar a língua e tentar articular a palavra salvadora, que nos livra todos dos vexames da ignorância, de falta de empatia e acusações de ingratidões. Quatro sílabas. Vai bem com um “por favor”, um “com licença”, um “desculpe”. Eu gosto de dizer e de ouvir. Mesmo se hoje andamos tão econômicos em gentilezas.
Numa viagem ao Porto, Norte de Portugal, o assunto caiu bem na minha xícara de café. Isso por conta de um bando de pássaros em revoada, destes que viajam em grupos, arrastam malas e olham guias turísticos. Austríacos, no caso. Mas, podiam ser de qualquer outra nacionalidade. Chegaram em três ou quatro viagens de elevadores e encheram a pequena sala do café-da-manhã do hotel. Em minutos, esvaziaram-se bandejas de queijos, fiambre, pães e bolos.
A máquina de café engasgou, na insistência dos apertões. Para socorrer os hóspedes, correu expresso um invisível pelotão de funcionários, na azáfama de desentupir máquinas, repor comida e limpar o buffet. Já os turistas, barrigas cheias, partiram satisfeitos para a Galícia, na Espanha. E, no silêncio que se seguiu, não reverberou sequer um danke schön (ao pé da letra, “lindo obrigado”). Olha, Santiago (de Compostela), vão aí ter consigo uns mal-agradecidos.
Do meu canto, eu entalei com a broa de milho. A gente diz o quê? A gente diz o quê? Diante do meu olhar perplexo com a eficiência de robôs que se instalou na sala, o companheiro de mesa resolveu adoçar o café com uma colherada de cultura inútil. A pensar nas várias formas de agradecer, no mundo. Já reparou que nas línguas anglo-saxônicas e germânicas o equivalente da palavra obrigado é sempre bem curtinha? Como coice de mula, diria um compadre meu.
Ora, vejamos a explicação da ideia. Em alemão, danke. Em holandês, danku. Em inglês, thanks ou thank you. E, nas línguas escandinavas, a coisa fica ainda pior. Quer dizer, em norueguês é takk. Em sueco é tack. E em dinamarquês, tak. Três letrinhas e, pronto, problema resolvido. Já nas línguas neolatinas, temos o merci para o francês, o gracias para o espanhol e o grazie para o italiano.
"...neste jogo de agradecer, resta um paradoxo. O vínculo moral dura o tempo da fala. Depois se perde no tempo, sem garantias, sem memória. ... Mas, o que não dá para esquecer é que sem os outros não dá para viver"
Tudo isso, claro, seja em que língua for, pode ainda ser floreado, melhorado e intensificado com a inclusão de outras palavrinhas adicionais, como “muito”, “cordialmente” e “mil vezes”. No dinamarquês, ao invés do sucinto “tak”, dizer, por exemplo, o “mange tak”. Já outra coisa, não é? Dá até tempo do agradecido olhar nos olhos do benfeitor.
Os japoneses é que agradecem com uma pitadinha de filosofia, pelo que tirei dessa conversa de hotel. Pois, arigatô, na sua origem, significa algo parecido com “a vida é dura” ou “é difícil existir”. E, já que “a vida é dura”, eu exprimo a minha gratidão e apreciação pela sua bondade. Não é lindo? O café tinha já esfriado na xícara quando a gente chegou outra vez ao princípio, no caso do obrigado, na língua de Camões e Patativa do Assaré.
Anos atrás, um dos grandes especialistas mundiais na área da Educação, o professor português António Nóvoa, disse algo sobre o assunto. E eu nunca mais esqueci. Durante um evento em Brasília, cujo registro me chegou em vídeo, ele resume o “Tratado da Gratidão”, de São Tomás de Aquino. Nele, os três níveis da prática do reconhecimento.
No primeiro, o plano mais superficial, que é o cerebral ou intelectual. É o caso do danke ou thanks, com a ideia de reconhecer alguém no pensamento. O segundo, o nível intermediário, traz a ideia da mercê, de dar uma graça a alguém, como o gracias e o grazie. Já o terceiro, que é o mais profundo, só o português tem, segundo o professor. É o nível do vínculo. “Fico-vos obrigado perante vós. Comprometido. Vinculado”.
E eu acrescento um grão à fala do mestre – cria-se aí uma espécie de laço moral. Fico ligada moralmente a você. Em dívida. Veja quantas coisas cabem num simples obrigado. Aliás, no agradecer em português, outra novidade. O sujeito que fez o favor recebe o “obrigado” e, do seu lado, pode responder “de nada”, liberando o outro da dívida. Ou, pode dizer também “obrigado, eu”. Assim, vinculados e enlaçados os dois.
A gente até tem vontade de insistir: “não, obrigada, eu”! Dar mais uma volta no novelo da gentileza. Por isso, fui dar uma palavrinha às meninas do hotel. Meu obrigada sincero. Mesmo se, neste jogo de agradecer, resta um paradoxo. O vínculo moral dura o tempo da fala. Depois se perde no tempo, sem garantias, sem memória. Esqueço eu. Esquecem elas. Os austríacos esquecem também. Mas, o que não dá para esquecer é que sem os outros não dá para viver. A vida é dura, lembram os japoneses. E um obrigado salva até, e inclusive, um simples café-da-manhã.
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