Um coração em parada militar no bicentenário da independência (II)
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Um coração em parada militar no bicentenário da independência (II)
Neste 7 de setembro de 2022, o morto coração de D. Pedro I será "servido" na festa (militar) do bicentenário da Independência do Brasil. É que, da simbólica dessa relíquia real, o governo Bolsonaro vai chupar toda a substância, ao assimilar o candidato de ideias golpistas e antidemocráticas a um príncipe que disse ao povo que "fica"
Alguém sabe me dizer por onda anda o dedo mindinho de Santa Tereza D’Ávila? Os olhos azuis de Santa Roseline de Villeneuve? A cabeça de Henri IV, rei da França e Navarra? Porque os ossinhos da beata Menina Benigna eu sei onde estão - bem-guardados por mãos zelosas no Cariri, Sul do Ceará. Já a coroa de espinhos de Cristo está a salvo, depois do incêndio que destruiu parte de Notre-Dame.
O pênis de Napoleão Bonaparte, avaliado em 10 mil dólares, dorme sossegado em uma caixa, debaixo da cama de um urologista americano. Aliás, bem longe das chacotas internacionais, pobre membro ressequido - dizem, do tamanho do dedo de bebê. A contrário do pênis de Rasputin, o místico russo conselheiro do Czar, que ficou muito famoso pelo seu tamanho descomunal. Hoje é peça de destaque em um museu de sexo e erotismo, em São Petersburgo. Para você ver que, neste negócio de relíquias, nem mesmo um pelo pubiano se perde.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coração de Dom Pedro I chega ao país para as celebrações dos 200 anos da Independência.
Pois é. Desde os começos do Cristianismo até hoje, as relíquias nunca saíram de moda. É que estes restos de corpos trazem com eles a força da história do corpo a que pertenciam. Ou parte da história, melhor dizer. No caso do pênis de Napoleão, lembramos da misoginia confessa do imperador. De Rasputin, lembramos das aventuras sexuais do todo-poderoso místico, brutalmente assassinado, castrado e jogado em um rio.
Já o coração de D. Pedro I, traz para o inconsciente coletivo a força romântica dos feitos fundadores do regente. Por estas relações simbólicas que instauram, estas unhas, estes olhos, estas mechas de cabelos, estes braços, mãos e dedos, estas pernas, estes corações e gotas de sangue atraem milhares de pessoas e alimentam um comércio de milhões, inclusive a cobiça e roubos de relicários e órgãos de famosos.
Um caso assim aconteceu numa sala de autopsia. O médico patologista de plantão não se conteve. Aproveitando-se que estava sozinho fazendo a necropsia, Thomas Harvey roubou o cérebro de um dos mais famosos gênios do século XX, nada menos que Albert Einstein. Prevendo tais tentações, o físico tinha já manifestado o desejo de ser cremado. Não queria que nenhuma parte de seu corpo fosse estudada, exposta ou idolatrada.
O roubo de Harvey valeu-lhe o emprego, o casamento e a licença de médico, mas por décadas ele guardou o cérebro repartido em 240 pedacinhos mergulhados em formol, em potinhos de vidro, no porão da casa dele. O patologista também retirou os olhos de Einstein e presenteou-os ao seu oftalmologista. O quiproquó terminou 40 anos depois – hoje os potinhos estão no Centro Médico da Universidade de Princeton.
Foto: Divulgação
A exposição "Cérebro: A Mente como Matéria" expôs um pedaço do cérebro do físico alemão Albert Einstein, em Londres
Ao contrário de Einstein, o príncipe D. Pedro I, já condenado pela tuberculose, deixou em testamento o desejo de que, após sua morte, retirassem o coração de seu peito e deixassem-no na cidade do Porto, onde o monarca se sentiu apoiado e acolhido durante a batalha que travou contra o irmão, D. Miguel. Por isso, o coração foi colocado em um recipiente de vidro cheio de formol, trancado numa caixa de madeira a cinco chaves e entregue aos cuidados da Igreja de Nossa Senhora da Lapa, no Porto.
Cento e oitenta e sete anos depois, o coração real saiu da sua caixa para uma primeira viagem ao Brasil. Já o corpo de D. Pedro I foi para o Brasil em 1972, nas comemorações dos 150 anos de Independência, a pedido da ditadura militar. Ficou em definitivo, enterrado no Monumento à Independência, em São Paulo.
A ida do corpo de D. Pedro I para as comemorações militares da ditadura militar e, 50 anos depois, a ida do coração de D. Pedro I para as comemorações militares do governo Bolsonaro, não são nada inocentes. Nem por acaso. Há conversas aí, no tempo e no espaço. Ditadores militares e governo antidemocrático fazendo pontes. Ossos e órgãos do imperador para legitimarem e alimentarem narrativas de golpes e discursos de permanências, de “ficos”.
"Bicentenário como se devia - sem intimidações, sem relíquias, sem hinos patrióticos, sem paradas militares – que nos fazem meros espectadores. Quando desejamos ser também protagonistas"
Restritas a poucos, paradas militares e seus restos. Com a festa do bicentenário assim “sequestrada”, no dizer da antropóloga e historiadora Lilian Schwarcz, o povo brasileiro há de encontrar maneiras de celebrar e refletir sobre os desafios desse processo de formação do país.
Em Portugal, o 7 de setembro prepara-se com agenda cheia: exposições, debates, shows. Ou pode ser, como na minha escolha, apenas sentar-se na grama dos jardins da Torre de Belém e ouvir as maravilhas da internacional orquestra sinfônica de Minas Gerais. Um concerto ao ar-livre com obras de Villa-Lobos, Carlos Gomes e, vejam só, também de D. Pedro I.
Ao que parece, o príncipe era versado em instrumentos e até cantava bem. O evento é gratuito para portugueses e para os que desejarem entre os 250 mil brasileiros e brasileiras que trabalham, estudam e moram aqui. Bicentenário como se devia - sem intimidações, sem relíquias, sem hinos patrióticos, sem paradas militares – que nos fazem meros espectadores. Quando desejamos ser também protagonistas.
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