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Os enterrados no mar
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Os enterrados no mar

No enredo, as buscas por um minúsculo Náutilos dos tempos de hoje - o Titan. A bordo do engenho, um riquíssimo capitão Nemo, conhecido como Stockton Rush, e sua tripulação de aventureiros. Viagem de uma expedição turística, que teve mais espaço mediático que a tragédia ao largo de Pylos
Tipo Crônica
IMAGEM mostra o lançamento do submersível Titan de uma plataforma (Foto: DIVULGAÇÃO / EXPEDIÇÕES OCEANGATE / AFP)
Foto: DIVULGAÇÃO / EXPEDIÇÕES OCEANGATE / AFP IMAGEM mostra o lançamento do submersível Titan de uma plataforma

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A estas alturas, a notícia é velha. O mundo já deu suas voltas depois que o Titan desapareceu no fundo do mar, implodindo com seus ocupantes. Mas, demora um gosto na boca. Porque embarcamos alegremente na aventura de milionários, a bordo de um submersível, pelas águas abissais do Atlântico Norte, e não pusemos o pé na ordinária traineira líbia, que sacolejou nas águas azuis do mediterrâneo, com 750 desesperados a bordo. Apagada ou relegada a espaços menos nobres, a tragédia de Pylos surgiu-nos como mais uma catástrofe em meio à enfiada de notícias. Já o mergulho do Náutilos moderno e seu intrépido capitão Nemo, chamou-nos para o sofá.

Sufocamos com ele, em apneia. Ultrapassamos com ele os limites das sábias cachalotes. Descemos para além do mergulho das lulas gigantes. Atingimos os quatro graus de temperatura, nas zonas onde não passa mais luz e a escuridão é tremenda. Suportamos a pressão oceânica de 200 atmosferas. A três mil metros, atingimos o ponto das baleias-bicudas-de-cuvier. E, finalmente, chegamos aos destroços do Titanic - jazendo no chão arenoso das profundas marítimas. Lá onde um ser humano nunca pôs os pés e voltou para contar a história. Vivemos tais peripécias com Titan, mas não demos uma única braçada solidária ao lado de um refugiado, que se afogou ao largo de Pylos.

No roteiro de suspense e tensão crescente da operação de salvamento, devoramos os capítulos, a colheradas. E, para sorte de nossa curiosidade e a de quem cuida da audiência, quis o destino que Stockton Rush, o diretor-executivo da empresa proprietária do Titan, fosse casado com a trineta de um casal de milionários que morreu no Titanic – os famosos Isidor e Isa Straus. No filme, que virou fenômeno mundial, temos a cena dos dois deitados na cama, depois de cederem o lugar deles para a salvação de outros, enquanto as águas oceânicas engolem o navio e o arrastam para o fundo. Mastigamos o aperitivo destes detalhes, como pipocas quentinhas, na sala de tevê.

"Dentre dias, como de costume, os afogados de Pylos serão esquecidos, no atropelo de outras catástrofes diárias. Mas, o desaparecimento dos viajantes de Titan vai ficar na nossa mente, animar nossas conversas, entrar para a história das grandes ousadias humanas"

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Já o naufrágio de centenas nas águas geladas da Grécia, parece-nos insosso. Olhamos sem gosto e penalizados a superfície da massa d’água coalhada de centenas de cadáveres. Lamentando estas mortes, em um último recurso para fugir da miséria e tiranias. Talvez, até emocionados com o drama das gentes. Mas, não eletrizados e picados pela curiosidade. Não, como ficamos quando soubemos do destino dos cinco intrépidos – quatro deles dispostos a correrem risco de vida, em troca da excitação de uma espiadela breve nos destroços do Titanic. Já tinham ido ao espaço, agora era preciso trazer mais um troféu, o de uma experiência subaquática.

O que medida isso fala sobre nós, sobre nossa sociedade de hoje? Nossa indiferença coletiva, individualismo e consumismo – a vida e a morte como produtos, para se mostrar e se ver? Para além do apetite por um bom enredo para nos enredar? Por misturarmos o real e a ficção? Por apostarmos se a tecnologia pode mais que a natureza? Por testarmos os limites de nossa ação, no Planta, e fora dele? Nas perguntas, pistas. No mar, um cemitério. O mais velho dos titãs, Oceanus, o rei de todas as águas desconhecidas, recebeu a todos. Corpos dos ricos, corpos dos pobres.

Dentre dias, como de costume, os afogados de Pylos serão esquecidos, no atropelo de outras catástrofes diárias. Mas, o desaparecimento dos viajantes de Titan vai ficar na nossa mente, animar nossas conversas, entrar para a história das grandes ousadias humanas. Como se não fosse ousadia enorme, a coragem de subir em um frágil barco superlotado - mulheres e crianças no porão -, para uma perigosa travessia só de ida. Milhas e milhas náuticas rumo ao sonho de uma vida melhor. Ou, não sendo isso possível, encalhar pacificamente o corpo na praia, como o menino sírio, cuspido até por Oceanus.

Foto do Ariadne Araújo

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