Logo O POVO+
Ter o perfil da "boa vítima"
Foto de Ariadne Araújo
clique para exibir bio do colunista

Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Ter o perfil da "boa vítima"

Em denúncias de violência sexual e sexismo, as mulheres têm ainda hoje de provar que são "boas vítimas", para serem acreditadas — infelizmente, diga-se. Sobre elas, pesa ainda o julgamento de uma sociedade machista e patriarcal
A francesa Gisèle Pelicot, que foi estuprada e dopada pelo ex-marido durante anos (Foto: Reprodução/Christophe SIMON/AFP)
Foto: Reprodução/Christophe SIMON/AFP A francesa Gisèle Pelicot, que foi estuprada e dopada pelo ex-marido durante anos

A francesa Gisèle Pelicot teve de encontrar forças para enfrentar o tsunami de um duplo choque. Primeiro, descobrir que nos últimos dez anos foi drogada em casa pelo marido, que recrutava homens na Internet para violá-la, enquanto filmava.

Segundo, fazer face às injúrias e suspeitas que choveram sobre ela — “tanto tempo assim, por certo ela saberia de algo ou mesmo suspeitava; quem sabe, casada com ele, até pactuasse das violações?”.

Aos 71 anos de idade, Gisèle compreendeu que nem a sua idade poderia salvá-la das suspeitas, as mesmas que caem sobre mulheres vítimas de violência sexual, seja em casa, na rua, ou no trabalho: isso, de não ter o perfil, exigido por muitos, de ser a “boa vítima”.

Coloca-se sobre a mulher o princípio da culpa: que roupa vestia? Tinha bebido? Usava drogas? Era prostituta? Saía com muitos homens? Traía o marido ou companheiro? Debateu-se? Gritou bem alto?

A boa vítima é a que vai, muito bem-comportada pela rua, e é pega de surpresa, jogada nos matos, violada e — melhor, para acabar de vez a dúvida — morta, ou quase.

A sociedade machista acredita mais facilmente na vítima se o caso envolver um desequilibrado ou tarado sexual na rua, que em um caso cujo agressor seja o marido “respeitável”, na intimidade da casa, como o de Gisèle. Ou um chefe, em um cargo de direção, na empresa, no trabalho.

Se ousam denunciar, são reprovadas por isso. Reprovadas pelo comportamento, pelo sucesso, pela beleza, pela coragem, pela dignidade de levantar a cabeça e encarar o agressor.

Você entrou no quarto de hotel comigo porque quis; subiu no meu carro porque quis; foi jantar comigo porque quis; flertou comigo e me encorajou — fiz o que fiz, em parte, a culpa é sua. Armadilha maquiavélica: intimidar, colocar a mulher à margem, apagar a sua voz.

O marido de Gisèle Pelicot confessou tudo: desejo de subjugar, degradar e humilhar a mulher. Nem isso calou a dúvida perversa, a de que Gisèle talvez ingerisse deliberadamente os ansiolíticos, que a faziam perder os sentidos.

E se não é isso, é outra coisa: culpada de não ter vergonha do que se passou, de ter jogado no mundo sua intimidade, de mostrar a cara a descoberto, de autorizar a exibição dos vídeos feitos pelo marido, em julgamento aberto. Escândalo.

A coragem de Gisèle faz dela um ícone feminista, na luta para que a vergonha e a culpa mudem de lado: da vítima para o agressor.

É de Gisèle que me lembro, quando me pergunto se algo mudou nas representações coletivas sobre as mulheres, em casos de abusos, assédio ou violência sexual.

Ainda no rescaldo do 25 de novembro — Dia Internacional para Eliminação da Violência contra as Mulheres —, até acho que mudou, depois do movimento “Me Too”, por exemplo. Mudou, mas, ainda não o suficiente — tal a avalanche de agressões que as mulheres sofrem diariamente.

Gisèle se levantou para nos lembrar que as relações entre homens e mulheres precisam mudar. Que qualquer ato de violência contra uma mulher é grave e afeta a nossa humanidade, como um todo.

Gisèle se levantou, com a sua dignidade, para nos lembrar de que não há boa ou má vítima — apenas vítimas, e elas são milhares de mulheres, pelo mundo.

Foto do Ariadne Araújo

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?