Logo O POVO+
Nós e os fantasmas domésticos
Foto de Ariadne Araújo
clique para exibir bio do colunista

Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Nós e os fantasmas domésticos

Um mundo povoado de fantasmas e almas penadas, que assombram casas e tentam nos passar mensagens. A depender da sociedade, os mortos podem se impor ou desaparecer, no esquecimento. Mas, de alguma forma, eles sempre estarão lá — à espreita
O escritor Grégory Delaplace (Foto: Reprodução/Emmanuelle Marchadour/École Pratique )
Foto: Reprodução/Emmanuelle Marchadour/École Pratique O escritor Grégory Delaplace

Na Islândia, é uma evidência: fantasmas existem, ponto final. Na Mongólia, melhor se livrar deles, o mais rápido possível, para se ter espaço no mundo para novos seres humanos.

No Vietnam, os fantasmas perdidos entram em contato com os vivos, dizem onde estão, para serem encontrados e enterrados, como se deve.

O etnólogo francês Grégory Delaplace viajou, de um país a outro, para entender como estes fenômenos inexplicáveis desembarcam na vida dos vivos e se impõem. Passou anos na Ásia Oriental, visitou e estudou a América do Sul, para realizar o que ele chama, uma antropologia do invisível. Aliás, o invisível é um caso de família.

Menino pequeno, esperava ansioso a tia, Nathalie Petesch, antropóloga e especialista na Amazônia, chegar do Brasil, com histórias incríveis dos Carajá, cuja sociedade queimava objetos dos mortos, de forma que eles fossem esquecidos e não pudessem voltar. Seguiu-lhe os passos, mas foi investigar o caso dos fantasmas na Mongólia.

Na Mongólia, descobriu um costume diferente: nada de enterro. Envolve-se o defunto em um lençol e deixa-se o corpo na natureza, para a fome dos animais selvagens, de modo que desapareçam, e possam ser esquecidos. Todas estas histórias constam no ensaio que ele está lançando: A voz dos fantasmas — quando os mortos desembarcam.

Para escrever seu livro, Delaplace teve também de mergulhar em centenas de arquivos da Sociedade para a Investigação Psíquica, de Londres, que existiu séculos atrás. Na época, estes homens da ciência queriam documentar e investigar casos, com testemunhos, de aparições e fenômenos de assombração.

A investigação não deu em nada, mas os arquivos de testemunhos inspiraram, anos depois, filmes de sucesso, como O Exorcista e Poltergeist. No livro de Delaplace, temos um pouco de tudo isso — a ideia não é comprovar ou acreditar na existência dos fantasmas, mas compreender de que maneira eles existem para e entre nós, a depender da sociedade.

 

Na China atual, por exemplo, a inteligência artificial coloca em cena a versão 2.0 do espiritismo. Robôs fantasmas, imagem fiel dos mortos, falam e interagem com os vivos, através de vídeos e chats. Confusão, estresse, psicose? Qualquer uma das três opções. Uma coisa é falar com um morto como morto, outra é falar com o morto como se ele estivesse vivo.

Pensar na época espectral em que vivemos — o que fazer com os mortos que produzimos, num mundo de guerras, fomes e violência? Delaplace responde que depende do tipo de coisa que desejamos que eles sejam para nós. No Ocidente, durante os funerais, damos aos mortos uma biografia, um lugar no mundo, um molde.

O enterro passou a ser um dispositivo para fazer do morto nosso interlocutor. Queremos que eles nos deixem em paz, mas, ao mesmo tempo, queremos nos lembrar deles, falar com eles e visitá-los nos cemitérios, encomendar missas e santuários. Os mortos reclamam nossa atenção e existem, no meio dos vivos.

Pensar e analisar esta existência e esta relação entre vivos e mortos — independente se acreditamos em fantasmas ou não — é organizar e sistematizar o que sabemos ou não sobre a humanidade. Desde o começo dos tempos, homens e mulheres relacionam-se com o invisível. Herdamos estas aparições, resta saber o que fazer com elas.

Foto do Ariadne Araújo

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?