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"Do pó ao pó": Por que ainda evitamos em falar sobre a morte e a finitude da vida?
Reportagem Seriada

"Do pó ao pó": Por que ainda evitamos em falar sobre a morte e a finitude da vida?

A morte é cercada de tabu, apesar de ser uma certeza universal. Contudo, refletir sobre a finitude pode ressignificar o viver
Episódio 1

"Do pó ao pó": Por que ainda evitamos em falar sobre a morte e a finitude da vida?

A morte é cercada de tabu, apesar de ser uma certeza universal. Contudo, refletir sobre a finitude pode ressignificar o viver
Episódio 1
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Muitas culturas possuem datas dedicadas a refletir sobre a morte e a memória dos que já se foram. No Brasil é o Dia de Finados, lembrado em 2 de novembro. Apesar disso, em especial no Ocidente, a finitude da vida ainda é rodeada por uma aura de mistério e medo. Apesar de ser uma das certezas universais da vida, é paradoxalmente um dos temas mais evitados. A dificuldade de discutir a morte envolve uma complexa teia de aspectos culturais, emocionais e psicológicos.

Uma pesquisa divulgada em 2018 pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) revela que 73% dos brasileiros consideram a morte um tabu. Desses, 48,6% não se sentem prontos para lidar com a morte de outra pessoa, e 30% confessam ter muito medo de morrer.

Para o tanatólogo e psicólogo Erasmo Ruiz, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), foi com a modernidade que o assunto se tornou um tabu. “No passado, as pessoas conviviam diretamente com a morte. Doenças hoje tratáveis, como infecções urinárias, eram fatais. A expectativa de vida era menor, as condições de higiene eram precárias, e epidemias, comuns. O contato com a morte era inevitável, os familiares participavam, inclusive, na preparação dos corpos”, aponta.

Para quase todas as culturas, a morte é enigma e as religiões trazem uma pluralidade de viões(Foto: JORM SANGSORN/ADOBE STOCK)
Foto: JORM SANGSORN/ADOBE STOCK Para quase todas as culturas, a morte é enigma e as religiões trazem uma pluralidade de viões

Segundo ele, o conceito da morte costumava ser apresentado bem cedo aos indivíduos. As crianças, por exemplo, eram expostas a velórios e rituais fúnebres dos membros e amigos da família, o que as ajudava a lidar com a morte de maneira mais natural.

O professor ainda aponta que, por volta do século XX, médicos e hospitais passaram a protagonizar o momento da morte, bem como o cuidado com o corpo passou a ser cargo de empresas funerárias. “Esse distanciamento faz com que a morte seja vista como algo assustador e desconhecido, uma ruptura ameaçadora”, diz.

Tradicionalmente, diversas religiões também oferecem explicações para a morte, minimizando a ansiedade quanto essa etapa. “Mas muitos recursos espirituais hoje não se concentram em oferecer sentido à morte, mas sim para responder às demandas do dia a dia, como conquistas e realizações materiais”, aponta Erasmo Ruiz.

Para o tanatólogo Diego Benevides, a pandemia da Covid pautou uma reflexão imediata sobre a nossa finitude(Foto: JORM SANGSORN/ADOBE STOCK)
Foto: JORM SANGSORN/ADOBE STOCK Para o tanatólogo Diego Benevides, a pandemia da Covid pautou uma reflexão imediata sobre a nossa finitude

Nos últimos anos, eventos extremos têm alterado a forma com que muitos lidam com a mortalidade. É o que comenta o tanatólogo Diego Benevides, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudante de Filosofia na Uece.

“A pandemia exigiu uma reflexão imediata sobre nossa finitude. O tema da morte se tornou impossível de evitar: estava presente na mídia e em nossas casas. Vivemos um escancaramento das perdas e do luto, mas os rituais funerários foram interditados, mudando nossa relação com a morte. A sociedade ainda processa tudo isso”, aponta.

Benevides observa que questões como guerras, crises ambientais, necropolítica, e pobreza também expõem a morte em todos os âmbitos. "Precisamos criar mecanismos para entender que o morrer faz parte de uma cadeia que começa com o nascimento e que, apesar do medo e da dor inevitáveis, podemos passar por isso de maneira consciente e até mesmo serena."

 

 

Enfrentar a morte e o luto

O POVO ouviu histórias de pessoas que enfrentaram a perda de entes queridos ou tiveram proximidade com a morte. Para elas, a finitude deixou de ser um mistério distante e se tornou uma realidade palpável, reorientando suas prioridades e valores.

A notícia da morte de Ivo Andrade, resultado de um latrocínio, resultou em uma dor devastadora para Márcia, 44, e sua família. Moradora do Conjunto Ceará, ela conta que perdeu o irmão em dezembro de 2023. Ivo trabalhava como bilheteiro em uma estação de metrô. Ele foi vítima de golpes de faca por assaltantes no caminho do trabalho.

“Saber da morte dele, que foi de uma forma tão violenta, foi horrível. Antes, eu via a morte como algo distante. Acompanhava notícias, mas nunca imaginei que isso chegaria perto”, comenta Márcia. A tragédia deixou a família envolvida em um processo de luto intenso.

 

 

A dor da perda transformou a perspectiva de Márcia sobre a vida e a morte. Ela observa que, na infância, aprendemos que os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem e morrem, mas a morte raramente é discutida, o que torna o processo de luto ainda mais difícil.

Márcia explica que a família enfrenta o luto por meio de três pilares fundamentais: a espiritualidade, realizando orações diárias e tendo foco no amor a Deus. A busca por ajuda psiquiátrica e tratamento para sintomas de depressão. Além da prática de esporte, que ajuda a ressignificar a dor e na construção de uma rede de apoio.

Para ela, o Dia de Finados agora se tornou uma oportunidade para honrar a memória de Ivo. “É uma jornada que exige coragem e força. Quero valorizar a bela história que construímos, mesmo que ele esteja ausente fisicamente. Dentro de nós ele permanece presente, um amor eterno".

A família e os amigos agora se dedicam aos preparativos para uma corrida em homenagem a Ivo Andrade, seu esporte preferido. O evento está programado para o próximo dia 15 de novembro.

48,6% dos brasileiros não se sentem prontos para lidar com a morte de outra pessoa e 30% confessam ter muito medo de morrer(Foto: JORM SANGSORN/ADOBE STOCK)
Foto: JORM SANGSORN/ADOBE STOCK 48,6% dos brasileiros não se sentem prontos para lidar com a morte de outra pessoa e 30% confessam ter muito medo de morrer

Já a servidora pública Katharine Magalhães, 41, vivenciou a perda súbita de sua mãe em fevereiro de 2023. Com 63 anos, ela teve um aneurisma que, após 48h, resultou em uma morte encefálica. O caso pegou a família de surpresa, pois apesar de idosa, não apresentava histórico de doenças graves.

Katharine relatou que, nas semanas seguintes à morte, ela e os outros dois irmãos se sentiram anestesiados. “O processo de luto tem sido algo com que ainda estamos lidando, na verdade, tentando entender como seguir em frente”, comenta.

Desde a morte da mãe, a família buscou terapia para lidar com a perda. Por orientação, Katharine conversa com a mãe e escreve cartas. Sua filha, atualmente com 10 anos, também entrou na terapia e, apesar da pouca idade, já compreendeu a situação.

A perda afetou significativamente a percepção de Katharine sobre a finitude. “Desde a pandemia, já pensava sobre a morte, mas mais em relação à minha própria. A perda da minha mãe me fez refletir sobre envelhecimento e a inevitabilidade da morte”, expõe.

 

O que fazer para amenizar o sofrimento do luto e a ansiedade da morte?

 

 

Um luto em vida

Professora Fernanda Marques enfrentou problemas graves de saúde (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)
Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução Professora Fernanda Marques enfrentou problemas graves de saúde

O tanatólogo Erasmo Ruiz afirma que a consciência da morte é importante, mas não devemos viver obcecados pelo fim. Em vez disso, devemos usá-la como motivação para realizar o que realmente importa. “Ela é um lembrete constante de que o tempo é limitado e de que devemos vivê-lo com propósito. Aqueles que se sentem satisfeitos tendem a encarar o fim com mais serenidade”.

A professora universitária Fernanda Marques, 55, começou a refletir sobre a finitude da vida ao lidar com a fragilidade da própria saúde. Após contrair pneumonia bacteriana durante uma viagem internacional, ela chegou a passar 20 dias em internação hospitalar.

“A doença se espalhou por vários órgãos, causando problemas renais, cardíacos, derrame no pericárdio e derrame pleural”, comentou. A professora conta que o período foi marcado pelo desânimo e ansiedade, o medo da morte se tornou uma constante. Felizmente, ela contou com apoio de sua terapeuta e também de amigos.

“Já venho refletindo sobre a finitude da vida, especialmente porque minha mãe tem 84 anos e está cada vez mais frágil. Mas essa experiência me fez perceber ainda mais a nossa fragilidade e a importância de viver intensamente. Devemos valorizar momentos felizes”, conta.

Já a jornalista Mirelle Costa, 38, vivencia um luto complexo. Desde a morte do pai, que faleceu quando ela tinha apenas 10 dias, ela compreende a morte como parte da vida. Contudo, sua percepção mudou após sua mãe, Vera Celida Silva, sofrer um segundo AVC hemorrágico em 2024 que a deixou em estado vegetativo.

Da esquerda para a direita: Mirelle Costa; sua mãe, Vera Celida Silva e sua irmã, Michelle Costa (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)
Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução Da esquerda para a direita: Mirelle Costa; sua mãe, Vera Celida Silva e sua irmã, Michelle Costa

“Com minha mãe, a convivência longa torna o luto mais difícil, pois carrego memórias vivas dela. Os médicos afirmam que a situação dela é imprevisível, podendo durar de um mês a uma década. Eu digo que é como um “luto em vida, uma perda gradual”, comenta.

Desde o primeiro AVC, Mirelle assumiu os cuidados da mãe em todos os aspectos. Ela comenta que a decisão trouxe desafios, mas também a compreensão de que a vida tem seus ciclos.

“As lembranças de momentos juntas se tornam mais difíceis de lidar. Reconheço a importância do suporte emocional, mas acredito que a espiritualidade é crucial para lidar com essa fase. Sem isso, é fácil entrar em um ciclo de culpa, pensando no que poderia ter sido feito de diferente.

 

 

O que é a morte sob o ponto de vista das diferentes crenças

Emerson Silveira, doutor em Ciência da Religião e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais, comenta que, em todas as culturas, a morte é um tema que desperta tanto a atração quanto o medo. Ao mesmo tempo, a pluralidade de religiões faz com que a morte seja abordada de maneiras distintas.

 

Como a morte é abordada em diferentes credos

 

Há também a possibilidade de mescla entre religiões e costumes de cada região. “O catolicismo no México, por exemplo, mescla tradições indígenas com suas próprias crenças, resultando em celebrações vibrantes, como o Dia dos Mortos. Essas celebrações não são apenas momentos de dor, mas também de lembrança e celebração das vidas que passaram”, conclui Emerson Silveira.

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