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De volta a voz dos sinos de Notre-Dame
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

De volta a voz dos sinos de Notre-Dame

Cada Natal, eles voltam à moda — nos papéis de presente, nas guirlandas, nas árvores natalinas. Nas torres das igrejas, são raros. Inventados há dois mil anos, na China, os sinos foram incorporados na Idade Media, aos rituais cristãos e à vida em comunidade
Tipo Crônica
Fachada da catedral de Notre Dame em 2024, após a restauração (Foto: JULIEN DE ROSA / AFP)
Foto: JULIEN DE ROSA / AFP Fachada da catedral de Notre Dame em 2024, após a restauração

Notre-Dame de Paris tem vinte sinos. Todos lindos, em banho de loja. Andavam calados, nos últimos cinco anos, depois do incêndio que quase destruiu a catedral.

Passaram por um tratamento especial, no hospital dos sinos — um atelier de fundição, especializado em ajustes harmônicos e acústicos. O maior e o principal é Emmanuel — sim, cada sino tem nome. Em geral, de santo ou de alguém que marcou a vida da igreja.

Com treze toneladas, Emmanuel é o chefe de sinos mais famoso da França, também da Europa. Só dobra em ocasiões especiais: por exemplo, Natal, Páscoa, eleição ou morte de um papa.

Também em dois momentos importantes para o Planeta — e aí Emmanuel caprichou na força do badalo. Em 1918 e em 1945, anunciou a paz entre as nações, no fim das duas guerras mundiais. Aliás, de guerras e revoluções, Emmanuel tem o que contar.

É um sobrevivente da Revolução Francesa, quando os sinos da Notre-Dame foram retirados, quebrados e fundidos. Só ele, impávido, permaneceu no lugar — provável, grande demais para a força dos braços revoltosos.

Emmanuel dobrou e repicou recentemente, é claro, na reabertura da Notre-Dame. Quando ele toca, badalam também o Marcel, o Gabriel, o Denis, o Étienne, o Benoît, o Maurice.

Depois, guarda-se para grandes ocasiões. Os companheiros garantem o trabalho de ritmar a vida, de Paris. Dão as horas do dia, avisam as missas e badalam para lembrar os dias festivos da história da França.

Os sinos de Notre-Dame mantêm, assim, o papel glorioso dos sinos, quando funcionavam como estação de rádio, nas cidades. No passado, anunciava os nascimentos e as mortes — fazendo a diferença no toque, se o defunto era criança, homem ou mulher. Também as tempestades, incêndios, enchentes. Ajudavam os barcos a voltarem para casa.

Instrumento de música e agregador, é também um símbolo — a voz sonora de Deus? Desde a Idade Média são batizados, bentos e perfumados com incensos, para soltarem do metal a “voz que procura os viajantes” — a frase dos sinos de Notre-Dame.

Em Portugal e no Brasil, a tradição dos sinos vai desaparecendo. Não se morre mais como antes. No tempo da poetisa Cora Coralina (1889-1985): “ninguém descia à cova sem sinal de um sino”. Hoje, entramos e saímos do mundo sob o silêncio dos sinos e confusos em meio à falação das redes sociais.

Mas, o Natal está à porta, quem sabe não teremos a sorte de ouvir um badalar genuíno, na percussão do bronze, de novo? Terei de ir mais longe, em busca de uma voz assim.

Aqui perto de casa, há décadas o sino da igreja marcava as horas dos dias e celebrava as datas importantes. Eu à janela, nem precisava de relógio. Calou-se, em definitivo, este mês — justo em dezembro. Provável, eu suspeito, reclamação da vizinhança.

A voz do sino lembrava-me da vida, em comunidade. Sabíamos das horas, juntos. Agora, silêncio. Agora, vazio. Algo se desligou entre mim e os outros.

Será substituído, quem sabe, por um frio sistema de som. Só a potência de Emmanuel, em Paris, tem a garantia de continuar a acordar os que sonambulam, pela vida — véem, véem, véem. O pequeno sino português saiu de cena, aposentado. E a saudade dele vai encher o meu Natal.

Foto do Ariadne Araújo

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