Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Uma madrugada, deitado ou sentado em um fio de pedra, à porta da sede da poderosa Agência para Integração, Migrações e Asilo, AIMA, em Lisboa. Todos os dias do ano, a rotina de centenas e centenas de estrangeiros em Portugal, para se obter, às vezes, uma simples informação sobre documentos
Foto: Pexels/Marta Branco
Passaporte europeu
Desespero leva-nos a fazer muita coisa nesta vida. Ao fim do expediente da Agência para Integração, Migrações e Asilos (AIMA), em Lisboa, forma-se rápido todos os dias uma nova fila, já para o dia seguinte. E ela não para de crescer. Espicha feito cobra pelo quarteirão, madrugada adentro.
E, pela manhã, quando o órgão (que decide sobre a vida dos estrangeiros em Portugal) reabre outra vez as portas, tem-se de chamar a polícia. Na multidão, semana passada, à porta da AIMA, estava Cristina, uma brasileira de Fortaleza, minha testemunha privilegiada para esta crônica.
Como ela, milhares de estrangeiros com títulos de residência vencidos, ameaçados de perda de emprego, ou prisão por ilegalidade. Em Portugal, todos estes milhares de processos estão atrasados.
Telefonar para a AIMA, perda de tempo. Ninguém atende. Enviar email, tampouco. Contratar advogado, não ajuda — o órgão não responde a ninguém. Único jeito de se saber algo sobre a situação da papelada, sujeitar-se a dormir na calçada de Lisboa e conseguir uma das poucas senhas distribuídas, cada dia.
Para Cristina, que mora no interior do país, foi o único jeito. A moça faz parte do grupo de portadores de títulos de residência pela Comunidade dos Países de Língua portuguesa (CPLP). Pendurados também, há meses. Sem cartão de residência, não se faz nada em Portugal. Aliás, nem se permanece em Portugal.
O cartão pela CPLP, diga-se, um papel numa folha A4, não tem validade para a União Europeia. O que significa, só vale internamente. Vale pouco, certo, mas ajuda aos que adquiriram esse direito — já não mais possível. Melhor com ele do que nada.
Fizeram a fila junto com Cristina centenas de outros estrangeiros, cada um com o seu cada qual problema. As senhas são distribuídas às sete da manhã, por um vigia — apenas para os 130 primeiros. O resto vai embora sem nada, quem sabe voltar na madrugada seguinte, tentar ainda mais cedo.
Distribuídas as senhas, fica-se sabendo a hora em que se poderá entrar pela grande porta da AIMA. São três grandes blocos de horas: o das 8h30, o das 11h30 e o último, às 13h30. Só em Lisboa tem-se esta sofrida chance de se falar com alguém.
A revolta dos que não conseguem senhas, ou dos que chegam bem dormidos, às 8 horas da manhã, ignorantes da tal necessidade de madrugar. A polícia vem todas as manhãs, esfria os ânimos e enxota os fura-filas.
Uma humilhação invisível — dos que dormiram na fila, dos que voltam para casa — não sai nos jornais, nem ninguém quer saber. Quando, por um acaso, há notícias, ela vem embalada em eufemismos, a palavra “constrangimento”. Não sei, digam lá: passar uma noite acordado, debaixo de chuva, se a chuva cai, ou no frio, de frias madrugadas, espremido numa calçada de Lisboa, em meio a outros desesperados, é um mero constrangimento?
E, no entanto, esta é a realidade — bem triste e desumana. Não adianta ter dinheiro, ter a pele branca, ser falante de português, ter uma banca de advogados — supostas “qualidades” para alguns. Somos todos aqui estrangeiros. Independente de qualquer coisa.
Com a subida da direita e da extrema direita, a coisa tende a piorar. Trabalhadores estrangeiros, que ajudam a renovar um país velho e doente, que cotizam para a Segurança Social, são vistos como uma ameaça. De tanto se repetir esta mentira deslavada, a população acaba por acreditar.
Não só sob ameaça de expulsão, na dificuldade de acesso a documentos legais e à nacionalidade, com medo de que seus direitos adquiridos sejam revistos, vinculados a falsas pesquisas sobre violência — ainda há mais.
Na Espanha, o partido de extrema direita (VOX) grita nos plenários que estrangeiros ameaçam o estado social porque são pobres. Sim, para a extrema direita, estrangeiros, pobreza, violência, problemas sociais e econômicos de um país estão dentro do mesmo saco. A Espanha é colada a Portugal, sabemos. Sente-se lá e cá a reverberação destas acusações levianas, falsas e criminais para com os estrangeiros.
Estrangeiros, tratados a pão e água, nas calçadas de Lisboa e de Madrid. Dói, deixa-nos triste e sem esperança neste mundo.
Nos fios de pedra para onde nos jogam (nem todos os portugueses e espanhóis são xenófobos e preconceituosos, diga-se, tem muita gente contra este tipo de coisa) resta-nos fazer barulho, denunciar e fazer barreira a este tipo de discurso. Razão desta crônica, e de outras que virão, sobre a situação dos brasileiros (e outros estrangeiros) em Portugal. Bem hajam.
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