
Linguista e semioticista, professora da Universidade Federal do Ceará, com doutorado na Universidade de Liège (Bélgica) e pós-doutorado na Universidade de São Paulo
Linguista e semioticista, professora da Universidade Federal do Ceará, com doutorado na Universidade de Liège (Bélgica) e pós-doutorado na Universidade de São Paulo
A descriminalização do aborto segue sendo no Brasil assunto muito sensível. Pautado no STF por sua eventual inconstitucionalidade, o tema do aborto já recebeu dois votos, ambos para sua descriminalização nas primeiras 12 semanas de gestação. O contexto desses votos é muito elucidativo da complexidade da questão. Tanto Rosa Weber, em 2023, quanto Luís Roberto Barroso, na semana passada, fizeram desses votos as últimas ações de seus mandatos no STF. Em outras palavras, votaram e saíram, não se sujeitando às possíveis repercussões, que invariavelmente viriam.
O voto de Barroso surge também em momento particularmente sensível: uma semana depois da morte de Paloma Alves Moura, no Hospital e Maternidade Tricentenário, em Olinda (PE). Paloma chegou ao hospital com sangramento intenso, mas teve seu atendimento prioritário condicionado à realização do exame de beta HCG (utilizado para detectar gravidez).
A suspeita de que Paloma tivesse realizado um aborto clandestino levou a equipe do hospital a retardar seu atendimento por longas horas, segundo relato de amigas presentes, o que levou à sua morte por anemia profunda.
Acontece que Paloma não estava grávida, mas tinha um histórico de miomas no útero, que levaram ao sangramento. E isso diz muito da perversidade de uma sociedade que, ao criminalizar a interrupção da gravidez, trata o assunto como questão moral e política, com sua ocorrência sempre por baixo dos panos, atingindo, portanto, as classes sociais de formas diferentes.
É notório que os mais ricos têm acesso a aborto seguro em clínicas altamente qualificadas, enquanto mulheres pobres, no mais das vezes negras, estão sujeitas a condições aviltantes, abortos caseiros e risco direto de vida. Assim, uma questão de saúde pública acaba por se tornar questão moral, religiosa e coloca as pessoas em vigilância umas das outras, gerando situações absurdas e insensatas como a morte de Paloma Moura.
Afinal, e se Paloma estivesse grávida? Quem dá àqueles que são responsáveis pela preservação da vida o direito de julgar as mulheres que chegam a eles? Em que ponto agentes da saúde se tornam juízes e carrascos daquelas que buscam tratamento e amparo? Como apontou Rosa Weber em seu voto, a prisão pela prática do aborto é "irracional sob a ótica da política criminal, ineficaz do ponto de vista da prática social e inconstitucional da perspectiva jurídica".
O que a criminalização produz é um recrudescimento do controle sobre os corpos das mulheres, uma vigilância e o julgamento de suas ações e escolhas. Cabe agora aos ministros que restam "assegurar que cada um possa viver a sua própria convicção", em outras palavras, garantir a todas as mulheres autonomia sobre seus corpos.
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