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"Madalena" alia retrato tridimensional de jovem trans a reflexões sociais
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

"Madalena" alia retrato tridimensional de jovem trans a reflexões sociais

Filmado no Mato Grosso do Sul, "Madalena", de Madiano Marcheti, acompanha os impactos da morte de uma jovem travesti em três personagens desconhecidos entre si
Tipo Opinião
Amiga de Madalena, Bianca (Pamella Yulle) 
é uma das 'protagonistas' que o longa acompanha (Foto: reprodução)
Foto: reprodução Amiga de Madalena, Bianca (Pamella Yulle) é uma das 'protagonistas' que o longa acompanha

Apesar de aspectos aparentemente convidativos e tranquilos, a sequência de abertura do longa "Madalena" é marcada por uma sensação de suspensão e estranheza, mesmo com o céu azul e aberto, o verde vivo da plantação e os planos que variam entre um grupo de aves que se alimenta no local e algumas máquinas agrícolas pesadas. O som ambiente se limita ao vento, ao farfalhar das folhas e ao barulho insistente de motor. A sequência se estende ao ponto do olhar estranhar, culminando na revelação de um corpo entre os pés de soja. A partir dali, o filme se desenrola em três "episódios" que mostram os impactos da morte da jovem, a Madalena do título, em pessoas ligadas de diferentes formas e tempos a ela.

Estreia do diretor Madiano Marcheti em longas-metragens, a obra se estabelece como uma espécie de "filme-coral", como são conhecidas as tramas cinematográficas nas quais diferentes histórias se cruzam, sem protagonismos definidos — ou pelo menos é assim que o "modelo" estabelece.

"Madalena" subverte, porém, as características do tipo de produção do qual se aproxima, criando um filme protagonizado pela personagem-título cuja presença se dá, principalmente, pela ausência e pelos vestígios — físicos e emocionais — que ela deixa como marcas no caminho. Sem se sustentar em ligações surpreendentes, como por vezes ocorre em tramas "coral", o longa desenvolve as três histórias a partir da presença/ausência da jovem.

Também diferentemente do que seria mais óbvio, o filme não faz um retrato "investigativo" nem sobre a história própria Madalena, nem das circunstâncias que a levaram a ser morta. O que interessa, aqui, não é uma exploração da dor, mas as forças da permanência da jovem que ecoam em Luziane (Natália Mazarim), Cristiano (Rafael de Bona) e Bianca (Pamella Yule). Os três jovens vivem realidades distintas em Mato Grosso do Sul e são atravessados por Madalena em diferentes níveis e por diferentes sentimentos.

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A narrativa se estrutura a partir de uma divisão da obra em três segmentos, com cada um sendo "protagonizado" por um dos personagens. Luziane é uma jovem que leva uma vida mais simples, se inserindo nos altos circuitos da cidade por meio de bicos como modelo e hostess de uma boate. A relação dela com Madalena não é especificada, mas passa por dinheiro e uma intimidade sugerida.

Cristiano é um jovem rico, filho de uma candidata à senadora e membro de uma família ligada ao agronegócio que, inclusive, é a dona da plantação na qual Madalena é encontrada morta. Finalmente, Bianca é uma travesti cuidadora de idosos que faz parte de um grupo de amigas da jovem.

O longa alia cenas mais cotidianas de cada um com sequências mais atmosféricas e sugestivas, que reforçam o sentimento de suspensão da abertura do longa. Com a direção de Madiano imprimindo um peso quase de suspense nestes momentos, "Madalena" se aproxima do cinema de gênero de maneira efetiva e, também, não óbvia.

Mesmo com a morte da jovem sendo estabelecida de partida para o público, o fato não é sabido pelas outras personagens e o filme as mostra sendo colocadas em confronto com o desaparecimento dela.

Sequências como a que Luziane visita a casa de Madalena em dois dias diferentes e encontra a mesma cena — nenhum sinal de vida além da mesma música, "Piraretã", de Tetê Espíndola, ecoando em volume alto — ou a que Cristiano faz uma inspeção na plantação de soja da família têm conclusão incontornável, mas são construídas com uma dose precisa de tensão baseada, justamente, no conhecimento prévio do público sobre a situação da personagem-título.

'Madalena', primeiro longa de Madiano  Marchetti, estreou no Festival de Roterdã deste ano
Foto: reprodução
'Madalena', primeiro longa de Madiano Marchetti, estreou no Festival de Roterdã deste ano

O terceiro segmento é, de longe, o mais singular — e bonito — da produção, acompanhando o olhar de Bianca, amiga trans de Madalena. Sob um viés mais reflexivo e afetivo, o filme se despe da densidade e opta por um caminho distinto, mas ainda ligado a um campo fantástico e algo sobrenatural.

Com um grupo de amigas, Bianca vai para a casa de Madalena e, lá, elas arrumam o espaço e ficam com pequenos objetos dela, "heranças" de memória. Em outro momento, um grupo menor faz uma viagem de carro em direção a um pequeno paraíso natural da região, onde tomam banho de rio e aproveitam a tranquilidade.

 

Ambos os momentos são marcados, então, pelo desfiar de memórias e rituais de carinho empreendidos pelas amigas de Madalena, elas mesmas também figuras como a personagem-título, desviantes da lógica principal que norteia a região — representada, à sua maneira, pelos contextos de Luziane e Cristiano nos segmentos anteriores.

Fugindo do óbvio, enfim, "Madalena" traça o retrato específico de uma personagem que, mesmo quase sempre ausente de maneira concreta da produção, deixa marcas de presença importantes. Além disso, o filme consegue criar paralelos bem construídos entre as especificidades da protagonista e questões sociais ligadas a ela, fugindo do formulaico e apostando na singularidade e tridimensionalidade da jovem para estabelecer humanidade e empatia.

Madalena

Quando: estreia hoje, 9

Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81)

De Madiano Marcheti. 85 min.

Foto do João Gabriel Tréz

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