
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Talvez seja uma impaciência crônica. Ou um desequilíbrio hormonal em surdina. Pode ser também neurose urbana de cidadão educado, mas à beira do colapso. Só sei que, de uns tempos pra cá, tenho me irritado com pequenas coisas do cotidiano.
O fato é que ando me impacientando com trivialidades irrelevantes, sem consequências reais. Aliás, sem nem efeitos colaterais menores — a não ser uma vontade quase incontrolável de dizer um desaforo e a necessidade de conter pensamentos intrusivos.
E parece que quanto mais você se enerva com isso, mais situações aparecem para testar sua paciência.
Aconteceu uma dessa ontem. Acordei tarde e estava apressado para sair de casa. Reunião importante.
Arrumei-me às pressas, tomei rapidamente um gole de suco (café não, que só mancha os dentes e causa azia) e chamei o elevador. Ele estava a poucos andares de cima e isso me confortou. Vai dar tudo certo, dará tempo – pensei.
Aí o elevador não veio. Ouvi vozes pelo vão. É a vizinha, com sua voz melosa e em falsete, pedindo por favor que a cria, de uns três anos, entre no elevador. A pequena monarca faz capricho. Não quer ir para a escola hoje. A mãe explica que a imperatriz nanica brincará muito.
A déspota recém-saída das fraldas faz birra. Ouço os muxoxos. A mãe insiste. Tenta convencer a Rainhazinha do drama e, ante nova recusa majestosa, aparentemente draga a Majestade do caos para dentro do elevador.
As encontro com caras amarradas. A General da birra está no canto. Cabeça baixa, braços roliços cruzados e boca em forma de bico. A mãe, de sorriso amarelo, pede desculpas, perguntando em confirmação se sei “como criança é, né?”. Minha vontade é dizer que sei como pais moderninhos se deixam controlar por meninas mimadas, mas apenas sorrio e olho de novo para o relógio.
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Respiro fundo, com orgulho de mim mesmo. Enfrentei esse momento de irritação com altivez e educação. Agora é só aguardar chegar no segundo subsolo, pegar o carro e sair para o trabalho.
Só que antes disso tinha o primeiro subsolo. É lá que fica a carruagem da Vossa chatice. A porta abre. A baronesa do parquinho permanece grudada ao fundo do elevador, de cabeça baixa e pernas duras. Agora ela se segura na barra de aço. A mãe insiste. Ela resiste. A mãe se abaixa e explica que o moço quer ir trabalhar, tentando soltar a mão da menina.
O moço, que presumo ser eu, tem ímpetos de morder a barra. A marechal de nariz escorrendo agora apela para o choro. Choro não, que choro é coisa sentida e verdadeira. Aquilo estava mais para um berreiro performático, dramaticamente denso e fruto de ensaios diários.
O escândalo era tamanho que parecia que tinha perdido a guarda do ursinho na Vara da Infância dos bonecos. Chorava como atriz mexicana em cena de revelação de paternidade: convulsivo, dramático e meticulosamente ensaiado.
O choro subia, esperava aplauso invisível, e voltava ainda mais forte. Tudo isso entrecortado com balbucios de “Euuu nãaaaoo quéeeeerooo nãããã”, com total ausência de lágrimas, mas com direito a catarro escorrendo no nariz e fungados profundos.
Pensei em dar uma dica cinematográfica, como um coreógrafo emocional. Algo como, “ô, tá faltando um tremor no queixo, quem sabe uma pausa para olhar sofrido e arremata em falsete”, mas me contive.
Finalmente a mãe a pegou nos braços à força para deixarem o elevador. A menina esfrega a mão com catarro na minha camisa. A genitora, antes de sair definitivamente, ainda para e olha para um lado e para o outro, como se fosse possível algum carro passar logo ali.
Respirei fundo, sozinho no elevador, encarando meu reflexo como quem busca forças para não bater a cabeça naquelas paredes de aço. O aroma vago de choro encenado e Toddynho seco grudou na alma.
Cheguei ao carro. Lembrei que a pasta de documentos estava na cozinha. Olhei para trás. E o elevador fechava as portas lentamente, em breve sorriso.
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