
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Tenho um pequeno pacto comigo mesmo: duas vezes por semana, quando tudo dá certo, mergulho na piscina do prédio e nado alguns metros como se estivesse em missão diplomática com Netuno. Sempre escolho os horários menos procurados e espero nadar sozinho. É minha forma de meditação clorada.
Um antissocial aquático, confesso. Nada de churrasco, conversa de borda ou hidroginástica barulhenta. Gosto do silêncio líquido e do som das bolhas no meu ouvido. Estava num desses dias de paz submarina quando a invasão sênior-infantil se anunciou em chinelos.
Não eram só passos — eram estalidos decididos de uma dupla que parecia veterana de muitas tardes na beira d’água: uma senhora de uns 80 anos, firme como quem já enfrentou três maridos e várias mudanças de moeda, e uma menina de uns dez ou onze, gordinha, embalada em boias que mais pareciam salva-vidas de bote inflável, óculos de natação mal ajustados ocupando metade do rosto, e uma toalha da Barbie amarrada como capa de super-heroína sedentária.
Observei do canto do olho — sem interromper meus movimentos de crawl autoimposto — enquanto as duas se instalaram na borda da piscina como quem monta um quartel-general. E então veio a interrupção:
— Psiu, moço, será que dá pra você nadar um pouquinho mais pro lado? É que minha neta só entra pela escadinha, sabe como é...
Ora, a piscina tem dimensões generosas. Não é olímpica, claro, mas acomoda cinco adultos e uma vaquinha inflável com alguma dignidade. A escadinha em questão era meu ponto de virada, mas lá fui eu, desviando minha rota como uma lancha educada contornando um pato desavisado.
A menina desceu. Ou melhor, fez o processo de entrada em câmera lenta: degrau por degrau, como se a água fosse morder. Agarrada às boias e à escada com a mesma convicção, ficou ali, batendo as perninhas roliças com esforço mínimo e girando em círculos, como uma lua aquática fora de órbita.
Enquanto isso, eu nadava encurtado, podado, quase pedindo desculpas para a água. E comecei a refletir — como todo nadador frustrado faz. Que geração é essa? Tudo precisa de rodinha, de tutorial, de três likes e um emoji de incentivo antes de começar.
Uma criança de dez anos com mais equipamento do que o Titanic e ainda incapaz de se afastar da escada. Cadê o espírito aventureiro? O salto de ponta torto? O joelho ralado?
Irritado, desisti da sessão de natação. Saí da piscina como um Aquaman frustrado, me perguntando quando foi que ficamos todos tão frágeis. Foi então que percebi.
Enquanto a menina girava feito hélice avariada, a senhora já estava de pé. Tênis no chão, vestido de algodão tirado com uma fluidez ensaiada. O maiô preto, cavado, revelava mais história do que ousadia.
Soltou o coque com um gesto dramático e — sem boia, sem hesitação, sem misericórdia — me lançou um olhar entre lânguido, sensual e levemente perigoso.
Desconcertado, quase escorreguei ao pegar minha toalha. A ideia era desaparecer antes que mais alguma surpresa surgisse dali.
— Psiuzinho — disse a senhora, já atrás de mim, com aquela voz doce e grave que só os discos de vinil ainda lembram. Felina, passou a mão leve pelas minhas costas, e completou:
— Vi que você nada direitinho… Sempre gostei de homens que cortam a água com precisão.
— Hã... oi?
— Se tiver um tempinho, quem sabe me ensina umas braçadas?
Tentei responder algo, mas o cérebro optou por reiniciar.
— Sua neta ali tá quase se afogando, viu?
Foi minha salvação. Ela se virou com a desenvoltura de quem tem plena consciência do efeito que causa, deu um mergulho em arco limpo, silencioso, e atravessou a piscina com técnica invejável.
Emergiu do outro lado com os cabelos colados ao rosto, os olhos semicerrados — não por miopia, mas por cálculo estratégico. E nadou. Em estilo livre, costas e peito.
Olhei pra menina, ainda agarrada à escada como se fosse seu porto seguro original. E olhei pra senhora. Ou melhor, pra atleta. Ou melhor ainda: para a sereia octogenária que fingiu estar ali só pela neta, mas claramente era quem mandava na água — e, talvez, no mundo. Realmente, a gente não entende nada das gerações.
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