Logo O POVO+
A supervisão do carimbo
Foto de Danilo Fontenelle
clique para exibir bio do colunista

Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

A supervisão do carimbo

Tudo começou quando um paciente, com a calma de quem comenta o tempo, apontou: no carimbo do psicanalista estava escrito "Psiquiantria" em vez de "Psiquiatra". Aí o psicanalista procurou supervisão
#ParaTodosVerem: pessoa com roupa médica verde e estetoscópio no pescoço carimba documentos sobre uma mesa. Em primeiro plano, há um frasco transparente com cápsulas (Foto: Pexels/Photo By: Kaboompics.com)
Foto: Pexels/Photo By: Kaboompics.com #ParaTodosVerem: pessoa com roupa médica verde e estetoscópio no pescoço carimba documentos sobre uma mesa. Em primeiro plano, há um frasco transparente com cápsulas

Para quem não é do meio, supervisão em psicanálise é como um pit stop para a mente do terapeuta: ele leva seus casos para um colega mais experiente, que, com ouvidos atentos e sobrancelha arqueada, ajuda a enxergar detalhes que o outro não percebeu — sejam eles sutis lapsos do inconsciente ou um simples tropeço da vida prática.

É um espaço sério, sim, mas que às vezes se vê invadido por episódios tão inusitados que fariam Freud largar o charuto para rir. Por vezes, psiquiatras são também psicanalistas. Enfim, tudo é terapia. Ou não.

Tudo começou quando um paciente, com a calma de quem comenta o tempo, apontou: no carimbo do psicanalista estava escrito “Psiquiantria” em vez de “Psiquiatra”. Aí o psicanalista procurou supervisão.

— Muito bem, o que temos para hoje? — perguntou o supervisor, ajeitando os óculos e lançando aquele olhar de coruja para o colega.

— Não sei se foi algo da massa do inconsciente, mas aconteceu...

— ...

— Talvez uma livre associação desmedida, um afeto desproporcional, ou até um fragmento de sonho que conseguiu emergir...

— Hum.

— Quem sabe um ato falho...

— ...

— Ou um lapso chistoso, desses que escapam...

— Do que você diab... digo, você está falando de quê mesmo?

— Do carimbo.

— Carimbo...

— Sim, do carimbo errado.

— Carimbaram você com algum rótulo indesejado? Isso acontece...

— Hein?

— Foi sua mãe? De novo?

— Não, amigo, estou falando do meu carimbo.

— Ah, você carimbou alguém.

— Não. Quer dizer... se bem que, ultimamente, ando meio crítico mesmo...

— Então está trazendo para a supervisão essa sua pulsão carimbística...

— Não tinha pensado nisso...

— Você se considera um carimbista, tipo os de cartório? “Reconhecendo” a firma das pessoas, o dia todo?

— Agora que você falou...

— Vamos elaborar: você se queixa de carimbar as pessoas. Como isso acontece?

— Na verdade, eu quis trazer o fato de não ter percebido o erro no meu carimbo. Como é que eu não vi isso durante anos?

— Erro?

— Sim, da escrita da profissão.

— Erro na profissão?

— Não, no nome da profissão. O carimbo está errado.

— Hum... você não se sente apto a carimbar?

— Rapaz, estou falando do carimbo físico, o que a gente usa para receitar.

— O que é que tem?

— Está errado. Tá escrito “Psiquiantria” em vez de “Psiquiatra”. Com N, de “antro”.

— É natural um desejo reprimido se expressar assim...

— Mas não fui eu que fiz o carimbo! O desejo por antros seria, então, do cara da loja de carimbos?

— Você acha errado?

— O quê?

— Sentir desejos por antros?

— Antro é antro, quem quiser que vá. Estou questionando é como não notei o erro. Isso me soa melancólico.

— Soou ou “Sou eu”?

— Acho que, no fundo, todo mundo tem um “N” perdido em si.

Foto do Danilo Fontenelle

A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?