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O pano molhado criou raiz
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O pano molhado criou raiz

— Já falei. Lavar não. Só passar um pano molhado. Um paninho. Bem digno. Microfibra, inclusive
ParaTodosVerem: sombra de grupo de seis homens (Foto: Pexels/Afta Putta Gunawan)
Foto: Pexels/Afta Putta Gunawan ParaTodosVerem: sombra de grupo de seis homens

— Oxe, o que é isso? — perguntou ela, levantando as costas e esfregando os olhos.

— O que é isso, o que?

— Aonde você vai tão cedo?

— Só lá embaixo.

— Uma hora dessas? E esse balde? Não me diga que...

— Sim, vou lá rapidinho, é vapt-vupt.

— Você vai lavar o carro, de novo? — ela perguntou com a voz entre o espanto e o ultraje, como quem flagra o marido assaltando o próprio condomínio.

— Já falei. Lavar não. Só passar um pano molhado. Um paninho. Bem digno. Microfibra, inclusive.

— Você viu que, depois da primeira vez, o síndico colocou aquele lembrete ameaçador nos elevadores: “Lembre-se: há câmeras”.

— Ele é um dissidente do movimento. Mas, em breve, estará conosco — projetou com confiança de quem lidera hordas secretas.

— Que movimento, criatura?

— A gente montou um grupo no WhatsApp.

— A gente quem? Que grupo?

— Sim. A maioria dos homens do prédio. Se chama RAIZ: Rapazes Autônomos, Independentes e Zigurates.
Ela piscou devagar. Muito devagar.

— Zigu... o quê?

— Zigurates. Aqueles templos sumérios. Em degraus. Uma metáfora.

— Metáfora pra quê?

— Pra jornada masculina em direção à autossuficiência. Cada degrau é uma tarefa simples que a gente reaprende a fazer sem chamar alguém do aplicativo. A gente quer ser útil. Fazer parte da manutenção do que é nosso. Nos reconectar com o verniz da vida. Ser homem raiz de novo.

— Reconectar com o verniz da vida, passando pano em carro, Arnaldo?

— Sim. E não foi só isso. Conversei com o Cléber do 402. Ele também deu banho no Bruce, aquele buldogue, pela primeira vez desde 2015. E o Renato, do 603, trocou a lâmpada da cozinha. Com as próprias mãos. Sem chamar eletricista.

— Meu Deus... E rapazes? Todos vocês já passaram dos 50... e Zigurate? Não tinha outro nome, não?

— Você acha que é fácil encontrar algo que comece com Z?

— Arnaldo... você acha mesmo que passar pano no carro te transforma num sumério?

— Não. Mas me transforma num homem menos dependente do seu tio Hermínio, que cobra oitenta reais pra trocar uma resistência de chuveiro.

Ela cruzou os braços.

Ele sorriu com serenidade. Pegou o boné e o balde.

No começo, tudo parecia só uma excentricidade de homens na crise de meia-idade que, em vez de resultar numa moto ou num curso de pastelaria online, se manifestou em forma de pano molhado e sabão neutro.

E as esposas deixaram por menos. Mas não parou por aí.

Na semana seguinte, o Freitas instalou sozinho um varal retrátil. Sozinho. Sem YouTube. Sem sogro. Só com uma trena e o espírito de liberdade batendo no peito.

Dias depois, o Renato foi visto descendo com uma caixa de ferramentas e um olhar confiante de quem sabia o que fazer com ela. E sabia mesmo: ajustou o chuveiro do 603 e ainda ajudou o Sílvio a montar uma estante de loja online sem xingar.

O grupo RAIZ — Rapazes Autônomos, Independentes e Zigurates começou a ganhar força. A logo era um rolo de fita isolante envolto numa auréola. O lema: “Quem não se molha, não se liberta”.

As reuniões eram discretas, sempre na garagem ou na área da churrasqueira. Nada de cerveja, nem papo furado. Só homens redescobrindo o prazer de desentupir um ralo ou alinhar uma porta de armário com destemor.

As esposas começaram a se preocupar.

— Ele tá estranho, Cláudia — disse a Vanessa, do 602. — Não pergunta mais o que a gente vai pedir no aplicativo. Ele mesmo esquentou o almoço ontem.

— O meu fez café. Sem cápsula — disse outra, com os olhos arregalados. — Coou. Naquele tipo de filtro de pano que a avó dele usava.

— O que tá acontecendo com esses homens?

Arnaldo, agora líder espiritual do movimento, já preparava o próximo encontro: uma oficina prática de como identificar fios no quadro de luz sem levar choque. O nome do módulo era “Entre a fase e o neutro: a iluminação do eu”.

Foto do Danilo Fontenelle

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