Logo O POVO+
A revolução do pano molhado
Foto de Danilo Fontenelle
clique para exibir bio do colunista

Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

A revolução do pano molhado

— Oxe! Quando a gente era lascado, não passava as tardes de sábado lavando o carro e ainda polindo? Já esqueceu, foi? E os vizinhos ajudavam até! E uma cervejinha fechava a manhã
Uma mão esfrega a grade de um carro preto com uma esponja amarela cheia de espuma. O veículo está coberto de sabão, indicando que está sendo lavado ao ar livre (Foto: Pexels/Photo By: Kaboompics.com)
Foto: Pexels/Photo By: Kaboompics.com Uma mão esfrega a grade de um carro preto com uma esponja amarela cheia de espuma. O veículo está coberto de sabão, indicando que está sendo lavado ao ar livre

— Para onde você vai desse jeito?

— Que jeito?

— Desse aí... essa camisa não é da eleição de 86?

— Sou fiel a ideais...

— Com sua barriga de fora, tá lindo de baby look... E essa bermuda? Eu não tinha jogado fora semana passada?

— É de estimação... resgatei.

— E esse balde?

— Vou lavar o carro.

— Não entendi. Você vai levar esse balde para o posto?

— Eu mesmo vou lavar aqui na garagem.

— Você? Lavar? Aqui?

— Sim, o carro.

— Mas o condomínio não permite.

— Não vou lavar, lavar mesmo... vou só passar o pano molhado.

— Por que você não leva logo no posto?

— Não está tão sujo assim... só por fora mesmo. Tudo poeira. Sai numa mãozinha rápida.

— Mas, querido... e os vizinhos?

— Não chamei. Vou lavar eu mesmo.

— Digo... o que é que vão falar? Aqui, só os motoristas fazem isso.

— Também sou motorista. Tenho carteira A e B.

— Vão dizer que estamos passando dificuldades, que não temos nem dinheiro pra mandar lavar o carro.

— Eu não tenho é tempo de tirar tudo de dentro do carro, ficar esperando e depois arrumar tudo...

— Você não tem vergonha?

— Oxe! Quando a gente era lascado, não passava as tardes de sábado lavando o carro e ainda polindo? Já esqueceu, foi? E os vizinhos ajudavam até! E uma cervejinha fechava a manhã.

— Isso foi há muito tempo. Agora, você nem precisa disso. Nem tem mais idade.

— É coisa de dez minutinhos e tá tudo resolvido.

— Você vai fazer isso agora? Deixe pra amanhã... Você pode fazer isso bem de manhazinha, quando todos ainda estiverem dormindo...

— Oxe, que besteira.

— Deixe que eu mesma levo no posto.

— De jeito nenhum... agora é questão de honra.

Manteve a palavra. Fez apenas a concessão de deixar a operação limpeza automobilística domiciliar para o dia seguinte.

Acordou às 5h. Vestiu o uniforme do dia anterior. Encheu o balde de água e colocou um pouco de sabão em pó — só um pouquinho de nada. Municiou-se de vários panos de chão e uma flanela.

Ainda estava escuro quando chegou à garagem. Silêncio total. Ninguém à vista.

Levou pouco mais de dez minutos para passar os panos molhados pelo carro inteiro, em movimentos vigorosos. Sentiu-se jovem novamente. Dono de seu carro e de seu destino.Não dependia mais de ninguém para resolver uma coisa tão simples. Animou-se e até tirou a areia dos tapetes.

Quando já estava terminando os últimos retoques nos retrovisores, o elevador abriu. Desceu o síndico.
Fora avisado pelo porteiro de que algo estranho estava acontecendo no subsolo 2. Com cara de quem flagrou um crime ambiental, apenas apontou para a câmera e pigarreou, como quem diz:

— Será registrado no livro de ocorrências.

E ele ali. Suado, de bermuda molhada. Com uma flanela na mão. Fingiu-se de sonâmbulo. Entrou no elevador, tateando o botão do andar.

Virou notícia no prédio e arredores. Um senhor passou pano no seu próprio carro. Um herói cotidiano, cm balde e sabão em pó, lutando pela autonomia de sua rotina. Rapidinho.

Por incrível que pareça, em pouco tempo, uma epidemia de sonambulismo e nostalgia impregnou o prédio.
Vários começaram a fazer o mesmo em seus carros, a banhar seus próprios cachorros, limpar suas geladeiras, arrumar suas camas.

Tudo rapidinho. Sem terceirização. E os vizinhos que moram nas casas ao lado passaram — pasmem — a varrer suas calçadas. (continua semana que vem)

Foto do Danilo Fontenelle

A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?