
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
— Para onde você vai desse jeito?
— Que jeito?
— Desse aí... essa camisa não é da eleição de 86?
— Sou fiel a ideais...
— Com sua barriga de fora, tá lindo de baby look... E essa bermuda? Eu não tinha jogado fora semana passada?
— É de estimação... resgatei.
— E esse balde?
— Vou lavar o carro.
— Não entendi. Você vai levar esse balde para o posto?
— Eu mesmo vou lavar aqui na garagem.
— Você? Lavar? Aqui?
— Sim, o carro.
— Mas o condomínio não permite.
— Não vou lavar, lavar mesmo... vou só passar o pano molhado.
— Por que você não leva logo no posto?
— Não está tão sujo assim... só por fora mesmo. Tudo poeira. Sai numa mãozinha rápida.
— Mas, querido... e os vizinhos?
— Não chamei. Vou lavar eu mesmo.
— Digo... o que é que vão falar? Aqui, só os motoristas fazem isso.
— Também sou motorista. Tenho carteira A e B.
— Vão dizer que estamos passando dificuldades, que não temos nem dinheiro pra mandar lavar o carro.
— Eu não tenho é tempo de tirar tudo de dentro do carro, ficar esperando e depois arrumar tudo...
— Você não tem vergonha?
— Oxe! Quando a gente era lascado, não passava as tardes de sábado lavando o carro e ainda polindo? Já esqueceu, foi? E os vizinhos ajudavam até! E uma cervejinha fechava a manhã.
— Isso foi há muito tempo. Agora, você nem precisa disso. Nem tem mais idade.
— É coisa de dez minutinhos e tá tudo resolvido.
— Você vai fazer isso agora? Deixe pra amanhã... Você pode fazer isso bem de manhazinha, quando todos ainda estiverem dormindo...
— Oxe, que besteira.
— Deixe que eu mesma levo no posto.
— De jeito nenhum... agora é questão de honra.
Manteve a palavra. Fez apenas a concessão de deixar a operação limpeza automobilística domiciliar para o dia seguinte.
Acordou às 5h. Vestiu o uniforme do dia anterior. Encheu o balde de água e colocou um pouco de sabão em pó — só um pouquinho de nada. Municiou-se de vários panos de chão e uma flanela.
Ainda estava escuro quando chegou à garagem. Silêncio total. Ninguém à vista.
Levou pouco mais de dez minutos para passar os panos molhados pelo carro inteiro, em movimentos vigorosos. Sentiu-se jovem novamente. Dono de seu carro e de seu destino.Não dependia mais de ninguém para resolver uma coisa tão simples. Animou-se e até tirou a areia dos tapetes.
Quando já estava terminando os últimos retoques nos retrovisores, o elevador abriu. Desceu o síndico.
Fora avisado pelo porteiro de que algo estranho estava acontecendo no subsolo 2. Com cara de quem flagrou um crime ambiental, apenas apontou para a câmera e pigarreou, como quem diz:
— Será registrado no livro de ocorrências.
E ele ali. Suado, de bermuda molhada. Com uma flanela na mão. Fingiu-se de sonâmbulo. Entrou no elevador, tateando o botão do andar.
Virou notícia no prédio e arredores. Um senhor passou pano no seu próprio carro. Um herói cotidiano, cm balde e sabão em pó, lutando pela autonomia de sua rotina. Rapidinho.
Por incrível que pareça, em pouco tempo, uma epidemia de sonambulismo e nostalgia impregnou o prédio.
Vários começaram a fazer o mesmo em seus carros, a banhar seus próprios cachorros, limpar suas geladeiras, arrumar suas camas.
Tudo rapidinho. Sem terceirização. E os vizinhos que moram nas casas ao lado passaram — pasmem — a varrer suas calçadas. (continua semana que vem)
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