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Os novos surfistas do asfalto (ou o Patinete do Apocalipse)
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Os novos surfistas do asfalto (ou o Patinete do Apocalipse)

Um surfista do asfalto tentando não ser atropelado pelo sistema, e pagando caro pra fazer parte dele
Imagem ilustrativa de apoio. Patinetes elétricos da empresa Jet, no bairro Aldeota (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Imagem ilustrativa de apoio. Patinetes elétricos da empresa Jet, no bairro Aldeota

De tempos em tempos, chega um modismo urbano. E, de tempos em tempos, ele vai embora sem deixar saudades — só a conta no cartão.

Lembra quando Fortaleza foi tomada por mudinhas de árvores minguadas, cercadas como se fossem obras de arte, mas que mais pareciam palitos espetados?

A maioria não vingou, e as proteções viraram sucata para recicladores. Depois vieram as estações para minicarros elétricos, que prometiam futuro e vanguarda.

Serviram, no fim, apenas para fotos de propaganda. Teve o tempo de quase toda Washigton Soares com tapumes do metrô e só a grama crescia em seus limites.

Agora é a vez da nova salvação: terceirizar a mobilidade para apps com nomes em inglês e promessas em looping. Eis o patinete elétrico. Pequeno, silencioso, promissor — quase um colibri do trânsito, se colibris fossem financiados por fundos estrangeiros e cobrassem por minuto.

Funciona assim: você baixa o aplicativo (com nome que lembra parque de diversão) e entrega todos os seus dados pessoais como se fosse um ritual de iniciação digital: nome, e-mail, CPF, RG, tipo sanguíneo e, se possível, a alma com reconhecimento facial.

Depois vem o sacrifício financeiro: taxa de desbloqueio + custo por minuto. Se resolver cruzar um bairro inteiro, prepare-se para um empréstimo — ou para um Pix inesquecível, mas ser moderninho nunca foi barato e garante um selfie.

Patinete localizado no mapa, você parte para a caça ao tesouro urbano. Só que o tesouro está com 12% de bateria, largado na sombra de um poste e disputado por dois pombos em guerra fria. Mesmo assim, você persiste.

Chega o momento mágico: escanear o QR code e sentir-se no futuro. Um futuro em que o guidão está torto, o pneu meio murcho e o freio responde com um “talvez”. Mas você sobe. Porque é brasileiro. Porque quer chegar. E porque não parou para pensar se o Uber Moto não sairia mais barato.

Agora, vento no rosto. Você é trendy, livre, quase um vanguardista prafrentex voando baixo — até topar com o primeiro buraco. Postes passam. E as calçadas te olham com ar de reprovação: “Não era pra estar aqui, irmão”. Você finge que não vê.

Mas lembra que não pode trafegar na calçada, nem na pista, nem na contramão, nem — adivinhe — em praticamente lugar algum. No fim, sobra a ciclovia. Isso se ela não estiver ocupada por uma barraca de pastel ou por um caminhão com pisca-alerta e fé.

Você desvia, acelera, desacelera, toca o sino que ninguém ouve, leva buzinada de motoboy e, finalmente, chega ao destino.

Ou quase. Porque agora começa o xadrez da devolução. O app mostra o ponto autorizado, mas ele fica 500 metros depois de uma padaria, de uma lombada e do arrependimento. Dá vontade de largar o patinete ali mesmo, mas o aplicativo berra: “Local não permitido. Sujeito a multa”. E você volta.

Enfim, estaciona o bravo veículo, encerra a corrida e recebe o recibo. O trajeto custou o mesmo que um almoço executivo e teria levado 15 minutos a pé. Mas andar a pé não tem adrenalina, nem multa, nem risco de estatelar-se no chão.

E é por isso que, no fim, o patinete elétrico é o transporte oficial do millennial otimista: anda pouco, resolve quase nada, mas custa caro — e tudo isso com estilo. Um surfista do asfalto tentando não ser atropelado pelo sistema, e pagando caro pra fazer parte dele.

Foto do Danilo Fontenelle

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