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O futuro incerto da Electronic Arts
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Davi Rocha é um gamer inveterado e professor universitário com uma pitada de publicitário. Sua paixão por videogame o leva a tentar desvendar as camadas mais profundas das narrativas interativas e mecânicas dos jogos atuais. Com uma análise apurada e uma abordagem que une teoria e prática, apenas aborda os principais lançamentos, mas também conecta pontos interessantes entre a cultura pop e estratégias de marketing e comunicação

O futuro incerto da Electronic Arts

Aquisição da EA por firmas de investimento promete cortes, endividamento e foco em monetização com IA, ameaçando a identidade criativa de uma das gigantes dos games
Logo da EA (Foto: Montagem/Davi Rocha)
Foto: Montagem/Davi Rocha Logo da EA

A aquisição da Electronic Arts (EA) — uma das maiores empresas da indústria de games, responsável por franquias como EA FC (antigo “FIFA Soccer”) e Battlefield — por cerca de 56 bilhões de dólares por um consórcio formado por dois fundos de investimento americanos e um saudita representa um dos eventos mais marcantes e, ao mesmo tempo, preocupantes da história recente do setor.

A operação essencialmente transforma a EA em uma companhia privada, retirando-a da bolsa de valores. À primeira vista, isso poderia soar como uma boa notícia: sem a pressão constante de acionistas públicos e de metas trimestrais de valorização, a empresa poderia se desprender da lógica do lucro infinito e voltar a assumir riscos criativos, como fazia nos anos 2000.

No entanto, a realidade do que deve acontecer, uma vez que a compra seja aprovada, tende a ser bem diferente.

Como apontou o jornalista Pedro Henrique Lutti Lippe em seu canal no YouTube, a compra não foi feita por outra companhia de jogos interessada em expandir o setor, mas por fundos de investimento cujo único objetivo é o retorno financeiro.

Esse tipo de operação, conhecida como leveraged buyout - ou compra alavancada -, funciona como um financiamento: parte do valor da compra vem de empréstimos bancários que agora deverão ser pagos pela própria EA.

Em outras palavras, a empresa foi comprada com o próprio dinheiro e já começa essa nova fase endividada e com a necessidade de aumentar o faturamento ou reduzir drasticamente seus custos.

Com a pressão para pagar a dívida, a estratégia mais provável não é lançar jogos mais criativos, e sim cortar custos: fechar estúdios, cancelar projetos e demitir. Deve crescer o uso de IA e monetização agressiva, comprimindo etapas caras do pipeline (prototipagem de assets, variações de arte/áudio, QA assistido, localização em massa e suporte via chatbots), além de modelos preditivos para economia ingame, retenção e preços dinâmicos.

Veja imagens do EA FC

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A aposta do mercado é que ganhos de eficiência com o uso de IA cubram o serviço da dívida e aumentem receita com lançamentos mais frequentes, conteúdo sazonal barato e monetização ajustada por algoritmos.

A EA reforça esse rumo: segundo Andrew Wilson, a IA — inclusive generativa — está “no núcleo do negócio”, como alavanca para cortar despesas e expandir receita, apesar dos riscos criativos e de demissões. Nesse cenário, séries como Mass Effect, Dragon Age, The Sims e Battlefield podem perder identidade e virar produtos genéricos focados em lucro rápido.

Além do aspecto econômico, existe um fator geopolítico importante. O fundo soberano da Arábia Saudita, envolvido na transação, pertence a um regime autoritário que tem usado o entretenimento global como estratégia de soft power para melhorar sua imagem no exterior.

O caso da SNK ilustra o risco de que decisões criativas passem a servir a interesses externos, e não ao público. Em 2020, a EGDC (vinculada ao príncipe Mohammed bin Salman) adquiriu cerca de 33% da SNK. Em 2022, essa participação subiu para aproximadamente 96%, dentro de uma estratégia cultural nacional mais ampla.

Não há confirmação pública de censura a títulos específicos. Ainda assim, observam-se sinais de alinhamento reputacional: mais ênfase em mensagens institucionais alinhadas aos objetivos do país e maior cautela na comunicação para evitar controvérsias.

Paralelamente, imprensa e comunidades de jogadores passaram a questionar possíveis impactos sobre prioridades de portfólio e escolhas criativas.

A EA aceitou o negócio porque, como empresa pública, é legalmente obrigada a buscar o maior retorno possível aos acionistas. No papel, foi uma oferta irresistível. Na prática, pode ser o início do período mais árido e previsível da história da empresa e, talvez, de toda a indústria dos jogos.

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