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A vida invisível
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A vida invisível

Tipo Crônica
2308demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2308demitri

A vida invisível das famílias talvez justifique o tanto de traumas que vamos enfileirando durante a existência comezinha. Uma dor atrás da outra e mal sabemos ou queremos entrar em contato com as entranhas lá atrás.

Vi a "A Vida Invisível", de Karim Aïnouz, e não me senti confortável diante de uma narrativa tão doméstica e atávica. Demorei para dormir, atualizando, e um pus ainda estourando quando um naipe de gente hipócrita vai pra frente de um hospital berrar contra um médico e uma menina engravidada aos dez anos de idade. Estuprada desde os seis.

Chamar o médico e a menina de "assassinos?". Bradar em nome Deus, da família cristã e seja lá qual profissão de culto? Patrulhar o corpo abusado de uma criança e achar suportável ela ser penetrada, gerar e parir mais feridas enquanto existir?

Eurídice ou "Dircinha", Guida, a mãe delas, a menina estuprada, minha mãe, minhas avós, minhas bisavós, minhas tias, minhas irmãs, minhas primas, minhas vizinhas, minhas amigas, minhas companheiras... todas na película melodramática e no real bolsonarista.

Um bando de idiotas em frente a um hospital ou com o dedo em um computador pedindo mais brutalidade contra o corpo de uma menina invadida

 

Acuadas no machismo, pela porra do pau e eu a reouvir mamãe se lastimar quando alguém engravidava e no bucho vinha outra fêmea. "Mais uma mulher pra sofrer no mundo! Puta-merda", ouvi muito isso em casa.

E tenho vergonha, mas o pai de Eurídice e de Guida, o português, o marido Antenor (um idiota típico que se veste de verde e amarelo), o marinheiro engravidador, o estrangeiro, meu pai, meu avô, meu bisavô, eu, meus irmãos machos, os vizinhos, o bodegueiro, o padre, meus amigos, meus tios, meus primos, meus amigos de escola... um bando de machistas ainda.

Uma de minhas avós, já escrevi algo por aqui, foi estuprada aos 13 anos. Lá pelos anos passados. Coitada, foi obrigada a gestar, parir e, depois, a criança sumiu. Como esse assunto era proibido na sala de jantar, fui saber por causa de uma brincadeira de mal gosto que fiz com mamãe há uns dois anos.

Tive raiva do estuprador, quis o tempo de volta para matá-lo. Perguntei por vovó aos 13 anos, pelo destino da criança e mamãe encerrou o papo. Senti vergonha de ser homem e atualizei tudo de novo...

O machismo, talvez, mate mais do que qualquer pandemia. O patriarcal, que todos temos - homens e mulheres, em alguma proporção um dia estourará o coração ou nos derrubará num tiro.

O caso da criança de dez anos de idade, violentada, é o atestado da imbecilidade humana do Brasil de machos e milicianos. Um bando de idiotas em frente a um hospital ou com o dedo em um computador pedindo mais brutalidade contra o corpo de uma menina invadida.

Não vi esse mesmo povo indo para frente de quartéis para pedir a prisão de policiais que interrompem a existência alheia.

No Ceará não ocorreram manifestações, puxadas por esse naipe de pessoa, que gritassem contra o assassinato do garoto Juan Santos, no Vicente Pinzón. Nem existiram revoltas contra a execução de Mizael Fernandes, menino que dormia quando foi morto.

Não foi noticiado nenhum levante pela vida torturada, sequestrada e desaparecida do frentista João Paulo, em Maracanaú. Em Milagres, os atiradores do Estado mataram uma família inteira e não houve um grito pelos os que foram abortados.

No Curió, PMs chacinaram 11 pessoas e nenhum fundamentalista brasileiro, até hoje, vestiu verde e amarelo para chamar de "assassinos" quem determinou o fim da vida.

Ora, morreram mais de 110 mil pessoas atacadas pela Covid-19 e, mesmo assim, o presidente segue abraçado a um povo que não respeita o corpo de uma infância fodida.

Uma das cenas mais escrotas de "A Vida Invisível" é a do estupro conjugal de Eurídice, são vários. Tem também os peitos derramando leite, de Guida. A do piano tocando fogo e a passagem para a vidinha de Fernanda Montenegro, recém-viúva de Antenor, é a menina engravidada aos dez...

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