Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Tia Lindaura, quase 104 anos, faleceu. Não foi de Covid-19, digo logo porque virou pergunta cediça do ano passado para cá. Ano que nunca será abstraído.
E não vi motivo para carpir a morte dela. Só por saudade, claro. Pela falta que a senhora fará em algum vão da casa. Num cuscuz que não vai mais cheirar do mesmo jeito, numa danadice sem ralho.
Hoje, há quem peça pela boa morte. Por Nossa Senhora das pretas. Negras cativas que não acreditavam na coisa sem fim da escravidão por aqui. Não ia "simbora". Persistia na dor, no açoite, na separação do ventre.
A boa morte libertava, enfim, do humanamente desumano. Despregava alma do corpo e o espírito desgarrava. Ia por cima do mar, dentro dos oceanos, nos planetas até desembestar de volta à África arrancada.
Era um gozo morrer, uma felicidade passar do Aiyê para o Orun. Sair do plano da Terra, da crueldade física dos brancos e entrar no vão onde só o espírito faz morada.
Se a escravidão não findava, então morrer sem ser mais martirizada era a prece. O despacho daqui. As pretas ao redor de uma imagem branca, na procissão de Nossa Senhora do Padecimento, pedindo para não viver mais assim. Antes, uma boa morte.
Disseram que tia Lindaura teve uma morte de coração de passarinho. Foi amiudando o repique, descarnavalizando o viver, fechando os olhos e a cuíca se silenciando devagarzinho.
Ela mesma juntou as mãos, ela mesma fechou os olhos, ela mesma já tinha se banhado na alfazema para não precisar ninguém deixá-la nuazinha numa cama. Ela mesma vestiu o vestido da partida.
Queria que tivesse sido assim, inventei a travessia de tia Lindaura. Acredito que foi tranquila. Um coração de quase 104 anos!
Beija-flor, quando fica velhinho, tem uma tristeza imensa porque o coração acelerado perde o fôlego e faz a batida das asas ir encruando, perdendo a dança.
Tia Lindaura teve uma boa morte. Não foi de covid-19, não puxou ar nem foi "traqueostomizada". É palavra que já dói.
Maria Lindaura Leite de Araújo nasceu em 1917. Passou pela Bailarina, pela varíola, por duas guerras, por secas e por duas ditaduras...
Não foi desaparecida, não tomou choque nos seios nem foi estuprada por torturadores. Seu corpo tem um túmulo e seu espírito foi libertado desse tempo.
A boa morte é um privilégio, descobri isso há pouco. Não é tirar a vida, se jogar do nono andar. Acho que aí tem sofrer. É bater a passarinha sem ser anjo de caixãozinho azul e entupido de flor. É bonito, mas cedo demais.
Não é morrer menino, feito um Mizael dormindo. Ou tomar um tiro na cara na favela onde nunca morei. Nem ter a infelicidade do luto da doutora Lúcia Belém, não deu tempo conhecê-la.
Tem morte que dói aos 38 e fica uma ninhada de gato miúdo miando leite, sentindo o banzo da mãe. E, depois, o pai e o irmão mais velho, 62 anos, que antes teve a perna cortada.
Chapeuzinho Vermelho, escrevi uma vez por aqui, morreu a pauladas em Maracanaú. Dói a palavra paulada, senti cada uma.
Li no jornal a notícia sobre uma menina, 11 anos de idade, morta a pauladas. Chega sofri cada parágrafo. Tinha nome de gente, mas a chamavam de "Preá".
Gerlândia Santos Medeiros! Já tinham matado os dois irmãos, o pai e a mãe. Foram traficantes.
Tia Lindaura, não. Não morreu de Covid-19 no vexame da pandemia. Teve um coração de quase aos 104 anos.
Foi o verão e o apogeu da primavera. Teve chuva e teve mar...
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