Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Como a contramola que resiste, Ney Matogrosso completa 80 anos neste domingo, 1º. Com nova biografia, novo disco e planos de um filme biográfico, ele desafia o tempo enquanto segue impondo sua obra atemporal, corajosa e inclassificável
Quando, há 48 anos, o trio Secos&Molhados surgiu no cenário nacional, foi difícil compreender o que era aquilo tudo. Três homens, corpos muito magros de peito nu, com os rostos abusivamente pintados, roupas coloridas extravagantes e rebolando sem pudores. Ao centro, o único não barbado do grupo, cantava - com voz agudíssima e delicada - versos agressivos sobre bomba atômica, autoritarismo e necessidade de ir à luta.
O dono dessa voz é Ney de Sousa Pereira, rebatizado artisticamente como Ney Matogrosso. E se já era difícil enquadrar os Secos&Molhados dentro de um estilo musical, o que dizer daquele vocalista de peito peludo que parecia querer devorar a plateia? Fugir de definições, rótulos, do óbvio foi o caminho que ele seguiu desde então, a começar por passar ao largo de movimentos musicais. Embora sua trajetória se aproxime do rock, da psicodelia, do tropicalismo, ele sempre fez o próprio movimento. Nunca aderiu a nenhuma turma e até foi evitado por algumas delas.
O visual exuberante, os figurinos feitos de chifres, penas, maquiagem pesada e tapa-sexo viraram marcas-registradas de suas apresentações e cada nova capa de disco era um escândalo. Certa vez, durante um show, a plateia resolveu implicar com sua figura e gritar "bicha! bicha!". Ele ouviu o agravo, mandou a banda parar de tocar e encarou o público. Calado. Sem ter uma resposta do artista, mais a turba gritava. Ele permaneceu imóvel até que, por cansaço, todos calaram. Chegou a vez de Ney: "vão tomar no cu", disse, virou-se e foi embora.
Tanta originalidade causou estranhamento em uma sociedade que vivia sobre as botas da ditadura militar. Para a ala à direita, aquela figura era uma ofensa direta aos homens de bem e à família tradicional. E para a esquerda, a mensagem também não foi clara (como assim juntar Odair José e Chico Buarque no mesmo disco?) e a reação, num primeiro momento, foi isolá-lo. Já as crianças gostaram de cara e não foram poucas as que se divertiram quando ele cantou "O vira" com os Secos. Atração frequente no programa dos Trapalhões, Ney também parecia se divertir muito com as brincadeiras em cena. Anos depois, ele participou do especial infantil de TV "A Arca de Noé", baseado na obra de Vinicius de Moraes, cantando "São Francisco". E uma curiosidade: a faixa "Açúcar candy", gravada em seu primeiro disco solo, foi feita para uma peça infantil. Seus versos dizem: "Tua pistola dispara baunilha na minha boca, no meu corpo. Ai, precipício".
O próprio mercado duvidava de até onde Ney poderia ir sem os Secos&Molhados. Não eram poucos o que o consideravam só uma bunda rebolante. Sua resposta, mais uma vez, foi um tapa. No disco "Pescador de pérolas" (1987), ele se despiu daquela persona andrógina e se cercou de alguns dos mais classudos músicos brasileiros. Arthur Moreira Lima no piano, Rafael Rabello no violão, Paulo Moura nos sopros e Chacal na percussão levaram Ney para o mundo erudito. De terno branco e rosto limpo, ele cantou modinhas do início do século passado, cirandas e o trecho de uma ópera de Georges Bizet. Quatro anos depois, seria só com Rafael Rabello que ele faria o disco "À flor da pele", com sambas clássicos, bossas e dores de cotovelo interpretados com elegância e personalidade.
Quando achou que estava na hora, retomou à extravagância com o show "Olhos de Farol", época em que descobriu a obra de Pedro Luis. Voltou às plumas, tapas-sexo e à postura de grande frontman pop. O momento em que ele trocava de roupa em cena era um dos mais aguardados, arrancando muitos gritos da plateia. Criando revoluções, viajando pelo passado da música brasileira, apontando para o futuro, passeando pelo repertório latino-americano e fugindo de todos os modismos, Ney Matogrosso impôs seu trabalho dentro de um ambiente arisco. E assim segue. Sem nunca ter cantado em inglês, se apresentou pela primeira vez em Londres aos 78 anos, com seu show mais roqueiro.
Neste domingo, 1º, Ney completa 80 anos. Os planos seguem um filme biográfico ("Homem com H", previsto para 2023), um livro sobre sua vida (lançado pela Cia. Das Letras) e um novo disco, "Nu como minha música". O álbum conta com composições de Roberto e Erasmo ("Sua estupidez"), Accioly Neto ("Espumas ao vento"), Raul Seixas ("Gita") e Caetano Veloso (a faixa-título). Inclassificável, indefinível, livre, Ney Matogrosso seguirá fazendo sua caminhada enquanto o tempo estiver ao seu favor.
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