
Redatora de Capa e Farol do O POVO. Quadrinista e jornalista entusiasta de temas relacionados à saúde e bem-estar. Uma ex-sedentária em busca de se manter em movimento
Redatora de Capa e Farol do O POVO. Quadrinista e jornalista entusiasta de temas relacionados à saúde e bem-estar. Uma ex-sedentária em busca de se manter em movimento
Eu tenho uma inimiga. Não é alguém que eu desgoste, longe disso. Mas é que tem sido uma constante: mal abri os olhos na minha rotina matutina e o celular já apita com dois — às vezes três, pasmem — ratinhos, marcando no aplicativo as atividades já feitas no dia. E todos eles têm um único remetente: a minha rival. Enquanto eu ainda escovo os dentes, Camylla Rachelle já nadou alguns quilômetros em alto mar, fez musculação e está prestes a começar o Crossfit. Não à toa, ela está à frente de mim no GymRats em todos os critérios.
Se você ainda não foi cooptado para participar de um grupo no tal aplicativo e não faz ideia do que eu estou falando, eu explico: GymRats é uma ferramenta em que amigos (pero no mucho) estabelecem regras para se manterem, em um tempo determinado, fazendo atividades físicas, com um objetivo final que pode ou não envolver prêmios. É, assim, uma estratégia de gamificação que pode auxiliar na motivação às práticas de exercícios. Isso e também aflorar em você os instintos mais primitivos de competição.
Nem mesmo me considero uma pessoa competitiva. Veja bem, 30 anos torcendo para o Botafogo forjaram em mim uma personalidade pacata mais afeita à humildade de felicidades momentâneas do que à soberba de vencedor nato. Ainda assim, tenho amargado um segundo lugar pela primeira vez desde que me meti nesse aplicativo. Fiz até um print da tela na inédita feita, em mais de um mês, em que me tornei líder, superando a minha arquirrival. Coloquei no grupo do WhatsApp, me vangloriei, para, em algumas poucas horas, ser desbancada com louvor.
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A dor de cotovelo é ainda maior, quando, com um sorriso no rosto, a minha oponente me diz: “Ah, mas nosso grupo é tranquilo, tu precisava ver como é no outro”. É isso: Camylla, que é professora universitária e está às voltas com a organização do próprio casamento, tem dois grupos e lidera os dois. “Confesso que os grupos conseguem extrair esse lado competitivo de mim de forma muito exacerbada. Desde pequena, tenho esse instinto. Tem gente torcendo para que chegue a minha lua de mel só para eu parar de treinar”, me conta. Bem, eu não vejo a hora.
São os grupos e os desafios que para ela, e também para mim, têm auxiliado na constância dos treinos. “Mesmo tendo uma rotina, os desafios acabam me estimulando muito mais. A energia dos grupos realmente faz a diferença”, relata Camylla. Isso acontece, conforme me explica a professora doutora psicóloga do esporte Lívia Viana, porque o comprometimento a um grupo aumenta a possibilidade de sucesso.
“O mais desafiador é a manutenção da prática, o que chamamos de aderência, ou seja, a continuidade e persistência nos treinos que leva aos maiores benefícios para a saúde. Assim, participar dos desafios em grupo pode ser um fator motivacional para auxiliar na adesão e aderência da prática. O desafio coletivo e as metas públicas a serem alcançadas, muitas vezes, aumentam o comprometimento da pessoa, ou seja, se ela entra em grupos de atividades físicas, ela passa a se comprometer também com outras pessoas e isso pode ajudar na continuidade do exercício”, explica Lívia, que é professora do curso de Educação Física do Instituto de Educação Física e Esportes da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Camylla conta que já passou dos limites do próprio corpo que pedia descanso para não deixar de pontuar no aplicativo. E ela não está só. Há também momentos em que deixar de cumprir com o desafio pode gerar ansiedade. Por isso, Lívia alerta: “É importante perceber que, se a participação nos desafios em grupos de aplicativo está trazendo mais um fator de ‘pressão’ ou de sofrimento, pode ser que ele não esteja fazendo tão bem. Por isso, o autoconhecimento é a principal habilidade que devemos tentar desenvolver. Conhecer nossos limites é fundamental para identificar quando a competição (e a comparação) está trazendo benefícios ou quando ela passa a se tornar aversiva”.
Ou seja, estar em movimento com amigos te motivando precisa ser prazeroso. A competição pode ser uma forma de você, enfim, viver uma vida mais ativa, e, por mais acirrada que seja, carece de diversão. Em três dias, conheceremos a ratinha suprema do meu grupo no GymRats. Quem será que vai vencer? (Me adianto: será ela, minha arqui-inimiga, e está tudo bem, nada que uma revanche não resolva).
O POVO - Como participar desses desafios e grupos em aplicativos, com ou sem recompensas, pode auxiliar na adesão de atividades físicas?
Lívia Viana - A adesão ao exercício físico está relacionada a muitos fatores e depende de cada pessoa. A adesão está relacionada a começar uma rotina de exercício, que muitas vezes não é a parte mais difícil. O mais desafiador é a manutenção da prática, o que chamamos de aderência, ou seja, a continuidade e persistência nos treinos que leva aos maiores benefícios para a saúde. Assim, participar dos desafios em grupo pode ser um fator motivacional para auxiliar na adesão (começar) e aderência (continuação) da prática. O desafio coletivo e as metas públicas a serem alcançadas muitas vezes aumentam o comprometimento da pessoa, ou seja, se ela entra em grupos de atividades físicas ela passa a se comprometer também com outras pessoas e isso pode ajudar na continuidade do exercício. Fazer atividade física em grupo (mesmo que seja em esportes individuais, como correr, nadar ou treinos de força como a musculação) muitas vezes está relacionado a um melhor desempenho individual, pois o comprometimento aumenta a possibilidade de sucesso: é comum ouvirmos as pessoas falarem "eu só vim hoje porque tinha combinado com você".
OP - Esses desafios geralmente tem um tempo e cada um tem regras próprias. O que é importante ser levado em conta nessas regras? Tem um tempo específico que pode ajudar a construir um hábito?
Lívia Viana - As regras são importantes para motivar a participar dos desafios, pois cada um vai se organizar de acordo com as "regras do jogo" e elas são um acordo coletivo. As regras podem ser criadas de forma democrática e que vise mais efeitos positivos, evitando, por exemplo, punição no caso de descumprimento. Todos devem ter acesso claro às regras e lembrar que essa participação deve ser positiva e aumentar a satisfação, possibilitando a aderência ao exercício, pois essa é a "parte mais difícil" para manter um hábito saudável. Se você perguntar às pessoas a importância de ter uma rotina de exercício provavelmente todas saberão dizer que é fundamental para a saúde manter esse hábito, ajuda a controlar o peso, a diminuir riscos de doenças cardiovasculares, reduz o estresse, etc. Saber dos benefícios nem sempre é suficiente para que a pessoa continue mantendo a rotina de exercício, muitas vezes as pessoas não praticam por outros motivos: falta de tempo, falta de motivação, falta de energia, dificuldade de acesso ao local de treino (distância de casa, academia lotada, etc.), falta de dinheiro e etc. Entender sua realidade e conhecer o que pode limitar a sua participação é fundamental porque assim você vai compreender se você conseguirá respeitar as regras do seu grupo ou se é melhor trabalhar outros aspectos da sua rotina e só depois aderir aos desafios. Um hábito só se torna um hábito quando ele "se encaixa" na sua rotina, quando há um equilíbrio entre o esforço (a energia disponibilizada para atingi-lo) e os benefícios da atividade. Se participar dos grupos de desafio te "consome" mais energia do que o próprio exercício pode ser que esteja na hora de repensar a sua participação. Nem todas as pessoas se motivam com comparações, competição e desafios em grupo, por isso, o autoconhecimento é a peça fundamental para construir um hábito e para respeitar as regras
OP - Como se organizar e se observar para entender os limites do próprio corpo e não exagerar para cumprir metas dos desafios?
Lívia Viana - Um dos pontos fundamentais é o autoconhecimento, como já dito, mas outro fator imprescindível é a prescrição ideal do exercício que você vai praticar. Um risco que se corre ao aderir aos grupos de desafio é que muitas vezes eles são generalistas e não foram planejados de forma individualizada para a realidade de cada pessoa, por isso, a importância de um profissional de educação física que é habilitado a prescrever os exercícios corretos atentando para cargas, para as limitações de cada pessoa e principalmente planejando o avanço gradual dos objetivos para evitar lesões ou que seja ultrapassado os limites. Os profissionais de educação física estão aderindo a prescrições individualizadas por meio de aplicativos de treino o que possibilita acompanhar um maior número de alunos, mas ainda atentando para a individualidade de cada aluno.
OP - Em que ponto a competição pode deixar de ser saudável?
Lívia Viana - É importante que os desafios façam sentido para as pessoas que estão participando e sejam motivos de reforço positivo, ou seja, que a pessoa veja recompensas ao participar, não somente recompensas sociais (elogios, dinheiro, premiações e etc.), mas também recompensas individuais (aumentar a satisfação pessoal, a autoestima, reduzir o estresse, controlar o peso, etc.), pois essas últimas são mais fortes e aumentam a aderência ao exercício. É importante perceber que, se a participação nos desafios em grupos de aplicativo está trazendo mais um fator de "pressão" ou de sofrimento pode ser que ele não esteja fazendo tão bem. Cada pessoa se motiva por diferentes razões em diferentes fases da vida, por isso o autoconhecimento é a principal habilidade que devemos tentar desenvolver. Ao conhecer o que nos faz bem e o que nos faz mal, conhecer nossos limites é fundamental para identificar quando a competição (e a comparação) está trazendo benefícios ou quando ela passa a se tornar aversiva. Uma dica é: se participar dos grupos de aplicativo te empolga, te ajuda a ir para seus treinos, te deixa mais feliz e menos ansioso pode ser um bom indicativo de que a participação está saudável, mas se você começa a se preocupar demasiadamente, começar a tentar burlar as regras ou fazer o treino a qualquer custo com mais sentimentos de raiva, insatisfação e ansiedade, pode ser o momento de repensar sua participação.
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