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A dor e a delícia de treinar e maternar
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Redatora de Capa e Farol do O POVO. Quadrinista e jornalista entusiasta de temas relacionados à saúde e bem-estar. Uma ex-sedentária em busca de se manter em movimento

A dor e a delícia de treinar e maternar

Se ser mãe é padecer no paraíso, ter uma rede de apoio que permita que mães possam treinar pode tornar esse padecer menos doloroso
Tipo Crônica
A psicóloga Monique Braz com os filhos Lucas e Leah (Foto: TE PINHEIRO/DIVULGAÇÃO)
Foto: TE PINHEIRO/DIVULGAÇÃO A psicóloga Monique Braz com os filhos Lucas e Leah

Não é uma cena incomum de presenciar: no meio do box de Crossfit, levemente descabelada, como é normal a muitas mães, e com a roupa e os tênis de exercício físico. Mas, ao invés de um cinturão para levantamento de peso, Monique Braz, 39, traz preso ao corpo um suporte para carregar Leah, enquanto faz agachamentos. A corrida na rua, então, tem mais pezinhos acompanhando os passos dela. Para conseguir que a hora da prática encaixe na rotina do expediente de trabalho e da maternidade em tempo integral, a psicóloga faz alguns malabarismos e, muitos dias, Lucas, de 5 anos, e Leah, de 2 anos, podem ser encontrados brincando na academia, sob a supervisão do pai, de uma babá, de um parente e, às vezes, até do coach.

O ambiente é velho conhecido da duplinha. Vamos dizer que eles tiveram 9 meses para se acostumar. Isso porque Monique quase pariu no box de Crossfit. Grávida da segunda filha, a agora cacheada e sapeca Leah, a psicóloga cumpriu sua rotina de exercícios, treinando de 8 às 9 horas. Na hora do almoço, vieram as primeiras contrações e, duas horas depois, a menina rebentou no mundo ainda na sala de triagem da maternidade. No primeiro filho, o homem-aranha Lucas, também não foi diferente: até o dia anterior ao parto, lá estava Monique entre anilhas, barras e halteres. Depois dos dois nascimentos, ela reiniciou os treinos com 2 e 4 meses, respectivamente.

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“Não é simples acordar e tentar manter tudo pronto para uma prática corriqueira, como treinar. Muitas vezes, levo as crianças e elas fazem parte de algo do treino. É muito esforço e sei que muitas mães nem conseguem. Todos os dias, eu tenho vários motivos para não ir e seria fácil qualquer pessoa entendê-los. Na verdade, seria mais fácil eu não ir”, conta Monique, brincando que “os dois partos naturais foram mais simples do que organizar uma forma de treinar”. Mas, ainda assim, é uma escolha que ela faz todos os dias em prol do bem-estar.

A motivação da bancária Márcia Pires, 36, foi a mesma. Mãe do pequeno Felipe, de 5 meses, Márcia voltou a treinar 45 dias após o parto. Ao contrário do que poderia ocorrer de pressão para retornar ao corpo anterior à gravidez, Márcia sentiu certo julgamento por deixar a maternidade de lado por alguns minutos. Ela conta que, a princípio, os treinos curtos, auxiliados pela rede de apoio, foram impulsionados com o objetivo de desfocar a mente do tema da maternidade. “Foi para tentar maternar sem culpa. É uma jornada exaustiva e o exercício é uma válvula de escape, sinto que me ajuda a voltar para casa e ser uma mãe melhor”, relata.

As duas mães ecoam o que a ciência evidencia, como explica a psicóloga clínica e professora pós-graduada em Psicologia perinatal Rannielly Magalhães. Mulheres que praticam atividade física são menos propensas a desenvolver sintomas de depressão no pós-parto, quando comparadas àquelas que praticam menos ou não praticam, detalha a doutora em Psicologia e Saúde. “Há inúmeros benefícios e, de início, talvez o mais impactante seja na saúde mental”, pontua.

Regulação do sono e hormonal, aumento da disposição, redução do estresse e da ansiedade, fortalecimento da autoestima e até sensação de identidade e autonomia que muitas vezes ficam abaladas no puerpério, conforme Ranielly, estão entre os efeitos positivos.

Contudo, a médica ginecologista obstetra com atuação em sexologia Débora Britto pondera que é preciso ter cautela para garantir a retomada dos exercícios físicos de forma segura. “O retorno à atividade física no pós-parto depende de vários fatores, incluindo o tipo de parto, a recuperação individual e a liberação médica. Para essa liberação serão considerados alguns fatores como a integralidade do assoalho pélvico, a presença de diástase abdominal, a energia física e emocional da paciente”, alerta. Ranielly recomenda que o retorno seja conduzido com cuidado, sem pressão estética ou metas irreais, e de forma a ser um “reencontro respeitoso com o próprio corpo”.

Profissionais e mães são unânimes quanto à necessidade de uma rede de apoio para que a mulher consiga cuidar de si e retomar a prática de atividades físicas. “Sem rede, o cuidado com o bebê consome quase toda a sua energia e disponibilidade, e o autocuidado vai sendo adiado”, indica Ranielly. Cada maternar é uma experiência única e somente a mulher saberá o tempo certo e como essa atividade deverá ser feita. Mas ela merece ser cuidada e ter a possibilidade de se autocuidar. Poder se movimentar é parte disso.

Leia trechos das entrevistas com as profissionais

Débora Britto, médica ginecologista obstetra com atuação em sexologia
Débora Britto, médica ginecologista obstetra com atuação em sexologia Crédito: ARQUIVO PESSOAL

Débora Britto, ginecologista obstetra

O POVO - Quais os benefícios de manter atividades físicas durante a gravidez? Há atividades mais recomendadas? Elas podem auxiliar o parto?

Débora Britto - O exercício durante a gravidez é seguro tanto para a mãe quanto para o feto, contribuindo inclusive para a prevenção de condições relacionadas à gravidez. É importante que o tipo e a intensidade do exercício sejam adaptados ao nível de condicionamento físico anterior da mulher, ao histórico médico e às características da gravidez em andamento.

Algumas atividades acabam por ser mais recomendadas, embora outras também possam ser realizadas, como dito, a partir da avaliação do status de saúde da gestante. Caminhadas leves a moderadas, pilates, yoga, hidroginástica, exercícios de fortalecimento e alongamento supervisionados.

Algumas dessas atividades podem favorecer o fortalecimento do assoalho pélvico, melhorar a consciência corporal e da respiração, melhorar a resistência física e a disposição e esses benefícios podem ser positivos para o momento do parto.

Rannielly Magalhães, psicóloga clínica e professora pós-graduada em Psicologia Perinatal

Rannielly Magalhães, psicóloga clínica e professora pós- graduada em Psicologia Perinatal
Rannielly Magalhães, psicóloga clínica e professora pós- graduada em Psicologia Perinatal Crédito: ARQUIVO PESSOAL

O POVO - Mulheres relatam pressão estética para retornar ao peso e à performance anterior à gravidez. Como lidar com isso para que a atividade não vire uma cobrança?

Rannielly Magalhães - Infelizmente, assim como em tantos outros contextos da maternidade, o corpo da mulher no puerpério também se torna alvo de falas cruéis e invasivas. Comentários como “Você engordou, né?”, “Quantos quilos você ganhou?” ou “Agora tem que se cuidar” chegam justamente em um dos períodos de maior vulnerabilidade da vida da mulher quando ela está atravessando uma avalanche hormonal, lidando com as exigências do cuidado com o bebê e tentando se reconectar com um corpo que já não reconhece da mesma forma.

Curiosamente, a mesma sociedade que diz que a mulher “deve comer por dois” durante a gestação é a que exige, logo após o parto, que esse corpo que passou por sua maior transformação para gerar vida durante nove meses volte a ser como era antes. Essa cobrança contraditória e desumana impõe padrões estéticos irreais e reforça uma cultura de exigência que silencia o que essa mulher está vivendo de verdade.

Por isso, ainda no pré-natal psicológico, é fundamental compreender qual é a relação que essa mulher já constrói com o corpo, quais são as crenças, expectativas e feridas que ela carrega. Alinhar essas percepções com realidade, acolhimento e respeito pode ajudar a reduzir o sofrimento emocional que tende a emergir no puerpério.

A atividade física precisa ser ressignificada. Ela deve ser uma aliada na recuperação, na reconexão com a própria identidade, no fortalecimento da autoestima e no bem-estar e não mais uma ferramenta de punição ou de adequação a padrões. Quando o movimento vem como forma de cuidado, ele ajuda a mulher a se reencontrar em um corpo novo, mas igualmente digno, potente e merecedor de afeto.

Esse corpo precisa de tempo, de gentileza e de práticas que favoreçam sua recuperação. Além da atividade física leve e progressiva, a mulher pode, aos poucos e quando sentir que é possível, se cercar de hábitos de autocuidado: uma alimentação mais saudável, momentos de descanso, apoio emocional, práticas de relaxamento e conexão com ela mesma. Tudo isso contribui para a restauração do vínculo consigo.

E quando essa cobrança estética se torna intensa e causa sofrimento, é essencial que essa mulher seja acompanhada por um psicólogo obstétrico um profissional preparado para olhar com sensibilidade e conhecimento para esse período de transição, que envolve corpo, mente, história e identidade.

A escuta, o acolhimento e a autocompaixão são aliados fundamentais nesse processo. Com apoio adequado, é possível transformar a atividade física em um espaço de saúde integral e não em mais uma fonte de cobrança, frustração ou culpa

OP - Qual a importância da rede de apoio para que essas mães tenham a possibilidade de praticar atividades físicas?

Rannielly - Costumo dizer que a rede de apoio é um dos fatores mais importantes no puerpério. Não é um luxo é uma necessidade. Para que essa mulher consiga cuidar de si, inclusive retomando a prática de atividades físicas, é essencial que ela tenha suporte. Sem rede, o cuidado com o bebê consome quase toda a sua energia e disponibilidade, e o autocuidado vai sendo adiado, mesmo que ela deseje se movimentar, sair de casa ou apenas respirar um pouco fora da rotina intensa.

Ter alguém que fique com o bebê por uma hora, que incentive sem cobrar, que compreenda o que essa mulher está vivendo sem julgar, pode ser o ponto de virada para que ela se autorize a fazer algo por si mesma. Quando a rede funciona seja composta por parceiro(a), familiares, amigas ou profissionais , ela não só viabiliza a prática da atividade física, como ajuda a reconstruir a autonomia dessa mulher sobre o próprio corpo e tempo.

Mas e quando essa rede não existe? Essa também é uma realidade e precisa ser olhada com sensibilidade. Quando não há apoio externo, essa mulher pode buscar possibilidades dentro da sua própria realidade, considerando o que é viável naquele momento. Algumas mulheres passam a fazer exercícios em casa, adaptando o espaço e os horários. Outras encontram formas de incluir o bebê: praticam atividade física na praça, empurrando o carrinho; fazem uma caminhada leve enquanto o bebê dorme no sling; ou encontram academias que aceitam a presença dos filhos pequenos.

Pequenas escolhas, dentro do possível, constroem práticas sustentáveis de autocuidado e isso impacta não só o corpo, mas também a saúde mental, a relação com o bebê e a disposição para viver esse cuidado tão intenso que o puerpério exige.

Como psicóloga obstétrica, vejo cotidianamente o impacto da solidão materna na saúde das mulheres. O movimento, o descanso, o lazer e o cuidado emocional só se tornam possíveis quando existe um ambiente que sustenta, acolhe e compartilha responsabilidades. E quando esse ambiente não existe, é preciso construir estratégias internas e práticas possíveis porque cuidar de si é também cuidar de quem se ama.

 

Foto do Domitila Andrade

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