Uma realidade do passado que se repete no presente
Professor de História na rede pública Estadual de Ensino do Ceará. Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Patrimônio e Memória (GEPPM-UFC) e vice-líder e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa História, Gênero e América Latina (GEHGAL-UVA)
Uma realidade do passado que se repete no presente
A realidade de um Brasil profundamente desigual está presente e visível nas ruas das grandes e pequena cidades do País, com aviltante precarização do trabalho e minguadas oportunidades de acesso a condição digna de vida
Estive relendo seu Diário de uma favelada. Lamento constatar da janela aberta de seu Quarto de Despejo que não será necessário o uso abusivo da visão retrospectiva para afirmar que as palavras do seu diário não falam apenas de um tempo que passou, mas de uma realidade social que não é fictícia nem está somente no passado.
A realidade de um Brasil profundamente desigual está presente e visível nas ruas das grandes e pequena cidades do País, com aviltante precarização do trabalho e minguadas oportunidades de acesso a condição digna de vida. Pois é, Carolina, nesta segunda década do século XXI para muitos a busca pelo pão de cada dia é tão semelhante à sua luta diária para não morrer de fome na segunda metade do século passado que só o tempo as separa.
E o que é pior, estamos atravessando desde março de 2020 a pandemia do coronavírus que teve um efeito devastador em praticamente todos os setores da sociedade. Os impactos diretos sobre a população brasileira somam mais de 540 mil mortes. Carolina, são, em média, 1.245 mortos por dia pela doença, segundo os dados mais atualizados do consórcio de veículos de imprensa que compila os números das secretarias estaduais de Saúde e divulga a situação da pandemia no Brasil.
Mesmo os indicadores tendo arrefecido em meio ao avanço da vacinação, o País ainda passa por momentos de grandes incertezas sobre o futuro da pandemia. E o futuro é uma questão da ordem do dia.
Quero te falar do impacto econômiconegativo sobre a vida de uma parcela da população que você conheceu tão bem: os catadores. A pandemia fez sumir a renda destes trabalhadores dos quais você fez parte, pois os estabelecimentos comerciais, restaurantes e fábricas foram obrigados a fechar para evitar a proliferação da doença.
À espera de dias melhores o cenário que se desenhou foi e ainda é dramático. De fato, algumas medidas foram tomadas para amenizar a situação. Aqui no Ceará, pouco mais de 2.400 catadores reunidos em associações ou cooperativas se cadastraram no Programa Auxílio Catador e começaram a receber, em junho de 2021, as parcelas referentes aos meses de janeiro e fevereiro. Quer saber? Você tem absoluta razão, Carolina, quem não passa fome não entende a pressa de comer.
O cadastro foi realizado desde o ano passado, mas só agora a primeira parte dos beneficiários pode fazer o saque da quantia referente a um quarto do salário-mínimo. Tem que ser muito forte para esperar tanto tempo por tão pouco, não é?
Fico pensando, Carolina, que você escreveu seu diário num período do passado que aliava nacionalismo a desenvolvimentismo, quando os governantes faziam o país acreditar que seria mais brasileiro (a despeito de uma política econômica que flagrantemente beneficiava as empresas multinacionais), mais moderno e mais justo socialmente. Como é cruel o requinte dos que tem os bolsos cheios e a mesa farta!
Infelizmente, esse malogrado passado não está longe ou atrás de nós, Carolina; ele está junto e próximo a nós. E por isso eu incluo você na minha escrita como inspiração e citação, na esperança que os seus e os meus leitores possam olhar com mais atenção para aqueles que estão atolados até o pescoço na miséria, não somente para pensar em colaborações entre economia e história que proporcione a especialistas e leigos curiosidade, mas para ir além e produzir sensibilidades, fazendo perceber que estes são problemas que tocam a humanidade. Por óbvio, nos tocam. Ou deveriam.
Você nos ensina que temos que olhar ao redor o que vivenciamos. Portanto, é preciso entender que nossos problemas e os problemas da nossa economia têm a ver com a nossa história. Por isso, escrever um livro como o seu ou um artigo como o meu é parte da vida que inscreve a História num projeto de sociedade.
Sei que você nunca vai me ler, Carolina, mas na hipótese de um dia pudesse lhe enviar esta carta talvez nem assim ela alcançasse as mãos da destinatária. É que está em pauta a votação do projeto que abre caminho para a privatização dos Correios. Saiba que os governantes do país em muito se parecem com sua vizinha Feliciana: só pensam no próprio lucro.
Pode até parecer conversa repetida de quem é contra privatizações, mas imagina um país continental como o nosso, com abissais diferenças sociais, privatizar o serviço postal...Quando é que, enfim, caminharemos em direção a uma sociedade mais justa?
Finalizo por aqui, reafirmando que o diário que você escreveu na década de 1950 jamais perdeu sua atualidade, e percebo com tristeza que a quadrinha do seu amigo Roque, que você registrou no diário de 8/11/1958, conta a mesma história tantas vezes dita:
“Político quando candidato Promete que dá aumento E o povo vê que de fato Aumenta o seu sofrimento!”
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