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A potência de "Vidas Secas" em quadrinhos: dor, silêncio e permanência
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Jansen Lucas é coordenador de criação no O POVO, publicitário, designer e artista visual. Dedica-se a escrever sobre cultura com foco em produções de quadrinhos, cinema e literatura, explorando as conexões entre arte, narrativa e mídia em seus trabalhos

Jansen Lucas arte e cultura

A potência de "Vidas Secas" em quadrinhos: dor, silêncio e permanência

Na adaptação recém lançada pela editora Nemo para os quadrinhos, assinada por Fernanda Baukat e José Aguiar, "Vidas Secas" ganha uma nova leitura e ressignificação sem perder a força do texto que lhe deu vida
Tipo Análise
Capa
Foto: Editora Nemo/Divulgação Capa "Vidas Secas"

Publicado originalmente em 1938, "Vidas Secas” é um dos marcos do modernismo brasileiro e uma das obras mais contundentes sobre a realidade do sertão nordestino. Escrito por Graciliano Ramos, o romance acompanha a dura travessia de uma família de retirantes. Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos e a cadela Baleia, em busca de sobrevivência em meio à seca e à miséria.

Com linguagem enxuta e estrutura fragmentada, a obra revela, com profundidade e crueza, a opressão social e o embotamento dos afetos de cada personagem enquanto tentam sobreviver perante a seca que os persegue.

Na adaptação recém lançada pela editora Nemo para os quadrinhos, assinada por Fernanda Baukat e José Aguiar, “Vidas Secas” ganha uma nova leitura e ressignificação sem perder a força do texto que lhe deu vida.

As palavras de Graciliano encontram corpo em imagens de cores pastéis, em quadros sem bordas que limpam as páginas e conferem fluidez à narrativa visual, apesar da densidade temática. A escolha estética dos autores constrói uma leitura fluida e silenciosa, respeitando os vazios e os silêncios tão característicos da obra original.

A adaptação explora com precisão a solidão de cada um de seus personagens. Os enquadramentos transmitem a sensação de sufocamento e desespero que permeia toda a história, quase como se não houvesse um único instante de alívio ou ternura possível para aquela família. Um dos momentos mais simbólicos dessa opressão é o capítulo sob o ponto de vista do "menino mais novo".

Nele, a criança se impressiona com um gesto ágil do pai, mas é incapaz de expressar sua admiração. Quando tenta compartilhar o sentimento com o irmão, é ridicularizado. É um recorte simples e devastador da brutalidade emocional imposta pelas circunstâncias vividas ali.

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Apesar de Fabiano ocupar mais espaço visual na narrativa, é Sinhá Vitória quem emerge como a personagem mais rica na releitura. Ao trazer seus pensamentos para as páginas, os autores evidenciam a dureza de um sonho simples: ter uma cama de verdade. A frustração diante da impossibilidade de realizá-lo revela mais sobre a desumanização dos retirantes do que qualquer outro discurso explícito.

Talvez o maior desafio da adaptação tenha sido a manutenção do narrador em terceira pessoa, tão essencial na construção original. Os autores conseguem contornar isso com equilíbrio. O narrador permanece como fio condutor da história, mas as falas dos personagens ganham espaço por meio de balões bem distribuídos, que enriquecem o tom geral da obra. A voz do narrador é forte, mas as palavras mais marcantes continuam vindo da própria família.

O capítulo da morte da cadela Baleia é, como no romance, um dos momentos mais potentes da adaptação. O uso de elementos abstratos intensifica a tensão vivida pelas crianças, a dor silenciosa de Fabiano e Sinhá Vitória e o sofrimento quase incompreensível da cachorra. Trata-se de uma transposição que, longe de apenas preservar, parece até ampliar o impacto emocional de um dos trechos mais icônicos da literatura brasileira.

A adaptação ainda permite fazer referências visuais que dialogam com outras representações do sertão. Dois quadros específicos remetem à obra “Retirantes”, de Cândido Portinari, estabelecendo uma ponte simbólica entre diferentes expressões artísticas que tratam da mesma dor: a do povo que abandona tudo em busca de esperança.

Essa esperança, aliás, é do que “Vidas Secas” trata de forma mais cruel. Não se trata apenas da seca literal, da ausência de chuva, mas da seca existencial: de vida, de afeto, de um futuro possível. A dor de Fabiano, que se vê como um ignorante e tenta convencer a si mesmo de que isso é escolha própria, revela o colapso da identidade e da humanidade diante da miséria.

Fernanda Baukat e José Aguiar entregam uma adaptação que não suaviza nem distorce. Pelo contrário, transformam em imagem o que Graciliano já fazia com palavras, um retrato seco, duro e necessário do Brasil profundo, ainda tão presente.

Vidas Secas

Onde encontrar: //www.grupoautentica.com.br
Valor: 84,90

Em Fortaleza

Reboot Comic Storie

Onde: R. Carapinima, 2200 - Loja 127 - Terreo Benfica, Fortaleza - CE, 60015-290
Valor: 219,90

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