Jansen Lucas é coordenador de criação no O POVO, publicitário, designer e artista visual. Dedica-se a escrever sobre cultura com foco em produções de quadrinhos, cinema e literatura, explorando as conexões entre arte, narrativa e mídia em seus trabalhos
A lama na memória: "Doce Amargo" e a crônica do colapso
Graphic Novel de João Marcos Mendonça transforma a tragédia de Mariana, que completa dez anos em 5 de novembro de 2025, em um relato pessoal e pungente
Foto: Editora NEMO/Divulgação
Capa de "Doce amargo - Um relato em quadrinhos do maior desastre ambiental do Brasil", obra de João Marcos Mendonça que narra, após quase 10 anos, as consequencias do rompimento da barragem de Mariana
Quando o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, aconteceu em 2015, o Brasil foi forçado a encarar a face mais crua do lucro sobre a vida, do capital sobre o território. O que se seguiu não foi apenas um desastre ambiental, mas um trauma coletivo, uma ferida aberta na terra, no rio e, sobretudo, no tecido social da região.
Nesse cenário de devastação e impunidade, a graphic novel "Doce Amargo", de João Marcos Mendonça, emerge quase como um documento histórico, relatando as dificuldades que se sucederam após o rompimento da barragem e a passagem dos desejos pelo Rio Doce.
Longe de ser um mero registro factual, a obra é um mergulho incisivo nas angústias cotidianas de quem viveu o colapso na pele. João, professor e quadrinista, transforma sua experiência e a de seus familiares e amigos, de Governador Valadares, que tem o Rio Doce como fonte principal de abastecimento de água, em um relato intenso sobre a sobrevivência.
Foto: Editora NEMO/Divulgação
Capa de "Doce amargo - Um relato em quadrinhos do maior desastre ambiental do Brasil", obra de João Marcos Mendonça que narra, após quase 10 anos, as consequencias do rompimento da barragem de Mariana
A fluidez da narrativa não se concentra no momento específico da catástrofe, que não ocorreu diretamente na cidade de João. mas na lenta e devastadora destruição da normalidade do dia a dia dos moradores da região.
A tragédia se manifesta em pequenos atos: a busca desesperada por água potável, a proliferação de boatos no WhatsApp, e o medo palpável que transforma vizinhos em potenciais adversários na disputa por um recurso essencial.
O traço, embora acessível, carrega a tensão e o deslocamento dos personagens em seus ambientes. O contraste entre a vida que teima em seguir e a ameaça invisível da lama tóxica cria uma sensação de estranhamento que espelha o mal-estar.
A obra é um estudo pungente sobre a fragilidade da infraestrutura, onde a água, símbolo de vida, se torna o vetor do medo e do caos.
Foto: Editora NEMO/Divulgação
Obra trás relato intimo das dificuldades enfrentadas pelas pessoas afetadas pela trajedia da barragem de Mariana
"Doce Amargo" não oferece respostas prontas, mas abre caminhos a reflexões importantes, como a lenta destruição cotidiana e a mercantilização da reparação.
A obra é um tiro certeiro contra a narrativa oficial, apontando para os mecanismos de poder que se escondem atrás de fundações e programas de indenização com o único intuito de sair ilesas perante tamanho desastre.
Em tempos nos quais a segurança ambiental e a justiça socioambiental voltam a ser testadas em várias partes do mundo, a leitura de "Doce Amargo" se torna não só pertinente, mas necessária.
É um lembrete incisivo de que a arte pode ser, ao mesmo tempo, testemunho e resistência, transformando o "Doce" do rio em um "Amargo" que não pode ser esquecido.
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